Instituições, funções e modelos de responsabilidade

AutorOthon de Azevedo Lopes
Páginas433-456
Capítulo 6
Instituições, funções e modelos
de responsabilidade
1 - As funções das sanções
A pena e as sanções, antes da modernidade, tinham precipuamente um
caráter expiatório e retributivo. A sua principal função era restabelecer a or-
dem quebrada e recompor a honra da sociedade que, com a prática do delito
ou com a ocorrência de um dano, estava com a sua estabilidade comprome-
tida.
A teoria grega racionalizou a pena, inserindo preocupações preventivas e
educativas na sua imposição, mas esse pensamento formulado na Antiguida-
de não redundou em alterações importantes no significado social da pena.
Na Baixa Idade Média, houve um resgate da teoria grega, mas toda a respon-
sabilidade estava dominada pela busca da salvação da metafísica cristã, que
exigia a imposição de penas como forma de purgação individual dos pecados
e da culpa.
Foi somente com a Idade Moderna e com as teorias jusnaturalistas do
direito que as sanções, sejam penais ou civis, seriam racionalizadas sem que
houvesse interferência de pensamentos religiosos e metafísicos a demanda-
rem imposições de punições. Para os pensadores modernos, as penas deve-
riam ser úteis para a sociedade. Assim, o pensamento retribuicionista do pe-
cado cristão foi relido. A retribuição da culpa ainda seria preservada como
uma das funções da pena, já que não haveria qualquer sentido em sancionar
meros acontecimentos naturais ou mesmo pessoas que não pudessem con-
formar sua conduta segundo uma ordem de sentidos contida em leis, como
uma versão moderna dos mandamentos do judaísmo e do Cristianismo.
Acontece que a mera retribuição não bastava para grande parte dos pen-
sadores modernos, sendo necessária outra utilidade que estaria na preventi-
vidade, no caso da responsabilidade penal, e, na recomposição do dano, no
caso da responsabilidade civil. Todas essas formas de uso potencial da força
ainda guardariam o seu caráter simbólico, mas só poderiam ser validadas se
fossem legitimadas pelo seu uso racional para fins úteis.
Só foi possível uma distinção consistente entre responsabilidade civil e
penal a partir do momento em que a utilidade das medidas coercitivas pas-
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sou a ter papel de destaque no pensamento jurídico com Grócio. Somente
pelo proveito que se obtém de tais sanções foi possível distingui-las, como
bem ressalta Kelsen:
Melhor se poderia dizer que a diferença entre sanção penal e a civil se estriba
no objetivo que perseguem. A sanção civil se estabelece para reparar do dano
causado por uma conduta socialmente prejudicial; a sanção penal é uma medida
retributiva ou, segundo o ponto de vista atual, uma medida preventiva. A dife-
rença, entretanto, só é relativa, já que não se pode negar que a sanção civil tam-
bém tem uma função retributiva1088.
As funções e finalidades da pena são para o direito racional um tema de
grande importância. Não é por acaso que a escola funcionalista, hegemônica
no direito penal da atualidade, estruture todo o seu pensamento a partir dos
fins da pena e do próprio direito penal. A partir de tal valoração teleológica
das sanções, têm-se identificado as seguintes teorias acerca dos fins das san-
ções: a) a da retribuição, b) a da prevenção especial, c) a da prevenção geral
intimidatória – negativa, d) prevenção geral didática – positiva, e) a unitaris-
ta e f) compensatória.
a) Teoria da retribuição – com inspiração em Kant, em Hegel e na me-
tafísica da teologia cristã,1089 segundo a qual a pena não serve a fins sociais
específicos, mas à ideia de justiça. A síntese do pensamento retribuicionista
está no seguinte brocardo: “punitur, quia peccatum est”1090, que mostra cla-
ramente a sua origem cristã. Não apenas “para alcançar uma determinada fi-
nalidade no campo do empiricamente demonstrável, mas porque há um va-
lor intrínseco em ocasionar sofrimento a alguém que desrespeitou o direi-
to”1091. O homem pode e deve ser apenado porque falhou em conformar a
sua conduta ao dever, ou seja, porque é culpado e digno de pena. A pena
apresenta-se assim como a retribuição pela reprovação de um erro, que é o
delito.
Em termos práticos, para a teoria do delito contemporânea, tal teoria
significa uma limitação do poder do Estado, já que a sanção não pode exce-
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1088 KELSEN (¿Qué es Justicia?. Trad. Albert Calsamiglia. Barcelona: Ariel, 1982, p. 171)
provavelmente, quando falou da função retributiva da responsabilidade civil, Kelsen estava
considerando apenas o modelo de responsabilidade com base na culpa/ato ilícito.
1089 ROXIN, Claus, ARZT, Gunther & TIEDEMANN, Klaus. Introducción al Derecho Pe-
nal y al Derecho Penal Procesal. 1ª ed. Barcelona: Ariel, 1989, p. 24.
1090 Em tradução livre: “O que está em pecado deve ser punido.” É interessante lembrar que,
para os jusnaturalistas, pecado é sinônimo de delito jurídico ou ilícito moral.
1091 LESCH, Heiko. La Función de la Pena. Trad. Javier Sánchez – Vera Gómez Trelles.
Madri: Dykinson, 1999, p. 8.

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