Inteligência artificial e responsabilidade civil: as possíveis 'soluções' do ordenamento jurídico português

AutorPedro Manuel Pimenta Mendes
Ocupação do AutorProfessor Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Páginas219-234
13
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
E RESPONSABILIDADE CIVIL:
AS POSSÍVEIS “SOLUÇÕES” DO
ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS
Pedro Manuel Pimenta Mendes
Professor Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Sumário: 1. Introdução. 2. Responsabilidade civil subjetiva. 2.1 Considerações gerais. 2.2
Os artigos 491º e 493º do Código Civil. 3. Responsabilidade civil objetiva. 3.1 O artigo 502º
5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a tecnologia tem vindo a sofrer um desenvolvimento notável.
O robot passou de pura f‌icção a realidade. Mas não só. O progresso tecnológico levou a
que surgisse o campo da inteligência artif‌icial. De simples mecanismos que auxiliam o ser
humano nas suas tarefas, passamos a viver com robots capazes de atuar autonomamente.
Independentemente da forma que surgem, as várias expressões da inteligência artif‌icial
fazem parte da realidade e inf‌luenciam o modo de comportamento e vivência humana.
Exemplo mais conhecido são os veículos automatizados, dotados de autonomia de decisão
e de atuação e, por isso, desligados de qualquer ação do condutor. Estes veículos são capazes
de assumir a tarefa de condução sem intervenção do homem, que é substituído pelo robot.
A responsabilidade civil subjetiva, exigindo a culpa do lesante, deixou de ser capaz
de resolver muitos dos problemas que foram surgindo. A revolução industrial trouxe-nos
o recurso cada vez mais frequente à máquina e aos processos mecânicos de trabalho e se,
por um lado, veio aliviar o carácter penoso de muitas das atividades, por outro, aumen-
tou o número e a gravidade dos riscos de acidente. Por esta altura, surgiu a necessidade
de repensar os mecanismos ressarcitórios e procurar novas soluções. Numa primeira
fase, respondeu-se, ainda dentro da responsabilidade civil subjetiva, com a presunção
de culpa, colocando o ónus da prova da culpa no lesante. Porém, o empregador não
teria grandes dif‌iculdades em afastar a presunção de culpa que lhe recaía, pelo que a
resposta teria de assentar numa outra solução. O mecanismo encontrado passou pela
responsabilidade objetiva1.
1. Vd. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, v. I, 10. ed., 12. reimp. Coimbra, Almedina, 2015, p. 629 e ss.
DIREITO DIGITAL E INTELIGENCIA ARTIFICIAL.indb 219DIREITO DIGITAL E INTELIGENCIA ARTIFICIAL.indb 219 23/02/2021 14:54:5223/02/2021 14:54:52
PEDRO MANUEL PIMENTA MENDES
220
Novos tempos trazem novos problemas. A inteligência artif‌icial chegou para desa-
f‌iar os quadros jurídicos clássicos que, de alguma forma, vêm servindo para tutelar as
sucessivas inovações a nível tecnológico.
Os robots dotados de inteligência artif‌icial são autónomos e capazes de tomar as
suas próprias decisões, o que nos traz algumas questões. Os danos que os entes dotados
de inteligência artif‌icial provocam são passíveis de ressarcimento? Quem irá responder
pelo surgimento destes danos? Estará o nosso sistema jurídico preparado para receber
esta nova realidade?
Será este o ponto de partida do nosso estudo. Tentaremos perceber se as regras do
instituto da responsabilidade civil poderão ser mobilizadas para os acidentes provocados
pelos seres dotados de inteligência artif‌icial. Isto é, analisaremos a aptidão deste instituto
para a identif‌icação de uma entidade suscetível de ser responsabilizada pelos acidentes
provocados por entidade de IA.
Para tanto, iremos atentar nos diversos artigos que compõem o instituto, entre os
2. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA
2.1 Considerações gerais
O artigo 483º do Código Civil preceitua que “aquele que, com dolo ou mera culpa,
violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger
interesses alheios f‌ica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da viola-
ção”. A simples leitura do preceito mostra que são vários os requisitos que devem estar
preenchidos para haver lugar a uma pretensão indemnizatória. São eles o facto voluntário
do agente, a ilicitude, a culpa, o nexo de causalidade e o dano2.
Como podemos antever desde já, os entes dotados de inteligência artif‌icial vieram
introduzir novos dados, levando a que o nosso ordenamento jurídico não consiga res-
ponder com ef‌icácia quando da sua conduta resultem danos. Isto resulta claro quando
olhamos para as características de um robot dotado de inteligência artif‌icial: autonomia,
2. Não iremos desenvolver os diversos pressupostos da responsabilidade civil, uma vez que não constitui objeto
específ‌ico do nosso estudo. Para um maior desenvolvimento sobre os mesmos vd. Antunes Varela, Das Obrigações
em Geral, v. I, op. cit., p. 525 e ss.; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12. ed. (rev. e atual.). 3.
reimp. Coimbra, Almedina, p. 557 e ss.; Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, 1999, p. 164 e ss.; e Menezes Leitão,
Direito das Obrigações, v. I, 10. ed. Coimbra, Almedina, 2013, p. 258 e ss. Note-se, no entanto, que a sistematização
por nós considerada não é unânime na doutrina. Veja-se, p.e., Galvão Telles, que af‌irma que os elementos da res-
ponsabilidade extraobrigacional (comuns à responsabilidade obrigacional – salvo a particularidade de que nesta
o ato ilícito consiste na inexecução da obrigação) são quatro: ato ilícito, culpa, prejuízo e causalidade.: Galvão
Telles, Direito das Obrigações, 7. ed. (revista e atualizada), Coimbra Editora, 1997, p. 333. Mafalda Miranda Bar-
bosa também sustenta que a responsabilidade civil tem quatro pressupostos: ilicitude, culpa, nexo de imputação
objetiva e dano: Mafalda Miranda Barbosa, Lições de Responsabilidade Civil, Coimbra, Principia, 2017, p. 127 e ss.
Por sua vez, Pessoa Jorge reconduz os pressupostos da responsabilidade civil a apenas dois, sendo eles o ato ilícito
e o prejuízo reparável. Porém, o nexo de imputação e o nexo de causalidade não são de descorar, integrando-se
o primeiro no ato ilícito, como seu elemento ou aspeto inseparável, e o segundo no prejuízo reparável. O autor
acrescenta ainda outro pressuposto de carácter negativo: ausência de causas de isenção da responsabilidade civil:
Fernando Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Lisboa, 1972, p. 55 e ss.
DIREITO DIGITAL E INTELIGENCIA ARTIFICIAL.indb 220DIREITO DIGITAL E INTELIGENCIA ARTIFICIAL.indb 220 23/02/2021 14:54:5223/02/2021 14:54:52

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT