A função tradicional da responsabilidade civil em perspectiva: a tutela reparatória-compensatória do dano

AutorAntonio Dos Reis Júnior
Páginas1-50
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A FUNÇÃO TRADICIONAL
DA RESPONSABILIDADE CIVIL
EM PERSPECTIVA: A TUTELA
REPARATÓRIA-COMPENSATÓRIA
DO DANO
Os estudos da responsabilidade civil costumam iniciar-se resgatando a memó-
ria do preceito romano segundo o qual a ninguém é dada a prerrogativa de causar
prejuízo a outrem (alterum non laedere, ou, simplesmente, neminem laedere).1 Por
essa razão civilizatória, o Estado organiza as suas instituições de modo a estruturar
um conjunto de regras que preveem as sanções cabíveis pelo seu descumprimento,
sendo elas preferencialmente dotadas de coercibilidade. E mais, busca-se alcançar, a
favor da vítima, tanto quanto possível, o retorno ao estado de coisas anterior ao dano,
foco no qual se deve apontar a norma jurídica. Estuda-se, portanto, num primeiro
momento, os modelos de conduta desejados e, por conseguinte, as consequências
pelo descumprimento dos preceitos, f‌ixando-se os elementos ou requisitos para a
incidência da responsabilidade. A estrutura dogmática está, f‌inalmente, formatada.2
De maneira geral, portanto, a responsabilidade civil tem sido estudada sob uma
ótica fundamentalmente estrutural, a descuidar de seus aspectos funcionais, muito
em razão da herança conceitualista íntima à doutrina jurídica.3 Todavia, a perspectiva
civil-constitucional, que ora se adota, parte do pressuposto de que a estrutura dos
1. “O principal objetivo da ordem jurídica, af‌irmou o grande San Tiago Dantas, é proteger o lícito e reprimir
o ilícito. (...). Fala-se, até, em um dever geral de não prejudicar ninguém, expresso pelo Direito Romano
através da máxima neminem laedere” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 11.
ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 1).
2. É comum, na manualística universitária, inaugurar o estudo da responsabilidade segundo perspectiva
analítica-conceitual dos seus “elementos essenciais”, tais como “ação ou omissão, culpa ou dolo do agente,
relação de causalidade, e o dano experimentado pela vítima” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabi-
lidade civil. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 4 e 33).
3. Sobre a inf‌luência do modo de pensar da pandectística e do positivismo científ‌ico, indispensável a leitura
de Franz WIEACKER (História do direito privado moderno. Trad. A. M. B. Hespanha. 3. ed. Lisboa: Fun-
dação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 491-524). Como ponto de partida histórico, sabe-se que foi Puchta
quem, “com inequívoca determinação, conclamou a ciência jurídica do seu tempo a tomar o caminho de
um sistema lógico no estilo de uma ‘pirâmide de conceitos’, decidindo assim a sua evolução no sentido de
uma ‘Jurisprudência dos conceitos formal” (LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 7. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 230).
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FUNÇÃO PROMOCIONAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL • Antonio dos Reis JúnioR
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institutos e categorias só pode ser determinada a partir de sua função, a denotar a ideia
de que só é possível identif‌icar como um instituto é, após revelar-se para que ele serve.4
É por atendimento a esta premissa metodológica que o estudo analítico da res-
ponsabilidade civil só pode vir precedido e acompanhado de sua análise funcional.
Contudo, como todo instituto de direito civil, a Responsabilidade Civil representa
modelo complexo e dinâmico, inserido dentro do sistema jurídico civil-constitu-
cional, marcado pela pluralidade de fontes e pela multifacetada escala de valores e
princípios, resultando em disciplina marcadamente profunda e intrincada, aberta à
constante evolução e adaptação aos novos tempos.
1.1 A DINÂMICA HISTÓRICO-EVOLUTIVA DA RESPONSABILIDADE CIVIL: DE
PRECEITO CIVILIZATÓRIO A COROLÁRIO DA LIBERDADE INDIVIDUAL
A responsabilidade civil, como todo e qualquer instituto de direito, só pode
ser verdadeiramente compreendida se levadas em consideração as circunstâncias
nas quais está inserida, em termos de espaço e tempo.5 Em última análise, não se
pode pretender absorver a essência do objeto investigado, mesmo naquilo que se
convencionou chamar “Ciência do Direito”,6 sem a consideração de que a disciplina
jurídica só pode ser determinada pela conexão simbiótica entre os textos legais e a
realidade material, isto é, o f‌luxo real das relações jurídico-sociais.7
Partindo da premissa de que a “norma jurídica” é o resultado da interpretação,
com f‌ins aplicativos,8 entre o conteúdo do texto legal e a relação material que se
4. É emblemática a passagem de Pietro PERLINGIERI ao af‌irmar que “o fato jurídico, como qualquer outra
entidade, deve ser estudado nos dois perf‌is que concorrem para individuar sua natureza: a estrutura (como
é) e a função (para que serve). (...) A função do fato determina a estrutura, a qual segue – não precede – a
função” (O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 642).
5. A abordagem da historicidade do direito tem contribuição fundamental da vertente da “teoria fenome-
nológica do direito”, que parte da f‌ilosof‌ia de Edmund HUSSERL, para quem o mundo do homem é um
“mundo histórico”. Neste sentido, a contribuição de seu f‌ilho Gerhart HUSSERL (Diritto e tempo: saggi di
f‌ilosof‌ia del diritto. Milano: Giuffrè, 1998, p. 21 e ss.).
