A função promocional da responsabilidade civil

AutorAntonio Dos Reis Júnior
Páginas135-190
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A FUNÇÃO PROMOCIONAL
DA RESPONSABILIDADE CIVIL
O fenômeno da “Constitucionalização do Direito Civil” provocou profundas
transformações nas relações privadas,1 a demandar, por conseguinte, uma releitura
dos institutos e categorias previstos na dogmática civil. Tudo isso em conformidade
com as regras e princípios consagrados na ordem jurídica constitucional, global-
mente considerada, pondo sempre em relevo a complexidade e unidade inerentes
ao ordenamento jurídico.2
Em síntese, costuma-se identif‌icar como premissas do estudo do direito civil,
à luz da Constituição de República (1988), (i) a supremacia e a força normativa da
Constituição; (ii) a unidade e complexidade do ordenamento; e (iii) a interpretação
com f‌ins aplicativos.3 Paralelamente, associam-se como características marcantes
da metodologia, porque afeitas ao modo de pensamento pós-positivista, (iv) a
consideração da historicidade dos institutos e categorias, (v) a supremacia dos in-
teresses existenciais sobre os de ordem patrimonial; e (vi) a sua releitura funcional
(funcionalização).4
É por meio dessa última, em conexão com as demais premissas e características
marcantes da metodologia, que se identif‌icou um perf‌il de atuação funcional da
responsabilidade civil, sob a forma de tutela positiva, que se conecta a uma caracte-
1. Sobre o fenômeno da necessidade de releitura do Direito Civil à luz da Constituição é indispensável remeter
à leitura de PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar,
2008, p. 569-597. Na doutrina brasileira, Cf. TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a cons-
titucionalização do direito civil. In Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 01-23.
2. Não é despiciendo ressaltar a lição de Pietro Perlingieri, para quem “a complexidade do ordenamento, no
momento de sua efetiva realização, isto é, no momento hermenêutico voltado a se realizar como ordena-
mento do caso concreto, só pode resultar unitária: um conjunto de princípios e regras individualizadas
pelo juiz que, na totalidade do sistema socionormativo, devidamente se dispõe a aplicar” (O direito civil na
legalidade constitucional, cit., p. 200).
3. Como bem sintetizado em PERLINGIERI, Pietro. La dottrina del diritto civile nella legalità costituzionale.
Revista Trimestral de Direito Civil. v. 31, p. 75-86. Rio de Janeiro: Padma, 2007.
4. É a síntese de Maria Celina Bodin de Moraes, em suas palavras: “Diante da consolidação do marco teórico
do direito civil-constitucional, com as suas características essenciais já bastante difundidas – quais sejam:
a prevalência das situações existenciais sobre as patrimoniais (ou a subordinação destas àquelas); a preo-
cupação com a historicidade e a relatividade na interpretação-aplicação do direito; a prioridade da função
dos institutos jurídicos em relação à sua estrutura –, quais perspectivas podem ser vislumbradas? (...).”
(Perspectivas a partir do direito civil-constitucional. In: Na medida da pessoa humana, cit., p. 56).
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rística mais abrangente de consideração do direito enquanto direito.5 Daí falar-se em
busca da f‌inalidade última do instituto, isto é, aquilo que conecta o valor abstrato
da responsabilidade civil com a concretude das relações humanas, a conferir-lhe
conteúdo social e inter-relacional denso e poderoso, coeso e efetivo, a abrir um novo
caminho evolutivo, de vanguarda, ao tradicional instituto.6 Trata-se do que aqui se
denomina de função promocional da responsabilidade civil.
