Pressupostos teóricos

AutorOthon de Azevedo Lopes
Páginas243-267
Capítulo 1
Pressupostos teóricos
1 - Horizonte linguístico da responsabilidade como condição de pos-
sibilidade
A autorreflexão sobre o percurso temporal da responsabilidade, em-
preendida até a presente parte do trabalho, revelou o horizonte de sentidos
e possibilidades que foram legados ao presente pelo medium da linguagem.
As etapas anteriores do trabalho estabeleceram os jogos de linguagem dos
diversos paradigmas e o seu pano de fundo. O objetivo da etapa anterior do
trabalho era evidenciar as tradições transmitidas, dentro do pensamento
ocidental, pela linguagem que constitui o fenômeno da responsabilidade.
Faz-se necessário lembrar que “o mundo é mundo, apenas na medida em
que vem à linguagem – a linguagem só tem sua verdadeira existência no fato
de que nela se representa o mundo”631. Mundo e linguagem são indissociá-
veis, de modo que nalinguagem representa-se o próprio mundo de forma
absoluta e abrangente, sem que esse primeiro possa ser transformado em ob-
jeto da linguagem por não estar completamente dado. Não se pode olhar de
fora o próprio mundo constituído linguisticamente. O ser que pode ser com-
preendido é linguagem”632. Reconstruir a linguagem da responsabilidade
equivale assim a expor uma parte do mundo construído na tradição ocidental.
Todo esse empreendimento de reconstrução foi necessário para expor
uma autorreflexão sobre conceitos prévios que não estão como um todo dis-
poníveis a nenhum ser humano, à ciência ou mesmo ao poder. Habermas,
com precisão, traz a seguinte observação sobre esse horizonte prévio de sen-
tido que constitui o mundo da vida no qual todos estamos inseridos: “efeti-
vamente, na medida em que se refere a estruturas do mundo da vida, tem
que fazer explícito um saber de fundo em que ninguém pode dispor pela sua
vontade. Ao teórico, assim como ao leigo, o mundo da vida lhe está dado
como obra acabada em seu próprio mundo da vida [...]”633
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631 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Trad. Flávio Paulo Meuler. 3ª ed., Petró-
polis: Vozes, 1999, p. 643.
632 Idem. Ibidem. p. 687.
633 HABERMAS, Jurgen. Teoría de la Acción Comunicativa. v. II. Madri: Taurus, 2ª ed.,
2001, p. 568.
Esse mundo da vida, consistente em um horizonte de sentidos que nos é
transmitido pela linguagem natural, constitui uma fonte de certeza, de pré-
compreensões e de dados autoevidentes. “O saber que serve de horizonte,
que sustenta tacitamente a prática comunicativa cotidiana, é paradigmático
da certeza com que nos é presente o transfundo que é o mundo da vida634.
No entanto, esse horizonte de sentidos não se mostra apenas como a ori-
gem de certezas e evidências, já que, no cenário desse próprio mundo da
vida, é que surgem as necessidades, os problemas e insuficiências do presen-
te. Ao mesmo tempo em que essa linguagem natural nos transmite um mun-
do de segurança vindo do passado, constitui um pano de fundo no qual se
revelam as aporias e os problemas do aqui e o agora. Esse horizonte torna
possível, assim, uma fusão entre o passado e o presente. “O mundo do sen-
tido transmitido abre-se ao intérprete só n a medid a em que ao mesmo tem-
po aí se elucida o seu próprio mundo. O sujeito da compreensão estabelece
uma comunicação entre dois mundos; apreende o conteúdo objetivo do que
é legado pela tradição, ao aplicar esta última à sua própria situação”635.
É a linguagem que permite o encontro entre a tradição e os homens do
presente como seus intérpretes vivenciais. São interpretações e apropria-
ções de textos ou fragmentos de textos do passado que tornam compreensí-
veis as experiências humanas da própria vida. “A linguagem não constitui o
verdadeiro acontecer hermenêutico enquanto linguagem, enquanto gramá-
tica nem enquanto léxico, mas no vir à fala do que foi dito na tradição, que
é ao mesmo tempo apropriação e interpretação.”636
Esse encontro entre passado e presente, no horizonte de sentidos da lin-
guagem, mostra-se ainda como uma abertura de possibilidades para o futu-
ro. Assim como a linguagem nos fornece certezas, de um lado e problemas,
de outro, é ela mesma que torna factível a resposta de perguntas como for-
mação de um projeto para o futuro. Mais uma vez, Habermas expõe essa ou-
tra característica da linguagem como meio para afirmação da própria liber-
dade:o que nos arranca à natureza é o único estado de coisas que podemos
conhecer segundo a sua natureza: a linguagem. Com a estrutura da lingua-
gem, é posta para nós a emancipação”637. A linguagem é, assim, uma possibi-
lidade de elevar-se acima das coerções do mundo circundante, transforman-
do-se em liberdade na articulação de novos sentidos.
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634 Idem. Ibidem.
635 HABERMAS, Jurgen Técnica e Ciência como “Ideología”. Lisboa: Edições 70, 2001, p.
139.
636 GADAMER (op. cit. p. 672).
637 HABERMAS oOp. cit. p. 145).

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