A responsabilidade por ato ilícito

AutorOthon de Azevedo Lopes
Páginas325-408
Capítulo 4
A responsabilidade por ato ilícito
O modelo de responsabilidade por ato ilícito é o mais tradicional dos
modelos de responsabilidade. A sua origem está na tradição judaico-cristã,
caracterizando-se pela contrariedade consciente e voluntária a um dever
contido em um mandamento. Foi a partir dessa concepção que, no período
pós-clássico, alterou-se o conteúdo semântico da palavra culpa no direito ro-
mano para que ela adquirisse o significado de ausência de diligência no cum-
primento de um dever.
Na Idade Média, essa concepção foi assimilada pelo direito comum e
pelo direito canônico dos delitos. Ambos estavam estruturados em uma res-
ponsabilização que pressupunha a não-observância voluntária de uma lei ou
desídia no seu cumprimento, que eram o cerne do pecado. Esse era o pres-
suposto para uma pena como forma de purgar a culpa ou mesmo para que se
pudesse condenar alguém a reparar o dano.
Na Idade Moderna, a concepção de pecado da Idade Média foi seculari-
zada e sistematizada, de acordo com a razão abstrata de tal período. O deli-
to, ou ilícito, era uma modalidade de pecado moral, sem sentido religioso,
como vontade mal direcionada em face de leis de conteúdo vinculante e ob-
rigatório. Com Grócio, o ilícito penal se distinguiu do civil, estando esse úl-
timo ligado a um direito natural abstrato de obter reparação por todo o dano
culposamente causado. Já, o ilícito penal teria por objetivo retribuir uma má
ação com um padecimento (uma pena), segundo limites de utilidade social.
Então, ainda que a responsabilidade penal e a civil houvessem se separado,
ambas tinham como pressuposto básico a valoração de um ato necessaria-
mente culposo.
Com a sociedade complexa resultante da Revolução Industrial, na Idade
Contemporânea, o modelo por ato ilícito até então construído revelou-se in-
suficiente e inadequado para determinar a responsabilidade pela reparação
de lesões a direitos. Então, no direito civil, a responsabilidade por ato ilícito
passou a conviver com outros modelos para atribuição dos danos, como o do
risco.
Por outro lado, no direito penal, o modelo por ato ilícito assumiu o cen-
tro das preocupações da doutrina jurídico-criminal, tendo sido objeto de um
apurado estudo analítico de seus elementos. Até mesmo o próprio conceito
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de ilícito penal, de crime, passou a ser definido de forma analítica como ato
típico, antijurídico e culpável que poderia ser sancionável com uma pena. É
interessante notar que a escola funcionalista do direito penal vem agregando
a preventividade como um outro juízo para possibilitar a aplicação da
pena830.
Ocorre que, no século XX, as doutrinas neopositivistas esvaziaram o ilí-
cito de todo o seu conteúdo, transformando-o em mera imposição de sanção
em decorrência da norma jurídica como uma ordem para uma autoridade.
Dentro de tal perspectiva, o ato ilícito não era mais um juízo sobre uma con-
duta humana, em razão de seu fracasso diante de um conteúdo de sentido
deôntico. Isso explica que Pontes de Miranda tenha falado em fatos ilícitos
que a seu entender seriam acontecimentos naturais que poderiam resultar
na atribuição de sanções a uma pessoa. Essa postura neopositivista só se jus-
tifica dentro de uma perspectiva a-temporal e a-espacial com pretensão de
formular uma teoria universalmente válida, o que redundou no completo es-
vaziamento do ilícito.
Contudo, o ilícito referido à sua história é essencialmente a avaliação de
uma conduta humana em contraste com uma ordem deôntica de sentido.
Qualificar um ato como ilícito equivale a atestar seu insucesso perante um
dever. As sanções decorrentes de um modelo por ato ilícito mostram-se
como decorrência de um julgamento centrado na conduta humana referida
a um ordenamento. Aí está a explicação e a raiz do entendimento da concep-
ção mais comum e usual, dentro da doutrina do direito, de que o ilícito é o
ato contrário ao direito831.