4.1 A FUNÇÃO PROMOCIONAL DO DIREITO
Norberto BOBBIO,7 na propositura de uma concepção funcionalista do direi-
to,8 considerava insuf‌icientes as tradicionais f‌inalidades “protetora” e “repressiva”
do ordenamento jurídico, apresentado como um conjunto de normas negativas.9
Revelou, neste contexto, que, ao contrário do que antes imaginava a “ciência do
direito”,10 o direito positivo se constitui como modelo normativo composto tanto
5. Sobre a necessidade de encontrar uma f‌inalidade última, de sentido ético, para o direito enquanto direito,
Cf. NEVES, António Castanheira. A crise actual da f‌ilosof‌ia do direito no contexto global da crise da f‌ilosof‌ia:
tópicos para uma possibilidade de uma ref‌lexiva reabilitação. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 104.
6. Já se encontra em Mafalda Miranda BARBOSA uma tentativa de identif‌icar a f‌inalidade última da res-
ponsabilidade civil, no sentido ético, ainda que suas conclusões não sejam as mesmas propostas por esta
investigação, não obstante se aproximem: “A f‌inalidade última [da responsabilidade civil] passa por aqui
– pela reaf‌irmação da pessoalidade de cada um” (Ref‌lexões em torno da responsabilidade civil, cit., p. 522).
7. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole,
2007.
8. Ainda que a funcionalização do direito seja uma característica marcante da metodologia do direito ci-
vil-constitucional, é necessário consignar que não se trata de um novo modo de compreender o direito.
Em seus primórdios, quando se falava apenas de “função social”, como princípio ou critério de controle
da autonomia, já se trabalhava com a releitura da teoria individualista dos direitos subjetivos. Para Léon
Duguit, um dos percussores da chamada funcionalização do direito, a vontade individual só fazia sentido
na coletividade, sendo a solidariedade um fato social irrefutável, que merecia tutela na ordem jurídica.
Em suas palavras, no exercício de suas vontades individuais, o home se apega com solidariedade a outros
homens, como representação do que provavelmente tenha sido um dos primeiros atos de consciência
humana: “une volonté individuelle, même déterminée par un but collectif, reste une volonté individuelle.
Qui aff‌irme cette prétendue conscience collective? L’individu. Son aff‌irmation est un acte de conscience
individuelle. Que l’individu se saisisse comme solidaire des autres hommes; que le premier acte de la
conscience humaine ait été une représentation de la solidarité sociale, c’est possible, c’est même probable”
(L’état, le droit objectif et la loi positive. Paris: Albert Fontemoing, 1901, p. 7-8). A evolução dessa vertente
resultou numa perspectiva mais ampla de função e funcionalização dos institutos, que não se restringe ao
seu caráter social, indo além, a representar verdadeira “razão genética do instituto”, encontrando na sua
f‌inalidade essencial o seu real elemento caracterizador, a sua “razão de ser”, como se vê em Salvatore PU-
GLIATTI: “Non soltanto la struttura per sè conduce inevitabilmente al tipo che si può descrivire, ma non
individuare, bensí inoltre funzione esclusivamente è idonea a fungere da criterio d’individuazione: essa,
infatti, dà la ragione genetica dello strumento, e la ragione permamente del suo impiego, cioè la ragione
d’essere (oltre a quella di essere stato)” (La proprietà nel nuovo diritto. Milano: Giuffrè, 1964, p. 300).
9. Nas palavras do racionalismo pragmático de Alf ROSS, o ordenamento jurídico é o “corpo integrado de
regras que determina as condições sob as quais a força física será exercida contra uma pessoa”, extraindo,
daí, a ideia de coercibilidade e de sanção negativa (O direito e a justiça, cit., p. 58).
