A formação dos contratos eletrônicos na sociedade digital

AutorFrederico Price Grechi
Páginas197-238
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A FORMAÇÃO DOS CONTRATOS
ELETRÔNICOS NA SOCIEDADE DIGITAL
Frederico Price Grechi
Pós-Doutor, Doutor e Mestre em Direito pela UERJ. Advogado, Árbitro, Parecerista
e Professor (Emerj). Diretor da Vice-Presidência Imobiliária do Centro Brasileiro de
Mediação e Arbitragem – CBMA. Presidente da Comissão de Direito Agrário do IAB e
da OAB/RJ. Vice-Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RJ.
“The next generation of lawyers will no longer sit in isolation of one another and of technolo-
gy. They must learn not jus to be team players but also, in my opinion, they must be trained to
be capable of developing the systems that will replace lawyers’old ways of working. For this
purpose, we will need to teach our lawyers to be legal technologists, process analysts, know-
ledge engineers, systems designers, risk managers, and data scientists” (Richard Susskind)1
Sumário: 1. Introdução – 2. Breve digressão histórica da codicação civil brasileira. Da sociedade
rural à sociedade digital – 3. Evolução da formação dos contratos: do suporte físico ao suporte
eletrônico (digital); 3.1 A formação dos contratos inteligentes (smart contracts); 3.2 Formação da
convenção processual eletrônica; 3.3 Formação da escritura notarial eletrônica.
1. INTRODUÇÃO
É uma honra participar da obra coletiva em homenagem ao aniversário de 20 (vin-
te) anos ao Código Civil de 2002, promulgado pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2001.
Estas breves ref‌lexões iniciais são dedicadas aos mestres Augusto Teixeira de
Freitas, Clóvis Beviláqua, Caio Mário da Silva Pereira2, Orlando Gomes3, Miguel Re-
ale, José Carlos Moreira Alves, Agostinho de Arruda Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert
1. Cf. SUSSKIND, Richard. Prefácio. In: FEIGELSON, Bruno; BECKER, Daniel; RAVAGNANI, Giovani. (Coord.).
O advogado do amanhã: estudos em homenagem ao Professor Richard Susskind. São Paulo: Ed. RT, 2016. p.
8: “A próxima geração de advogados não f‌icará mais isolada da outra e da tecnologia. Eles devem aprender
não apenas a ser jogadores de uma equipe, mas também, na minha opinião, devem ser treinados para serem
capazes de desenvolver os sistemas que substituirão as antigas formas de trabalho dos advogados. Para tanto,
precisaremos ensinar nossos advogados a serem tecnólogos jurídicos, analistas de processos, engenheiros do
conhecimento, designers de sistemas, gerentes de risco e cientistas de dados” (tradução livre).
2. Foi autor do projeto de Código de Obrigações é composto por 952 artigos, apresentado no dia 25 de dezembro
de 1963 contendo invocações na sua estrutura, tais como os contratos de parceria rural, edição, bancários
e concursos públicos. Conf‌ira-se, por todos, TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Aspectos da Contribuição
de Caio Mário ao Direito Civil brasileiro. Informativo jurídico da biblioteca Ministro Oscar Saraiva, v. 16, n.
1, p. 1-74, Jan./Jul. 2004.
3. Cf. GOMES, Orlando. Código civil: projeto Orlando Gomes. Rio de Janeiro: Forense, 1985. O projeto 3.771,
de 1966, continha quatro livros: das Pessoas, do Direito de Família, do Direito das Coisas, do Direito das
Sucessões.
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Vianna Chamoun, Clóvis do Couto e Silva e Torquato Castro, jurisconsultos que con-
tribuíram para o aperfeiçoamento e promulgação das codif‌icações civis brasileiras4.
Também registro a minha admiração e respeito aos cultos Professores Caitlin
Sampaio Mulholland5 e Guilherme Magalhães Martins6, estudiosos do tema objeto
desta curta ref‌lexão.
