A função preventiva e o horizonte da tutela positiva

AutorAntonio Dos Reis Júnior
Páginas93-133
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A FUNÇÃO PREVENTIVA
E O HORIZONTE DA TUTELA POSITIVA
De tudo o que já foi exposto, infere-se que o âmbito de atuação das funções re-
paratória-compensatória e punitiva-pedagógica se concentra em torno das chamadas
sanções negativas. A reação ao ilícito, seja na forma de busca pela reparação integral
do dano, seja por meio da imposição de penalidade, conf‌igura-se como modelo con-
sagrado de tutela negativa.1 Contudo, não apenas de reação ao ilícito vive o Direito. É
possível que o ordenamento contenha regras de estímulo a certos comportamentos,
como também de estabelecimento de padrões de conduta que servem tanto para
reforçar o “agir humano” em conformidade com a lei, como também para alcançar
a máxima medida de proteção ao interesse juridicamente protegido.
Na responsabilidade civil, são duas as formas conhecidas de se fazer tutela
positiva dos interesses merecedores de proteção: (i) reconhecendo-lhe uma f‌ina-
lidade preventiva específ‌ica, com espaço de atuação anterior à lesão,2 cujo escopo
é estabelecer parâmetros de conduta que devem ser seguidos de modo a evitar a
realização de certos riscos, com a ocorrência de danos conhecidos, ou não, que se
pretende esquivar; (ii) no momento posterior ao dano, no domínio da função re-
paratória-compensatória, implementar técnicas de indenização que se apresentem
com grau de ef‌icácia máximo na realização do interesse lesado, abrindo-se leque
de obrigações distintas daquele de natureza pecuniária, especialmente quando o
interesse violado é extrapatrimonial.3 Além destas duas visões, ainda se apresentará
1. A tutela negativa, como expressão mais comum de sanção jurídica (sanção negativa), é fator sempre
reativo do direito, atuando como resposta à determinada perda ou dano, cujo desfalque já ocorreu ou
está ocorrendo. Daí o sentido negativo. O que se verá adiante é que o valor da pessoa não pode encerrar
exclusiva proteção negativa, exigindo-se uma consideração também positiva: “nenhuma previsão especial
poderia ser exaustiva porque deixaria de fora algumas manifestações e exigências da pessoa que, em razão
do progresso da sociedade, exigem uma consideração positiva” (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na
legalidade constitucional, cit., p. 765).
2. Distingue-se, portanto, do viés “preventivo” que se identif‌ica na já aludida “função pedagógica”, na medida
em que esta busca a dissuasão – e, portanto, a prevenção – após a ocorrência do dano, visando evitar a sua
repetição no futuro. “Assume consistência a oportunidade de uma tutela preventiva: o ordenamento deve
fazer de tudo para que o dano não se verif‌ique e seja possível a realização efetiva das situações existenciais”
(PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional, cit., p. 768).
3. A medida alternativa mais famosa e de grande ef‌icácia é a chamada “tutela inibitória”, ainda que possa ela
surgir após o início da atividade danosa, reduzindo um pouco o caráter preventivo global, mas suf‌iciente a
prevenir o dano ulterior: “Il rimedio del danno non è più meramente preventivo quando sussegue ad um’at-
tività che ha prodotto più che un timore, um pericolo di danno, ad um’attività, cioè, che ga già cominciato
lo svolgere la sua eff‌icacia lesiva, ed è rivolto ad arrestare lo sviluppo del danno mediante la cessazione
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FUNÇÃO PROMOCIONAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL • Antonio dos Reis JúnioR
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uma terceira forma de tutela positiva, a ser desenvolvida no capítulo f‌inal, pela aqui
designada “função promocional”, (iii) segundo a qual se buscará realizar o valor da
máxima efetividade no espectro da função reparatória-compensatória dos danos,
através do estímulo à reparação espontânea dos danos.4
Nesta investigação, discorre-se sobre uma das formas conhecidas de tutela
positiva, a que se apresenta por meio da chamada “função preventiva da responsa-
bilidade civil”.
