Interpretação dos contratos: parâmetros e critérios

AutorJosé Roberto de Castro Neves
Páginas173-195
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INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS:
PARÂMETROS E CRITÉRIOS
José Roberto de Castro Neves
Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre
em Direito pela Universidade de Cambridge, Inglaterra. Professor de Direito Civil da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e da Fundação Getúlio Vargas. Advogado.
Sumário: 1. Introdução – 2. Vontade e manifestação – 3. Intenção das partes – vontade real – 4. Teoria
da conança – 5. Reserva mental – 6. A autonomia hermenêutica – sensus non est inferendus, sed
efferendus – 7. O “poder” das partes e vulnerabilidade – a análise da força das partes na interpre-
tação do contrato – 8. Interpretação contra stipulatorem – interpretação contrária a quem redige
o contrato – 9. Interpretação de negócios graciosos – 10. Interpretação como processo: formas de
interpretação; 10.1 Interpretação literal; 10.2 Interpretação histórica; 10.2.1 A análise da formação
dos contratos; 10.2.2 Os aspectos subjetivos da relação entre as partes; 10.2.3 Análise da matéria
do contrato; 10.3 Interpretação sistemática; 10.4 Interpretação teleológica – 11. Interpretação com
base na boa-fé; 11.1 O comportamento das partes ; 11.2 Razoável negociação das partes – 12.
Interpretação econômica – 13. A prática do mercado – 14. Interpretação conforme ordenamento
jurídico – 15. Interpretação em favor da conservação dos negócios; 15.1 Interpretação integrativa – 16.
Liberdade de as partes estabelecerem regras de interpretação para seus contratos – 17. Conclusão:
o propósito nal da interpretação.
1. INTRODUÇÃO
“You kiss by the book”1. Eis como a jovem Julieta, na peça de Shakespeare, reage
logo após ser beijada pela primeira vez por Romeu.
Como traduzir “You kiss by the book”? Uma tradução literal seria: “Você beija
pelo livro” (ou pela cartilha). F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros, numa conhe-
cida versão para o português, verteu assim: “Beijais segundo as maneiras elegan-
tes”.2 Já Carlos Alberto Nunes traduz: “Beijais tal qual os sábios”.3 Segundo Beatriz
Viégas-Faria: “Beijais tão bem!”.4 Já Onestaldo de Pennafort traduz: “Sois perito na
arte de beijar!”.5 Numa tradução clássica de Romeu e Julieta para francês, feita por
François-Victor Hugo, a fala de Julieta é a seguinte: “Vous avez l’art des baisers.”6
1. William Shakespeare. Romeu e Julieta, Ato I, Cena 5.
2. William Shakespeare. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, v. I, 1995. p. 304.
3. William Shakespeare. Romeu e Julieta. São Paulo: Edições Melhoramentos, s/a. p. 45.
4. William Shakespeare. Romeu e Julieta. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 46.
5. William Shakespeare. Romeu e Julieta. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1940. p. 60.
6. William Shakespeare. Les amants tragiques. Paris: Pagnerre Libraire-Éditeur, 1860. t. VII, p. 259.
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isto é, “tens a arte do beijo”. Para Barbara Heliodora, com outra conotação, seria “É
tudo decorado”.7
Shakespeare merece sua fama. Julieta não diz: “Que beijo maravilhoso!”, tor-
nando óbvia sua opinião acerca do beijo que acabara de receber. Shakespeare coloca
na boca de Julieta: “Você beija como no livro”. O que isso signif‌ica?
Julieta tem 13 anos quando recebe o beijo. Possivelmente, trata-se do seu pri-
meiro beijo. Ela apenas conhece o beijo amoroso pelos livros – nos romances, que ela
supostamente leu. Assim, o beijo, que Romeu acaba de lhe dar, pode ser a materiali-
zação do que ela já havia lido. Assim, ela diz: “você me beija tal como li nos livros”.
Por outro lado, a provocação entre os dois jovens começa com uma brincadei-
ra entre o santo e o profano. Romeu quando se aproxima de Julieta, galanteador,
compara seus lábios a dois peregrinos, que desejam ir ao santuário, sendo que pelo
beijo receberia a absolvição de seus pecados. Assim, quando Julieta diz: “Você beija
como no livro” (“You kiss by the book”), ela, segundo essa possível interpretação,
se refere à Bíblia, que era “o” livro. Portanto, seria um beijo também santo, seguindo
o contexto da conversa.
“Beijar como no livro” pode signif‌icar que se trata de um beijo perfeito, modelar,
um gabarito, como muitos tradutores preferiram adotar. Julieta, portanto, elogiava o
jovem Romeu. Para outros, como Bárbara Heliodora, “beijar como no livro” signif‌ica
um beijo protocolar, uma mera repetição de algo estudado, despido de espontaneida-
de. Se assim for, Julieta desaf‌iava o jovem, reclamando que o beijo recebido poderia
ter algo mais. Era como se a adolescente dissesse: “você faz o mesmo com as outras”.
Af‌inal, Julieta, logo após o ato de Romeu, queria dizer que recebeu apenas um
beijo protocolar – algo decorado – ou que aquele beijo seguia a perfeição?
Jamais teremos a resposta – acredito que Shakespeare, de caso pensado, desejava
exatamente isso: provocar nossa habilidade de interpretar. Para nós, leitores, resta
a felicidade de pensar – isso mesmo: ref‌letir, ponderar, elucubrar, raciocinar –, para
retirar daquelas palavras seu verdadeiro e melhor sentido.
Ao conviver, somos forçados a interpretar tudo ao nosso redor. No mundo jurí-
dico, essa necessidade de interpretar é ainda mais fundamental. Muito comumente,
as discussões travadas nos tribunais não se relacionam propriamente a conceitos
jurídicos, ou às provas materiais apresentadas pelas partes, porém ao alcance dos
contratos celebrados. Isso porque nem sempre a redação dos contratos apresenta
apenas uma possível leitura, mas diversas acepções, todas aceitáveis.
Diante dessa divergência acerca dos efeitos do contrato que celebraram, será
necessária a atuação do prof‌issional do Direito.
Segundo o conceito clássico, interpretar o contrato é extrair a vontade comum
das partes: o que elas convencionaram quando celebraram o acordo.
7. William Shakespeare. Romeu e Julieta. Rio de Janeiro: Lacerda Editora, 2004. p. 57.
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