A manipulação da tecnologia é umas mudanças sugeridas por Richard Susskind
no seu inovador e disruptivo ensaio sobre o “advogado do amanhã”. Helder Galvão
adverte que “é dever do advogado antecipar-se a essa mudança tecnológica. O desaf‌io,
portanto, não deve ser voltado para a automação de práticas jurídicas já estabeleci-
das, mas de criar novas práticas, jamais consideradas possíveis até então. Importante
notar que grande parte das tecnologias são disruptivas e, portanto, a mera adoção já
conf‌iguraria uma mudança radical no workf‌low do advogado”7.
Um curto passeio pela História do Direito a seguir fornecerá ao “direito atual
a compreensão dessa retrospectiva, esclarecendo dúvidas, afastando imprecisões,
levantando, passo a passo, a verdadeira estrutura do ordenamento, seus institutos
4. Embora o presente artigo tenha por f‌inalidade prestigiar o Código Civil brasileiro de 2002, seja permitido
registrar a nossa admiração aos colaboradores do projeto do Código Comercial brasileiro que deu origem
A propósito da notícia histórica dos trabalhos preparatórios do Código Comercial brasileiro, conf‌ira-se
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 16 e 42: “O espírito
nacional do jovem Império passou a exigir, como af‌irmação política de sua soberania, a criação de um direito
próprio, consentâneo com os seus interesses e desenvolvimento. A Real Junta de Comércio, Agricultura,
Fábricas e Navegação desde logo resolvera encarregar Silva Lisboa de organizar o Código de Comércio.
A iniciativa recrudesceu em 1832, quando composta por Antônio Paulino Limpo de Abreu, José Antonio
Lisboa, Inácio Ratton, Guilherme Midosi e Lourenço Westin, este cônsul da Suécia, para elaborar um projeto
de Código Comercial. Esta comissão, presidida por Limpo de Abreu e depois por José Clemente Pereira,
desincumbiu-se do encargo, tendo sido o projeto enviado à Câmara em 1834. Após a morosa tramitação
desse projeto, acuradamente debatido nas duas Casas Legislativas, foi sancionada a Lei 556, de 25 de junho
de 19850, que promulgava o Código Comercial brasileiro. (...) O sistema do Código de 1850, como resulta
desta exposição, é subjetivo, pois assenta na f‌igura do comerciante, não evitando, porém, o tempero ob-
jetivo, enumeração legal dos atos de comércio, para esclarecer o que seja mercancia, elemento radical na
conceituação do comerciante”.
Tributa-se a José da Silva Lisboa o pioneirismo do Direito Comercial brasileiro. Cf. FORGIONI, Paula A.
A evolução do direito comercial brasileiro: da mercancia ao mercado. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2012. p. 31:
“A doutrina comercial brasileira foi codif‌icada ao longo dos últimos 200 anos. [1. Seguindo as lições de
Waldemar Ferreira, identif‌icamos a primeira obra de direito comercial brasileiro no Princípios de direito
mercantil e leis de marinha, de José da Silva Lisboa, nosso Visconde de Cairu. Trata-se do ‘primeiro tratado
de direito comercial português e, ao mesmo tempo, o primeiro tratado de direito comercial brasileiro, cujas
primeiras linhas nele f‌icaram traçadas’ (Waldemar Ferreira, As directrizes do direito mercantil brasileiro,
45). Segundo registro de Antonio Penalves Rocha, sua primeira edição ocorreu no ano de 1798, em Lisboa
(José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, 51). Alfredo de Assis Gonçalves Neto também considera Cairu o
‘precursor do nosso Direito Comercial’ (Apontamentos de direito comercial, 61)]”.
5. Cf. MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. Internet e contratação: panorama das relações contratuais eletrônicas
de consumo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
6. Cf. MARTINS, Guilherme Magalhães. Formação dos contratos eletrônicos de consumo via internet. 2. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
7. Cf. GALVÃO, Helder. Arranjos alternativos e o modelo Freemium. In: FEIGELSON, Bruno; BECKER, Daniel;
RAVAGNANI (Coord.). O advogado do amanhã: estudos em homenagem ao Professor Richard Susskind.
