Justiça Social e Manutenção do Benefício Assistencial da Lei n. 8.742/1993 no Óbito do Titular

AutorJosé Carlos Francisco
Páginas261-267

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José Carlos Francisco 1

1. Objetivo

Os objetivos deste estudo são, primeiro, criticar a posição normativa e a orientação judicial dominante que, com base no art. 21, § 1º, da Lei n. 8.742/1993, determinam a cessação automática do pagamento do benefício assistencial de prestação continuada em caso de morte do seu titular, e, segundo, formular propostas de solução alternativa.

Para o desenvolvimento deste estudo, inicialmente faremos descrição do cenário jurídico mostrando a marcha do Estado de Direito na proteção estatal da miséria econômica, destacando políticas públicas no Estado Liberal e no Estado Social e Democrático, enfatizando a busca de justiça social e o combate à miséria na Constituição de 1988 e na Lei n. 8.742/1993.

Na sequência, associaremos o cenário jurídico ao cenário sociológico que descreveremos visando construir propostas de solução para a cessação imediata do benefício assistencial. Assim, mesmo reconhecendo a natureza personalíssima da prestação pecuniária da Lei n. 8.742/1993, apresentaremos como propostas jurídicas a manutenção temporária desse benefício em favor do cônjuge ou de dependentes do falecido (seguida de diligente análise do cumprimento dos requisitos da Lei n. 8.742/1993 por parte dos novos beneficiários), ou a concessão de pensão por morte para os casos nos quais o falecido tinha condições de obter o benefício previdenciário aposentadoria por idade ou por invalidez ao tempo em que foi concedido o benefício assistencial.

Dentro do recorte temático deste estudo, não nos deteremos em outras controvérsias relacionadas à interpretação da Lei n. 8.742/1993.

2. Cenário jurídico: marcha na proteção estatal da miséria económica

É lugar comum afirmar que a marcha histórica das sociedades e das atividades do Estado na ordem socioeconômica tem avanços e retrocessos, sobretudo na afirmação e na concretização dos direitos fundamentais, a respeito do que Norberto Bobbio constata uma evolução em séculos de luta e de sofrimento, na eterna contenda entre novas liberdades e velhos poderes. A partir dos valores que foram lançados pelo Iluminismo, Thomas Fleiner-Gerster lembra que havia um entusiasmo com o papel do Estado depois da Revolução Francesa de 1789 e das conquistas nacionalistas do séc. XIX, embora essa postura confiante tenha se arrefecido ao longo das décadas que se sucederam, tendo em vista as trágicas experiências com as práticas estatais do nazismo, e dos Khmer Vermelhos do Cambodja, dentre outras totalitárias.

Por outro lado, é também verdade que acertos e erros fazem parte do processo amadurecimento e de desenvolvimento, motivo pelo qual concordamos com Pablo Lucas Verdú no sentido de que a ideia de Estado de Direito é uma conquista derivada da luta de novas ideias contra estruturas de poder contrárias, do Estado Liberal de Direito (opondo-se ao Ancien Régime), do Estado Social de Direito (combatendo o individualismo e Estado Abstencionista) e do Estado Democrático de Direito (enfrentando as estruturas sociopolíticas com resquícios do individualismo, neocapitalismo opressor e sistema de privilégios).

O significado de Estado de Direito não é unívoco, por certo. Luigi Ferrajioli salienta dois significados para Estado de Direito: 1º) sentido amplo, fraco ou formal, em face do qual os poderes públicos são conferidos e exercidos nas formas e

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nos procedimentos previstos em lei, o Estado Legislativo de Direito; 2 ) sentido estrito, forte ou substancial, no qual os poderes públicos estão igualmente sujeitos à lei, na forma e no conteúdo de seus exercícios, mas também estão vinculados aos princípios substanciais estabelecidos pela Constituição, o Estado Constitucional de Direito.

