O fenômeno da vinculação dos particulares a direitos fundamentais

AutorRenan Sales de Meira
Páginas24-75
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1. Explicação inicial: contenda conceitual
Na doutrina nacional, é possível verificar uma disputa teórica a
respeito de qual a correta terminologia a se utilizar para fazer
referência à problemática posta ao fenômeno ora em análise1
(incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas) – se se
trata de um problema de eficácia, efeitos, aplicabilidade, vinculação,
dentre outros conceitos. Igualmente, outra contenda conceitual
existe a respeito da adequada referência terminológica ao fenômeno
em si – se eficácia horizontal, eficácia privada, efeitos perante
terceiros, vinculação dos particulares, dentre outros.
Para as pretensões do presente trabalho, contudo, esses
debates são irrelevantes. Assim, opta-se por se referir
indistintamente à problemática (como eficácia, efeitos, vinculação,
incidência, etc.) e à terminologia adequada ao problema (eficácia
privada, perante terceiros, etc.), motivo pelo qual o uso de quaisquer
dessas expressões ao longo do texto possui o mesmo significado:
se referir, de modo geral, à possibilidade de os direitos
fundamentais, em controvérsias judiciais envolvendo sujeitos
privados, ditar, de modo determinante ou adicional, a correta
solução para o caso. Dito isso, passa-se a digressões gerais sobre o
tema em questão.
2. Aspectos gerais sobre o tema
Historicamente, afirma-se que a discussão a respeito da
incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas teria se
iniciado nas décadas de 50 e 60 do século XX, na Alemanha
(DUQUE, 2013, p. 40). Ressalte-se que, comumente, os debates
sobre o tema se centram em uma questão anterior – qual seja, se os
direitos fundamentais, de fato, devem ser aplicados às relações
jurídicas entabuladas por particulares e, caso se aceite tal
vinculação, em quais hipóteses isso ocorreria, e de que modo
(DUQUE, 2013, p. 40).
Quanto à rejeição da eficácia desses direitos perante terceiros,
os argumentos comumente aduzidos2 se reportam à autonomia
privada (o reconhecimento dessa aplicação implicaria a negação da
autonomia privada dos particulares), à suposta supressão da
autonomia científica do direito privado, bem como à ocorrência de
uma insegurança jurídica em virtude da aceitação da tese
(STEINMETZ, 2004). Entretanto, conforme Steinmetz (2004),
atualmente, expressiva doutrina, bem como a jurisprudência de
diversos países, aceitariam essa vinculação dos particulares a
direitos fundamentais, motivo pelo qual restariam mais frutíferas as
discussões a respeito do modo como tal eficácia se daria3.
Nesse âmbito, duas grandes vertentes teóricas foram
elaboradas: as teorias da eficácia indireta (mediata) dos direitos
fundamentais, bem como as da eficácia direta (imediata),
destacando-se, ademais, posições intermediárias que negam a
utilidade dessa contraposição, como o faz Robert Alexy (2008). Para
o primeiro grupo, esses direitos seriam aplicados também nas
relações privadas, mas dependeriam da mediação estatal
legislativa ou judicial, quando da interpretação para tanto. Assim,
não se poderia aplicar os direitos fundamentais ex constitutione,
expressão utilizada por Steinmetz (2004).
Desse modo, a mediação legislativa daria concretude aos
direitos fundamentais, criando regras de direito privado que,
amparadas nesses direitos, permitiriam a sua incidência nas
relações entre os particulares. Ocorre que, conforme ressaltado, as
teorias da eficácia indireta reconhecem a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas não apenas por meio de uma
mediação legislativa, mas também judicial. Nesse sentido, essa
poderia se dar ao menos de duas formas, de acordo com Steinmetz
(2004, p. 145): quando os magistrados interpretam e aplicam os
textos de normas privadas, em conformidade aos direitos
fundamentais (técnica da interpretação conforme os direitos
fundamentais) e, ademais, mediante o preenchimento do conteúdo
das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados do direito
privado com os valores que defluem desses direitos. Nesta hipótese,
a adoção de cláusulas gerais permitiria aos juízes promover uma
infiltração dos direitos fundamentais na legislação privada,
contribuindo para a efetivação da força de irradiação desses direitos
nos âmbitos jurídico-privados4.
Paradigmática no reconhecimento dessa vinculação dos
particulares, e compreendida como uma expressão da teoria indireta
em questão, seria a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional
Federal alemão (Bundesverfassungsgericht) no caso Lüth, datada
de 1958 (DUQUE, 2013, p. 231; SILVA, 2005, p. 80; STEINMETZ,
2004, p. 136). Na ocasião, considerando que qualquer disposição de
direito privado deveria ser interpretada à luz dos direitos
fundamentais, tal tribunal considerou indevida a indenização
concedida na instância inferior por ter Erich Lüth proposto um
boicote a um filme do diretor Veit Harlan, em razão do direito à
liberdade de expressão5 (SILVA, 2005, p. 80). A disposição de direito
privado em questão, lida conforme esse direito fundamental, seria,
especialmente, a cláusula dos bons costumes constante no § 826
do Código Civil alemão, que determinaria o dever de indenizar
àquele que, agindo de forma contrária aos bons costumes, causar
prejuízo a outrem (SILVA, 2005, p. 80).
Do ponto de vista teórico, uma das doutrinas incipientes no
debate alemão a respeito da eficácia privada dos direitos
fundamentais, adotando a vertente mediata quanto à questão, seria
a de Günther Durig (DUQUE, 2013, p. 195; STEINMETZ, 2004, p.
136). Para esse jurista, os direitos fundamentais constituiriam uma
parte especial de um sistema de valores, mas que, apesar disso,
não poderiam ser aplicados diretamente no tráfego jurídico privado,
visto que todos os demais particulares também seriam portadores
de direitos fundamentais (DUQUE, 2013, p. 197). Apesar disso, o
conteúdo valorativo que expressam preencheria os conceitos
privados, bem como as cláusulas gerais, em graus variados de
intensidade (DUQUE, 2013, p. 196).
Assim, os direitos fundamentais, em maior ou menor grau, devem
concretizar os conceitos jurídicos indeterminados e as cláusulas gerais
como linhas diretivas de interpretação, clarificando-as [...], acentuado ou

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