Introdução

AutorClovis Bevilaqua
Páginas15-49
INTRODUÇÃO

Per se igitur jus est expetendutn et colendum.
CÍCERO
I
A lei primitiva teve de enovelar-se nos torvos mis-
térios da religião, para melhor impor-se à consciência
dos homens, terrif‌icados em face de uma divindade
16 CLOVIS BEVILAQUA
ciosa e facilmente irritável. É o que nos af‌irmam os
mais conspícuos historiadores das origens humanas;1 é
o que nos fazem compreender tantos mitos sugestivos,
e essas entidades superiores que vinham complacente-
mente inspirar os velhos legisladores dos povos; é o que
no-lo ensinam mesmo f‌ilósofos antigos, mais próximos
do que nós desses obscuros inícios da cultura humana,
entre os quais avulta o persuasivo Platão, que abre o
seu belíssimo diálogo sobre as leis com uma armação
categórica a esse respeito, no que, aliás, não fez mais do
que repetir a lição de Sócrates, seu mestre.
Sendo assim, não admira que sejam sacerdotes os
primeiros conhecedores do direito. Penso que o direito
começou a formar-se espontaneamente, como uma es-
pecialização de força social, condensando-se pela sín-
tese ou, antes, pelo precipitado das ordens dos chefes e
da vitória dos interesses em luta. Soube, porém, opor-
tunamente apoiar-se na religião; e, quando seus precei-
tos se encadearam num corpo de doutrina organizado
pela tradição, os sacerdotes se acharam naturalmente
na posição de depositários das normas consagradas
pelo passado e de intérpretes indicados das obscurida-
des da lei.
1. Spencer, Sociologie, III, c. XIV: Les lois; F. de Coulanges,
La cité antique, passim; S. Maine, L’ancien droit e, especial-
mente, Études sur l’ancien droit, cap. II; Leist, Greco-it. Rechts-
geschichte, § 28 e seg.; Carle, La vita del diritto, cap. prelimina-
re; Jhering, Espiritu del derecho romano, I, cap. III.
JURISTAS FILÓSOFOS 17
Realmente, entre os antigos, vemos a classe sacer-
dotal fornecendo os juízes e os consultores jurídicos. Foi
assim no Egito, na Grécia, em Roma, na Índia, na Gallia,
e um pouco por toda parte.2 Pouco a pouco, foram-se es-
pecializando as funções, e, da nebulosa primitiva, sobre
a qual o espírito religioso pairava com as asas longamen-
te espalmadas, desprenderam-se uma a uma diversas
disciplinas mentais, e entre elas a doutrina jurídica.
Por longo tempo a feição religiosa herdada mante-
ve-se no direito; mas, passando a viver num meio pró-
prio, exposto à poderosa ação de inf‌luências diversas
que atenuavam, ao embate recíproco, os respectivos
exclusivismos, pôde expandir seus elementos de auto-
nomia até revestir-se com o tegumento forte da laicida-
de hodierna, por meio do qual dif‌icilmente se insinuam
os preconceitos religiosos. Mas, quão difícil tem sido
extirpar esses enxertos que dessoram a árvore do di-
reito; vê-se bem olhando para as legislações modernas,
cuja secularização se acha ainda incompleta, a despeito
de tenazes esforços encaminhados para esse efeito.
Tentarei acompanhar, num rápido escorço, a evo-
lução da doutrina jurídica na cultura helênica, romana
e moderna.
Para mostrar que da massa homogênea do ritual
religioso brotou, na Grécia, a teoria do direito sob sua
2. Leia-se Spencer, Juges et hommes de loi, na Revue des Revues,
1895, p. 327 e segs.; conf. Carle, op. cit., cap. I do liv. II.

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