O ilícito pressupõe necessariamente um ato humano. A valoração de li-
citude só acontece em face de comportamentos, de condutas humanas. Não
que os fatos em sentido estrito, acontecimentos naturais, sejam indiferentes
ao direito, mas que não se julga conformidade de um fato com o direito, ape-
nas tiram-se consequências de tais acontecimentos. O juízo de licitude só
pode ter lugar diante de um ato voluntário, ou mais especificamente de
“ação como acontecimento dirigido e orientado pela vontade”832. Portanto,
o modelo de responsabilidade por ato ilícito exige a verificação da ação dire-
cionável pela vontade segundo deveres positivados numa ordem jurídica.
O direito moderno transformou a ordem jurídica em um sistema de leis
idealizadas de dever ser, consistentes em enunciados genéricos e abstratos.
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830 ROXIN, Claus. Culpabilidad y Prevención em Derecho Penal. Trad. Francisco Muñoz
Conde. Madri: Réus, 1981, p. 115-146.
831 ESPÍNOLA, Eduardo. Tratado de Direito Civil. Vol. I. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1939, p. 551.
832 WELZEL, Hans (1974, p. 12).
O ordenamento jurídico, constituído dessa maneira, fora concebido como
uma garantia de igualdade e liberdade, pois a autoridade só poderia intervir
quando respaldada por leis que, em razão de sua generalidade e abstração,
tratariam a todos como iguais. O tipo, descoberto por Beling, em 1906, nada
mais foi do que uma verificação científica de que as leis modernas conti-
nham descrições abstratas, muitas vezes pormenorizadas da matéria da qual
pretendiam retirar consequências jurídicas ou criminalizar.
A tipicidade, a partir de então, passou a ser identificada como uma ava-
liação necessária para que um ato pudesse ser considerado criminoso. A con-
duta humana deveria adequar-se a uma descrição abstrata prevista em lei
para que pudesse ser apenada. A doutrina penal, em uma série lógica e con-
catenada de juízos, transformaria a tipicidade na primeira etapa analítica e
formal para considerar uma ação como delituosa.
Contudo, a ordem jurídica moderna não era constituída de leis isoladas,
mas sim que se articulavam em um sistema: o ordenamento jurídico. Assim,
para que uma ação fosse contrária ao direito, não bastava a sua tipicidade,
sendo necessária “a contradição pela realização do tipo de uma norma proi-
bitiva com o ordenamento em seu conjunto”833. Outras regras na própria or-
dem jurídica poderiam justificar a conduta transformando-a em um exercí-
cio regular de direito ou legitimando a ação por meio de uso de meios razoá-
veis de defesa ou por estado de necessidade para assegurar um bem jurídico
equivalente.
É por meio do juízo de antijuridicidade que se compatibilizam todos os
critérios formais de prescrição de conduta e de justiça contidos nas diversas
normas para aplicá-los ao caso concreto. A função da antijuridicidade está
em estabelecer qual é a regra de conduta formal aplicável ao caso concreto,
por meio da escolha da mais adequada para compor os interesses envolvidos.
A antijuridicidade mostra-se, assim, ainda um critério de justiça formal834,
pois necessariamente deve atentar-se para as categorias, valores e critérios
postos pela lei para adequá-los ao caso concreto.
Outra análise que a ilicitude comporta é a de culpabilidade, que ocorre
pela “ação do autor não ser como exige o direito, apesar de o autor ter podi-
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833 WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Trad. Juan Bustos Ramírez e Sergio Yáñez Pé-
rez. Santiago: Editorial Júridica de Chile, 1976, p. 76.
834 PERELMAN (Ética e Direito. Trad. Maria Ermitina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p. 29) define assim a justiça formal pela lei: “essa fórmula de justiça se distingue de
todas as outras pelo fato de o juiz, a pessoa encarregada de aplicá-la, já não ser livre para esco-
lher a concepção de justiça que prefere: ele deve observar a regra estabelecida. A classificação,
a distribuição em categorias essenciais, é-lhe imposta e ele deve obrigatoriamente levá-la em
conta. É essa a distinção fundamental entre a concepção moral e a concepção jurídica de jus-
tiça.”

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