Funções e justiça na responsabilidade civil

AutorOthon de Azevedo Lopes
Páginas305-324
Capítulo 3
Funções e justiça na responsabilidade civil
1 - Análise funcional e econômica da responsabilidade civil
Para entender o papel da responsabilidade civil, na visão de Guido Cala-
bresi, é relevante a distinção que ele faz entre titulação de propriedade, de
responsabilidade civil e de direitos inalienáveis. Na propriedade, aquele que
deseje adquirir a titularidade de seu detentor deve fazê-lo por uma transação
voluntária, não decidindo o Estado o valor do bem. Na responsabilidade civil,
quando alguém destrói a titulação do direito, inviabilizando a sua fruição, há a
transferência ou a destruição do direito, regularizada pela determinação de
um valor a ser indenizado por parte de um órgão do Estado. Nos direitos ina-
lienáveis, a transferência de titularidade não é possível por ato voluntário, seja
do comprador ou do vendedor, de modo que ainda que possa haver compen-
sação pela lesão do direito, o Estado proíbe a outorga do direito a terceiro778.
Assim, as regras de responsabilidade civil teriam como justificativa a
substituição de situações em que a redefinição de titularidade do direito por
negociação, em critérios de mercado, sejam tão elevadas que, ainda que a
mudança de titularidade beneficiasse a todos os envolvidos, ela não ocorre-
ria. Abdicar-se-ia de uma transação voluntária por uma mudança forçada de
titularidade que daria lugar ao arbitramento do valor do direito por um ór-
gão do Estado, o juiz.
Sob o ponto de vista econômico, ao passo que leis contratuais são salva-
guardas para o descumprimento de acordos e também ponto de apoio para
os mercados e sua estabilidade, diante de eventuais diferenças de concep-
ções de correção entre indivíduos, a responsabilidade civil apresenta-se
como uma forma de validar transferências forçadas, não aceitas inicialmen-
te, quando o custo de transações prévias, típicas do contrato, são muito al-
tos. A responsabilidade civil pode ser uma forma de introduzir eficiência em
situação que os contratos falham ou de retificar uma transgressão779.
Tanto o contrato como a responsabilidade civil são instrumentos de alo-
cação de riscos. Nos contratos, os riscos são alocados pelos indivíduos de
acordo com os termos acertados voluntaria e previamente, em situações em
que a alocação antecipada tenha baixos custos. De outro lado, a responsabi-
305
778 Idem. Ibidem, p. 1092.
779 COLEMAN, Jules. Risks and wrongs. Oxford/Nova Iorque: Oxford University Press,
2003, p. 197.
lidade civil aloca riscos ex post entre indivíduos quando os custos prévios se-
jam excessivos e os indivíduos não estejam em posição de barganhar780.
Nessa linha, atividades com considerável risco, como o trânsito de veí-
culos automotores, só são possíveis diante da responsabilidade civil que, em
face de acidentes anteriormente acontecidos, alocará os prejuízos. As incer-
tezas e inseguranças, em casos como esse, impedem que as partes possam
antes dos eventos danosos e voluntariamente estabelecer previamente as
responsabilidades, havendo necessidade que um terceiro, o juiz, quantifique
o eventual montante a ser transferido do lesante para a vítima, em virtude
do trânsito forçado de riqueza ocorrido a partir do dano. Assim, a imputação
de responsabilidade civil tem efeito translativo de riqueza, retirando recur-
sos que estão alocados na atividade do ofensor para atribuí-los à vítima.
Embora a responsabilidade civil aloque custo ex post, ela induz compor-
tamentos de gerenciamento de riscos ex ante, ao redistribuir perdas. Como
estado inicial da responsabilidade civil, perdas caem sobre a vítima, se não
houver intervenção. “A decisão de que o lesante não deve suportar a perda
implica que a vítima o deve”. A compensação não é o único objetivo puro da
responsabilidade civil. Ela define responsabilidades, fazendo com que alguns
prejuízos não sejam compensáveis e devam permanecer com a vítima.
Assim, responsabilidade civil encerra uma oportunidade para que se atri-
buam bens em sociedade. É possível falar-se num efeito alocativo maximiza-
dor de bem-estar, segundo critérios de eficiência, além do efeito distributivo,
de caráter compensatório da responsabilidade civil. Guido Calabresi, no seu
clássico “The costs of acidents”781 destaca três ênfases para a responsabilidade
civil: eficiência econômica, preferências distributivas e outras considerações
sobre justiça782. Jules Coleman, no entanto, ressalta que a abordagem de Cala-
bresi aponta, em realidade, dois polos: eficiência, tratando da minimização
dos acidentes e dos custos de sua evitação, e justiça, tratando da distribuição
social adequada dos custos dos acidentes783. Numa visão moral, a responsabi-
lidade civil corresponderia a padrões de condutas particulares que entabula-
riam alocação de riscos, segundo critérios de justiça.
De acordo com Guido Calabresi784, os acidentes geram custos primá-
rios, equivalentes aos danos causados pelos acidentes; secundários, para alo-
cação dos custos dos acidentes, que são reduzidos quando há dispersão dos
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780 COLEMAN (op. cit. p. 202).
781 CALABRESI, Guido. The costs of acidents. Kindle edition. New Haven: Yale University
Press, 1970.
782 CALABRESI, Guido & MELAMED, Douglas. Property rules, liability rules, and inalie-
nability: one view of the Cathedral. In: Havard Law Review, vol. 85, nº 6, abril de 1972, p.
1093.
783 COLEMAN, Jules. The costs of the costs of acidents. In: Yale Law School Legal Scholars-
hip Repository, 1.1.2008, p.
784 CALABRESI, Guido. The costs of acidents. Kindle edition. New Haven: Yale University
Press, 1970, pos. 335.

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