3.1 A FUNÇÃO PREVENTIVA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
A ideia de reconhecer uma função preventiva autônoma à responsabilidade
civil é produto do que a realidade da expansão quantitativa e qualitativa dos danos
ocasionou à esfera jurídica pessoal daqueles envolvidos no contexto da sociedade
dos riscos.5 Por outro lado, é consequência da evolução da dogmática no sentido da
passagem do valor do “patrimônio” ao valor da “pessoa”, como núcleo central de
tutela do ordenamento jurídico civil, na legalidade constitucional.6
O abalo do patrimônio, por si só, talvez não exigisse esforço tão grande, no
sentido de expandir o espectro da responsabilidade civil ao momento pré-danoso.
Somente a proteção integral da pessoa humana demanda que se criem instrumentos
jurídicos e coercitivos para evitar a ocorrência de lesões de certa natureza. Esse é o
momento atual do instituto, que convive com duas grandes frentes de combate ao
dano: a função reparatória e a função preventiva.7
di quell’attività (...). Lo stesso rimedio, certamente, intende prevenire il danno ulteriore, ma dopo che il
danno ha già cominciato a prodursi, talché esso reagisce ad una situazione dannosa” (DE CUPIS, Adriano.
Il danno, cit., p. 12). Mister salientar, contudo, que é possível ação inibitória para evitar a ocorrência de
dano, antes mesmo de sua implementação.
4. Cf. capítulo 4, infra.
5. Já apontava Alvino Lima que “é preciso vencer o dano, o inimigo comum, fator de desperdício e de in-
segurança, lançando mão de todos os meios preventivos e reparatórios sugeridos pela experiência, sem
desmantelar e desencorajar as atividades úteis” (Da culpa ao risco. Revista Forense. v. 84. n. 445. São Paulo:
Forense, jul., 1940, p. 385).
6. “Enquanto o Código Civil [1916] dá prevalência e precedência às relações patrimoniais, no novo sistema
do Direito Civil fundado pela Constituição a prevalência é de ser atribuída às relações existenciais, ou
não-patrimoniais, porque à pessoa humana deve o ordenamento jurídico inteiro, e o ordenamento civil
em particular, assegurar tutela e proteção prioritárias” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. O direito
civil-constitucional. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. [1991]. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010, p. 31).
7. “Le droit de la responsabilité civile ne conservait plus que deux fonctions: l’indemnisation et la prévention
par dissuasion” (TUNC, André. La responsabilité civile, cit., p. 133). Comum ainda a corrente que sustenta
a coexistência das três funções autônomas: reparatória, punitiva e preventiva, como sintetiza Pietro PER-
LINGIERI: “L’imputazione, soggetiva e oggetiva, dell’evento lesivo spiega, mediante i suoi elementi che si
rifanno a criteri di normalità, l’intento della legge di assegnare alla disciplina della responsabilità civile una
funzione sanzionatoria nei confronti del danneggiante. L’obligo al risarcimento - sebbene non assuma il
carattere di pena, come in altre epoche storiche – ha il senso di far rispondere in modo consistente del fatto
dannoso estendendo la responsabilità anche per i danni non prevedibili al momento della commissione
del fato. La legge tende a realizzare anche una funzione di prevenzione: la minaccia del risarcimento e la
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Em termos gerais, a função preventiva, em sentido estrito, é aquela que indica
a absorção, pela responsabilidade civil, de uma intencionalidade atuante sobre o
comportamento dos agentes que, pelo exercício de suas atividades, podem causar
danos a outrem.8 O horizonte de sua atuação é sempre anterior ao dano que se quer
obliterar. O seu campo de incidência não pode se confundir com as medidas que
se busca adotar após a ocorrência da lesão ao interesse juridicamente protegido.9
Não pode ser delineada como o efeito preventivo (dissuasório) ao qual nor-
malmente se faz referência por ocasião da imposição de penas civis.10 Conquanto
representem f‌inalidades semelhantes (como se verá adiante), o que aqui se chama de
função preventiva só pode incidir sobre as situações pré-danosas.11 Isso não signif‌ica
negar a existência de efeito preventivo na já aludida função punitiva, mas apenas se
faz necessário delimitar o âmbito de atuação da f‌inalidade preventiva stricto sensu.
