Igualdade de recursos e ação afirmativa

AutorJosé Claudio Monteiro de Brito Filho
Páginas33-61
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CAPÍTULO II
IGUALDADE DE RECURSOS
E AÇÃO AFIRMATIVA
Como indicado desde a introdução, e repetido outras vezes, o objetivo
deste capítulo é apresentar o modelo de igualdade que, entendo, melhor
distribui os recursos existentes na sociedade, sendo os programas de ação
af‌i rmativa, então, uma estratégia que se pode e deve(72) utilizar para que esta
distribuição seja efetivamente igualitária.
Pretendo demonstrar, dessa feita, que não se devem pensar as ações
af‌i rmativas como um f‌i m, nem como algo isolado, muito menos como progra-
mas que possam compensar, em alguns casos, centenas de anos de discri-
minação e opressão — o que, de resto, seria impossível —, mas sim como
programas que estão a serviço de um objetivo mais amplo, que é o de buscar
uma sociedade em que a igualdade esteja além da igualdade meramente
formal.
Não que as ações af‌i rmativas não sejam pensadas, em alguns casos,
na perspectiva da justiça compensatória. Isso é acentuado, por exemplo, por
Joaquim Barbosa Gomes, que af‌i rma que a justiça compensatória justif‌i ca
f‌i losof‌i camente alguns programas de ação af‌i rmativa nos EUA — às vezes,
conjugada com a noção de justiça distributiva —, casos em que a adoção dos
programas teria como fundamento promover reparações por injustiças co-
metidas no passado. Ocorre que, como também acentua o autor, no caso de
reparação por um dano causado, é preciso que o dano seja mensurável, que
os responsáveis sejam identif‌i cados — mesmo que seja um ente público — e
que as vítimas também sejam(73), e isso, em se tratando de grandes grupos,
em razão de raça/cor, etnia, gênero e def‌i ciência, entre outros, não é, além
de possível, do ponto de vista da mensuração/identif‌i cação(74), passível de
(72) Deve no sentido de que, em uma sociedade que discrimina por fatores de exclusão, esse
é um caminho seguro para neutralizar a maior dif‌i culdade de acesso a bens e oportunidades.
(73) Ação af‌i rmativa e princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de
transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 61-66.
(74) Ao contrário, por exemplo, de programas como o estabelecido, por lei, no âmbito da
União, para reparar ilicitudes praticadas durante os governos militares do período 1964/1985,
em que as vítimas são identif‌i cáveis, o autor, genericamente, pelo menos, também (o Estado
Brasileiro), e é possível mensurar o dano, para f‌i ns de f‌i xação da indenização.
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ser reparado, como adiantei no parágrafo anterior, tão grandes são os efeitos
nocivos da conduta discriminatória.
Mais que isso, não me parece que os programas de ação af‌i rmativa
devam ser pensados nessa perspectiva, pois seu objetivo é proporcionar
acesso a recursos — fundamentais, adianto — e não reparar lesões pratica-
das anteriormente.
Voltando à discussão original, da f‌i nalidade dos programas de ação af‌i r-
mativa, adianto que, em minha opinião, aqui está o primeiro grande problema
desses programas no Brasil, que é o de serem criados e executados sem
outra fundamentação que não uma pálida ideia de justiça, que não leva em
consideração o que é melhor para toda a sociedade e para os indivíduos que
a compõem, ou seja, que não leva em consideração uma ideia específ‌i ca,
concreta, de justiça.
Para evitar o que considero um erro, vou me concentrar em uma teoria
def‌i nida, como também já indicado: a teoria da igualdade de recursos de Ro-
nald Dworkin, acrescentando em minhas ref‌l exões parte do pensamento de
Amartya Sen, pois creio que suas ideias podem ser utilizadas, com sucesso,
para preencher o que, de forma proposital ou não, é uma lacuna na teoria
de Dworkin, especif‌i camente na parte em que este reconhece a necessidade
de ajustes ou compensações, para encontrar a igualdade, e em relação a
indivíduos vulnerabilizados(75).
Àqueles que possam estranhar essa aproximação entre uma teoria que
preconiza a distribuição igualitária de recursos com outra que está baseada
na possibilidade de os indivíduos realizarem funcionamentos, devo dizer de
imediato que entendo possível, sim, que a primeira teoria seja auxiliada pela
segunda, como vou tentar demonstrar mais adiante.
Dworkin mesmo, ao discutir as objeções que Sen faz à sua teoria e à
da Rawls, af‌i rma, de forma expressa, que a teoria de Sen, que denomina
igualdade de capacidades, pode ser, em uma das formas que entende pos-
sível — a outra forma é como uma modalidade da igualdade de bem-estar
—, vista como o mesmo ideal por ele buscado, mas com outra terminologia,
dizendo que: “é claro que as pessoas querem recursos a f‌i m de aperfeiçoar
suas ‘capacidades’ para os ‘funcionamentos’”(76).
Registro que Dworkin, de uma forma que lhe é peculiar e bem conheci-
da dos que já f‌i zeram a leitura de suas obras, f‌i nda por refutar, em parte, a
aproximação que ele mesmo sugere entre as teorias.
(75) Aqui observo que o vocábulo “vulnerabilizados” é usado por mim, talvez até ampliando o
pensamento de Dworkin, que prefere a palavra “def‌i cientes”.
(76) DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e prática da igualdade. Tradução de
Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 420-427, especialmente p. 426.

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