A Fundamentação da Sentença no Novo CPC e a Matéria de Fato: uma Análise da Subsunção/ Concreção Judicial

AutorFrancisco Rossal de Araújo
Páginas63-70

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Introdução

O Código de Processo Civil de 2015 trouxe um dispositivo específico (art. 489) para descrever os elementos e dispor sobre a fundamentação da sentença. O referido texto legal tem levantado uma série de questionamentos sobre o ato processual que é o ponto culminante do processo. De um certo modo, todos os atos processuais se encaixam para a possibilitarem a decisão da lide, depois de frustradas as possibilidades de acordo. O estudo deste dispositivo legal tem enormes implicações para o Processo do Trabalho, considerado subsidiariamente aplicável pela Instrução Normativa
n. 39/2016/TST (art. 3º, IX) e deve ser visto com maior interesse, porquanto a lide trabalhista tem certas peculiaridades em relação ao processo comum.

A aplicação do Direito exige a sua concreção, ou seja, a adequação do conteúdo normativo genérico e abstrato a uma determinada situação de fato concreta. O Juiz deve fundamentar a sentença tendo em vista este objetivo. Mas este também é um dever da parte, que não pode formar um rol infinito de alegações vazias, inviabilizando a prestação jurisdicional com pedidos e argumentos inúteis ou irrelevantes.

O relatório é a narração descritiva dos principais pontos do processo. Tem natureza de síntese. A fundamentação é a apreciação dos fatos e normas aplicáveis, com as respectivas ponderações e juízos de valor. Tem natureza de análise. O dispositivo é o comando daquilo que foi decidido. Tem natureza novamente de síntese, relacionada ao resultado. O dispositivo é a conclusão da sentença. Sentença sem dispositivo é mais do que nula, ato inexistente. O dispositivo pode ser direto, quando especifica a condenação imposta ou a declaração judicial a que se destina; ou indireto, quando se reporta aos “termos do pedido”

O art. 489 do CPC assim disciplina a matéria:

Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;

II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem.
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I – se limitar
à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

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IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demons-trar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
§ 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
§ 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformi-dade com o princípio da boa-fé.

É nítida a intenção de especificar e forçar uma melhor fundamentação das sentenças, desenvolvendo o conteúdo do art. 93, IX, da Constituição.

O presente artigo traz a reflexão sobre como o julgador aplica a lei em relação à situação de fato e como se dá o encaixe de raciocínios que levam à decisão. Na primeira parte, será analisada a situação de fato como acontecimento (real) e como enunciado (argumento) e de que modo ela é apreendida no processo de decisão. Na segunda, a situação de fato será estudada diante de seu encaixe no suporte fático da norma, gerando a respectiva conclusão.

1. Situação de fato como acontecimento e situação de fato como enunciado

Na busca da conformação da situação de fato concreta à situação de fato abstrata (suporte fático da norma jurídica), realiza-se um raciocínio silogístico chamado subsunção. Para melhor compreendê-lo, dentro do tema geral da concreção, é preciso distinguir entre situação de fato como acontecimento e situação de fato como enunciado1.

A situação de fato como acontecimento é a reali-dade em si mesma. É o todo contínuo da realidade que sempre avança. É impossível compreendê-la na sua totalidade, pois a realidade é inalcançável. Não existe um lugar dentro da existência desde onde se possa ver toda a realidade. Conforme a crença de cada um, é possível imaginar que Deus possa ver toda a realidade. Nas religiões cristãs, um dos dogmas é a onipresença de Deus. Aos seres humanos não é dada essa graça e é preciso conformar-se apenas com a visão parcial. Sempre se vê parte da realidade, nunca a realidade em si. Além disso, o que se percebe depende do lugar de observação onde se está. Existem, portanto, diferentes perspectivas para perceber a realidade, sem que uma seja verdadeira e outra seja falsa2.

Na apreciação das provas judiciais, é sempre bom ter em conta essa afirmação, pois o juiz estará construindo a verdade judicial, ou seja, a verdade declarada por um ato de Estado, a Jurisdição, que vai se tornar imutável pela força da coisa julgada. Todas as formas de perceber a realidade, segundo seu ponto de observação, são legítimas, pois existem múltiplas perspectivas. O posicionamento de cada um na sociedade define o ponto de observação desde o qual percebe a realidade. Isso não quer dizer que aquele que observa também não vá “distorcer” o fenômeno que observa, devido aos condicionamentos decorrentes do ponto de observação que ocupa. Ninguém analisa um fato ou a realidade de forma neutra. Sempre estará condicionado pelas informações de que dispõe. Sua análise será mais equilibrada na medida em que dispuser de maior número de informações, que lhe possibilitarão uma melhor comparação. Portanto, diante da perspectiva da realidade como um todo, é preciso levar em consideração dois fatores: ela é simultânea e é impossível vê-la em sua totalidade.

O aplicador da lei nada mais é do que um observador da realidade, que a reconstruirá segundo o seu ponto de vista. No processo judicial, o aplicador da lei é o juiz e ele é que reconstruirá a realidade segundo os valores constantes nas normas jurídicas e segundo alguns de seus valores pessoais. O Direito orienta a reconstrução da realidade até um determinado ponto. Utiliza o juiz como instrumento para a sua realização e tenta orientar-lhe valorativamente, segundo disposições constantes das normas jurídicas. Entretanto, a orientação que pode fazer o ordenamento jurídico vai até determinado ponto. Depois, é necessário que a ordem jurídica deixe um determinado espaço. Faz isso porque é fruto da racionalidade humana e é aplicada por seres humanos e também porque é impossível prever todos os casos possíveis na realidade.

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Se está construída para ser aplicada aos seres humanos e utiliza seres humanos na sua aplicação, é evidente que a ordem jurídica não pode separar de forma tão estrita os mundos do “ser” e do “dever-ser”. Em algum ponto ambos têm de se encontrar. Dentro da organização do processo, a realidade (“ser”) toca o jurídico (“dever-ser”) de forma direta, no campo das provas, na concreção e na execução da sentença.

No campo das provas e da concreção, sendo o primeiro um pressuposto para o segundo, o aplicador da norma jurídica terá de utilizar os seus sentidos para aproximar-se da versão que lhe é contada pelas partes. Através das provas judiciais, averiguará a controvérsia e comprovará as alegações de um e de outro. Se não estiver convencido, poderá inclusive determinar a realização de novas diligências. Não para buscar a “realidade material”, ou a “verdade real”, mas para encontrar mais elementos a fim de formar a sua realidade, a realidade judicial. Essa verdade judicial é uma “verdade formal” no sentido de que é limitada por dois parâmetros: tanto por normas jurídicas (processuais e materiais) quanto pela imperfeição da capacidade cognoscitiva do agente.

Assim como cada indivíduo possui a sua noção de realidade e poderá compartilhá-la com outros indivíduos através da comunicação, o processo judicial também é um processo comunicativo no qual o juiz e as partes compartilharão os seus pontos de vista de observação da realidade. Por meio da observação e da comunicação, poderá o julgador apreender a realidade e modificá-la, segundo os valores constantes da norma jurídica ou segundo os seus valores subjetivos, sempre dentro do espaço de indeterminação deixado pela própria norma jurídica.

As partes, quando expõem suas...

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