Tal distinção é importante porque se volta ao foco do problema: o reconhecimento
da necessidade de criar instrumentos preventivos ef‌icientes que não dependam dos
modelos tradicionais de dissuasão pela imposição de sanções tardias, mormente em
se considerando as hipóteses cada vez mais crescentes de novos danos que, uma
vez consolidados, são absolutamente irreparáveis, ou de difícil “compensação”.12
Nos ordenamentos de tradição romano-germânica, reconhece-se a necessidade
de aperfeiçoamento da responsabilidade civil, pela via da tutela positiva preventiva,
como acolhimento de um princípio ou padrão de prevenção (e de precaução), que
maturità delle persone, infatti, dovrebbero indurre queste ad evitare la commissione di illeciti. Le funzioni
sanzionatoria e di prevenzione si aggiungono a quella riparatoria” (Manualle di diritto civile, cit., p. 897).
8 . “O primeiro impulso do sistema de responsabilidade civil reside na busca constante em prol da minimização
dos danos causados a outrem, isto é, de uma prevenção dos fatos danosos”. É a tradução livre de “l’impulsion
première du système de responsabilité civile, (...), réside dans sa constante recherche d’une minimisation
des dommages causés à autrui, c’est-à-dire d’une prévention des faits dommageables” (VINEY, Geneviève.
Traité de droit civil: introduction à la responsabilité, cit., p. 155). É a mesma ideia geral da vertente da análise
econômica do direito, que busca “réaliser le caractère optimal de la prévention” (MAITRE, Grégory. La
responsabilité civile à l’épreuve de l’analyse économique du droit. Paris: LGDJ, 2005, p. 115).
9. Como bem destaca Jean Carbonnier, ao contrário da ef‌icácia preventiva natural das sanções punitivas, a
prevenção, em sentido estrito, coloca-se como “antevisão” da sanção, cuja ef‌icácia depende de medidas
preventivas administrativas: “les criminalistes connaissent bien la dialectique prévention/sanction, mais
ils ne manquent pas d’observer que la sanction, par son exemplarité, exerce aussi un rôle préventif, tandis
que la prévention, par les contraintes qu’elle suppose, est souvent sentie avec un avant-goût de sanction
(la prévention civile, pour être eff‌icace, appelle des mesures de police administrative) (Droit civil, t. II, cit.,
p. 2259).
10. A pena privada pecuniária (como a multa civil) é apenas um dos instrumentos de prevenção, ainda que
seja o mais aclamado pela doutrina especializada, e não representa, necessariamente, uma punição pela
infração mais grave, que se quer evitar, mas instrumento coercitivo: “a previsão de incidência de multas
civis, por si só, parece concretizar o ideal de ‘prevenir para não precisar punir’” (VENTURI, Thaís Goveia
Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva, cit., p. 331). Como destaca António PINTO MONTEIRO,
“surge, pois, como medida compulsória, de coerção ao cumprimento” (Cláusula penal e indemnização.
Coimbra: Almedina, 1999, p. 39).
11. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, cit., p. 119-120.
12. Sobre a possibilidade de dispor de diversas medidas preventivas, para além da imposição de pena civil,
com destaque para as medidas inibitórias e a regulamentação legislativa e administrativa, cf. ALPA, Guido;
BESSONE, Mario. La responsabilità civile, cit., p. 171-198.
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