6. “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo. (...). Como teoria, quer única e exclusivamente
conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não
lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não
política do Direito (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 1). Numa
vertente semelhante, num sentido de apresentar uma teoria científ‌ica do direito, Cf. Herbert L. A. HART,
para quem o seu objetivo é “fornecer uma teoria sobre o que é o direito, que seja, ao mesmo tempo, geral e
descritiva. Geral, no sentido de que não está ligada a nenhum sistema ou cultura jurídica concretos, mas
procura dar um relato explicativo e clarif‌icador do direito como instituição social e política complexa,
com uma vertente regida por regras (e, nesse sentido, ‘normativa’)” (O conceito de direito. Trad. A. Ribeiro
Mendes. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 300-301).
7. Seja consentido remeter a REIS JUNIOR, Antonio dos. A metodologia do direito civil-constitucional e a
teoria da interpretação unitária do direito: de Friedrich Müller a Pietro Perlingieri. Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica, no prelo.
8. “A complexidade do ordenamento, no momento de sua efetiva realização, isto é, no momento hermenêu-
tico voltado a se realizar como ordenamento do caso concreto, só pode resultar unitária: um conjunto de
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apresenta diante do intérprete,9 tornando a praxe (ou o dado concreto) um elemento
essencial para a qualif‌icação jurídica, conclui-se que cada instituto de direito terá seu
signif‌icado moldado pela função a qual ele é destinado a cumprir em determinada
localidade, com suas idiossincrasias socioculturais (espaço), e em certo momento
histórico, pelo atravessa aquela sociedade (tempo). É em virtude dessa historicidade
das categorias jurídicas e,10 portanto, da responsabilidade civil, aliada à percepção
de um sistema aberto de valores,11 que se faz necessário estudá-la de modo a com-
preender os aspectos históricos relevantes que contribuíram para a conformação
de sua função ao longo do tempo, a f‌im de assimilar a sua verdadeira f‌inalidade na
ordem jurídica hodierna, identif‌icar os problemas e desaf‌ios atuais, sua estrutura
fundamental, bem como aquele núcleo duro de valor que lhe é essencial e que reve-
lará o caminho a ser perseguido com vistas ao seu aperfeiçoamento.12
Neste caminho, não é mister empreender maior esforço para mostrar que a
responsabilidade civil tem sofrido transformações das mais intensas desde o seu
surgimento, como medida do Estado para proteger, de maneira efetiva, certos indi-
víduos diante da violação de seus interesses, reconhecidos pelo ordenamento de sua
época, como legítimos e merecedores de tutela.13 Tal f‌inalidade genérica, por certo,
mantém-se desde então, mas com signif‌icado bastante diverso daquele de outrora.
O que se apresenta indubitável é a mutabilidade que incidiu sobre (i) a maneira de
se pensar o sistema de direito, ao longo do tempo, (ii) os fundamentos do instituto
da responsabilidade civil e a construção de sua autonomia; (iii) os bens jurídicos que
deveriam ser protegidos, bem como (iv) a forma de tutelá-los, tanto na perspectiva
do direito material, como no direito processual.
princípios e regras individualizadas pelo juiz que, na totalidade do sistema socionormativo, devidamente
se dispõe a aplicar” (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional, cit., p. 200).
9. Cf., por todos, MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2011. v. I.
10. “Com o transcorrer das experiências históricas, institutos, conceitos, instrumentos, técnicas jurídicas,
embora permaneçam nominalmente idênticos, mudam de função, de forma que, por vezes, acabam por
servir a objetivos diametralmente opostos àqueles originais” (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na
legalidade constitucional, cit., p. 141).
11. Conforme ensina Canaris, todo sistema jurídico é dotado de unidade interior, que deve ser determinada
pela ordem axiológica ou teleológica de princípios, levando-se em consideração a abertura do sistema,
como possibilidade de mutabilidade dos valores ao longo do tempo. Cf. CANARIS, Claus-Wilheim. Pensa-
mento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996,
p. 279-289.
12. Já af‌irmava Karl LARENZ que “se os conceitos procurados hão de ser úteis para o ‘sistema interno’, não
podem ser unicamente conceitos gerais abstratos, que serão, com o progressivo grau de abstracção, cada
vez mais desprovidos de conteúdo” (Metodologia da ciência do direito, cit., p. 686).
13. Já antecipando, de certo modo, a opção pela tutela do “interesse”, marcante a passagem de Rudolf von
IHERING, ao criticar a teoria da vontade e a sua abstração: “Seria tão possível esperar mover uma carroça
de seu lugar através de uma representação acerca da teoria cinemática, quanto a vontade humana através do
imperativo categórico. Este resvala por ela sem deixar vestígios! Fosse a vontade uma potência lógica, então
deveria curvar-se diante da coercitividade conceptual. Todavia, ela é um ente muito real, não mobilizável
por meio de simples deduções lógicas. Faz-se necessária uma real pressão para pô-la em movimento. Este
causador desta pressão real é, para a vontade humana, o interesse” (A f‌inalidade do direito. Trad. Heder
Hoffmann. Campinas: Bookseller, 2002, t. I. p. 47).
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