São Paulo: Ed. RT, 2016. p. 8.
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mais sólidos e perenes, suas bases de fundo e suas características formais, até alcançar
a razão de ser de seu signif‌icado e conteúdo”8.
2. BREVE DIGRESSÃO HISTÓRICA DA CODIFICAÇÃO CIVIL BRASILEIRA. DA
SOCIEDADE RURAL À SOCIEDADE DIGITAL
Os juristas têm a incumbência de sensibilizar o legislador para a necessidade
da consciência histórica, nos exortar Natalino Irti, para quem: “a virtude do código
reside precisamente em sua duração histórica: em nascer sob a forma efêmera de um
regime, em passar pelos anos de redescoberta democrática e agora em se aproximar
do século XXI. Nós, juristas, estudiosos do direito civil e do direito comercial, temos
o dever – creio eu – de salvaguardar e defender esta virtude unif‌icadora: a única, ou
entre poucas, que pode hoje salvar a humanidade integral do cidadão”9.
No início do século XIX, a noção de um Código geral sobre o Direito Civil gravita
em torno da pretensão completude e contendo limites precisos, melhoramentos e
modif‌icações na legislação vigente, e, ainda segundo F. Von Savigny10, a compreender
dois elementos: primeiro, o direito já existente; segundo, leis novas.
No Brasil, ao tempo da obra dos codif‌icadores, o quadro econômico e social da
sociedade brasileira era predominante agrário e colonial. A respeito da sociedade
rural brasileira na época dos processos de codif‌icação, Orlando Gomes leciona que
“a estrutura agrária mantinha no país o sistema colonial, que reduzia a sua vida
econômica ao binômio da exportação de matérias-primas e gêneros alimentares e
da importância de artigos fabricados. A indústria nacional não ensaiara os primeiros
passos. Predominavam os interesses dos fazendeiros e dos comerciantes, aqueles pro-
duzindo para o mercado internacional e estes importando para o comércio interno.
Esses interesses eram coincidentes. Não havia, em consequência, descontentamentos
que suscitassem grandes agitações sociais”11.
8. Cf. AZEVEDO, Luiz Carlos de. Introdução à história do direito. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2007. p. 23.
9. Cf. IRTI, Natalino. Codice civile e società politica. Roma-Bari: Laterza, 1995. p. 70.
10. Cf. SAVIGNY, F. Von. De la vocación de nuestro siglo para la legislación y la ciencia del derecho. Traducción
del alemán de Adolfo G. Posada. Buenos Aires, Editorial Heliasta S.R.L., 1977. p. 51-59: “(...) toda aquella
parte del derecho vigente que no debe ser cambiada, sino conservada, se debe fundamentalmente reconocer
y f‌ielmente declarar, cosas estas que correspondenla una a La materia, y la outra a la forma. (...) Destinado
el Código a ser fuente única de derecho, es menester, se disse, que contenga efectivamente la solución de
cualquier caso que pueda presentarse”. (...) La administración de lajusticia estará aparentemente governada
por el Código, pero de hecho lo estará por algo extraño al mismo, que será, em def‌initiva, la verdadeira fuente
dominante del derecho. (...), porque el Código, por sua novedad, por la af‌inidade delmismo com lãs ideas
del tempo, y por sua exterior importância, atraeráhaciasí toda laatención, distrayéndola de la verdadeira
fuente del derecho, de modo que ésta, relegada en la sombra, se verá privada necesariamente de aquella
fuerza que solo la nación puede darle, y sin La cual es imposibe que alcance un estado vigoroso y f‌lerte, de
verdadeiro império”.
11. Cf. GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 25-27: “O quadro econômico e social em que se processa a obra dos codif‌icadores, de 1899
a 1916, deve ser traçado, em suas linhas gerais, para a melhor compreensão do sentido da codif‌icação, me-
lhor aferição do seu valor, e melhor f‌ixação das suas coordenadas. (...). Para a organização social do país, a
racionalização dos interesses dos fazendeiros e comerciantes se processou por intermédio dessa classe, que
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