10. Movimento dogmático de grande repercussão teórica, o estudo “científ‌ico” do direito representava o estopim
da doutrina positivista, no sentido investigar o dano normativo (objeto cientif‌icamente analisado) em sua
pureza, com as características da neutralidade, generalidade, abstração e universalidade, sem a interferên-
cias de outras realidades da ordem social. A obra de maior relevância, no sistema europeu continental, a
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por sanções negativas, quanto por sanções positivas, ainda que estas representassem
fenômeno ainda rarefeito.11
É que o sentido de “sanção” responde a uma conotação distinta daquela ideia
exclusivamente ligada a viés negativo. Na sanção não cabem apenas consequências
desagradáveis diante da inobservância de normas, mas também é possível usufruir
de consequências afáveis em face de sua observância. Aquelas seriam as “sanções
negativas”, enquanto estas, ainda pouco utilizadas pelos sistemas normativos, cons-
tituíram-se como “sanções positivas”.12 Quanto a esta classif‌icação, não se conhecem
questionamentos de rigor científ‌ico, sendo mesmo assumido por Hans Kelsen a
possibilidade de existência de normas premiais, conquanto tenha af‌irmado que elas
têm uma importância secundária no interior desses sistemas,13 que funcionam, para
ele, como ordenamentos coercitivos.14
Ocorre que no contexto do pós-guerra, as constituições dos Estados passaram
a prever não apenas normas cuja função se reserva a “tutelar” ou “garantir”, mas
também que se destinam a “promover” certos direitos, não sendo rara a estipulação
de objetivos gerais a serem perseguidos pelas instituições, como também a “promo-
cumprir tal desiderato é atribuída à Hans Kelsen, onde ele af‌irma que “a teoria pura do direito é uma teoria
do direito positivo – do direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial (...). Como teoria, quer
única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como
é o Direito? Mas já não lhe importe a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito.
É ciência jurídica e não política do Direito” (Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 1).
11. Como já salientava Eduardo Talamini, a sanção “não consiste necessariamente na ‘realização compulsória
de um mal’, eis que pode se apresentar sob a forma de um prêmio (concessão de um bem) a quem observa
voluntariamente determinada norma jurídica; e, como consequência dos traços anteriores, não é necessa-
riamente reação a um ato ilícito, embora tenha em mira sempre a observância de normas jurídicas” (Tutela
relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos deveres de entrega da coisa. São Paulo: Ed. RT,
2003, p. 169).
12. Segundo o autor, “o termo ‘sanção’ é empregado em sentido amplo, para que nele caibam não apenas as
consequências desagradáveis da inobservância das normas, mas também as consequências agradáveis da
observância, distinguindo-se, no genus sanção, duas species: as sanções positivas e as sanções negativas”
(BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função..., cit., p. 7).
13. “Constitui fato digno de nota que, das duas sanções correspondentes à ideia de retribuição, prêmio e cas-
tigo, a segunda desempenhe na realidade social um papel muito mais importante do que a primeira (...).
A expectativa do prêmio tem, relativamente ao medo que domina a vida dos primitivos, uma importância
subalterna. E até na crença religiosa dos homens civilizados, segundo a qual a retribuição divina não é
executada, ou não é somente executada, no aquém, mas é relegada para o além, tem lugar de primazia o
medo da pena que os aguarda depois da morte” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, cit., p. 32).
14. “Conforme o modo pelo qual as ações humanas são prescritas ou proibidas, podem distinguir-se diferentes
tipos – tipos ideais, não tipos médios. A ordem social pode prescrever uma determinada conduta humana
sem ligar à observância ou não observância deste imperativo quaisquer consequências. Também pode,
porém, estatuir uma determinada conduta humana e, simultaneamente, ligar a esta conduta a concessão
de uma vantagem, de um prêmio, ou ligar à conduta oposta uma desvantagem, uma pena (no sentido mais
amplo da palavra). O princípio que conduz a reagir a uma determinada conduta com um prêmio ou uma
pena é o princípio retributivo (Vergeltung). O prêmio e o castigo podem compreender-se no conceito de
sanção. No entanto, usualmente, designa-se por sanção somente a pena, isto é, um mal – a privação de
certos bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, valores econômicos – a aplicar como consequência
de uma determinada conduta, mas já não o prêmio ou a recompensa” (KELSEN, Hans. Teoria pura do
direito, cit., p. 26).
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