Se não há um sentido único para Estado de Direito, a redução arriscada dos significados ao menos conduz à ideia de que se trata de uma qualidade do Estado que se orienta por princípios e regras jurídicas (elaboradas, compreendidas e aplicadas segundo parâmetros democráticos) que subordinam a todos (inclusive a quem as elabora) com o propósito de identificar e efetivar direitos, garantias e deveres fundamentais.

O significado de Estado de Direito se torna ainda mais complexo na medida em que é dinâmico, pois se contextualiza com a evolução das experiências da sociedade e do Estado. De todo modo, nas modalidades mais conhecidas de Estado de Direito (classificadas quanto à concepção do indivíduo e ao papel do Estado na promoção dos direitos, deveres e garantias fundamentais) sempre houve preocupação com o combate à miséria econômica e da pobreza que assolavam parte (sempre expressiva) da população.

3. Combate à miséria no estado de direito liberal e no estado democrático de direito

Desafortunados foram protegidos na Antiguidade e na Idade Média por atos de caridade ou como dever religioso, e, na Idade Moderna, o modelo do Estado de Direito Liberal (ou Estado Legislativo de Direito) trouxe pálidas proteções aos miseráveis e pobres. Experimentado basicamente entre o século XVIII e início do século XX, o Estado Liberal se firmava pela crença no individualismo e na harmonia natural (especialmente do mercado, na concepção do liberalismo econômico), em face da qual o poder público tinha funções restritas à garantia da ordem pública e da segurança, com poucas funções sociais.

Se é verdade que esse modelo liberal apresentou resultados positivos (como a valorização das liberdades), de outro lado mostrou aspectos negativos que se revelaram em várias crises sociais e econômicas (sendo o exemplo mais relevante a crise que se seguiu à "quebra" da bolsa de valores de New York em 1929, período denominado de "grande depressão" e que se alastrou por praticamente todos os países do mundo ocidental). Esses ciclos económicos ou flutuações conjunturais geravam prejuízos a grande parte dos segmentos econômicos, de parte do empresariado (que via seus empreendimentos fracassarem) até e em especial aos trabalhadores empregados (que perdiam seus empregos nas fases de recessão e, sobretudo, na depressão).

Contudo, mesmo durante o período liberal, a miséria e a pobreza foram combatidas por políticas públicas (ainda que modestas e nem sempre eficazes). O papel do Estado como responsável por políticas sociais dessa natureza tem marcos já na Poor Law (Lei dos Pobres) inglesa de 19.12.1601, amparando-se na obrigação do socorro aos necessitados, na assistência pelo trabalho, em taxa cobrada para o socorro aos pobres (poor tax) e na responsabilidade das paróquias pela assistência de socorros e de trabalho. A Poor Law foi remodelada pela Poor Law Amendment Act of 1834 (ou New Poor Law) que trouxe esquema único de benefícios e criou aparelho centralizado para a sua administração e corpo de inspetores para observar a sua aplicação, e seguida de várias medidas como a assistência à velhice e aos acidentados no trabalho em 1907, e o sistema compulsório de contribuições sociais de 1911. Em França, o art. 21 da Constituição de 1793 previu o socorro dos desafortunados como dívida sagrada, e o estímulo à concessão de trabalho e de meios de subsistência em casos de impossibilidade de trabalhar, enquanto o art. 22 cuidou do direito à instrução para permitir o progresso, no que foi seguido pelos direitos sociais da Constituição de 1848, e da criação de assistência à velhice em 1898. Várias medidas sociais foram empregadas na Alemanha na segunda metade do século XIX, sob o governo de Otto von Bismarck que, embora conservador, imprimiu, p. ex., lei de acidentes de trabalho e seguro de doença, acidente ou invalidez.

Vários fatores (dentre eles as flutuações conjunturais na área socioeconômica, a ampliação do direito de voto em eleições e a Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII) geraram importante mudança na compreensão das responsabilidades e funções socioeconômicas da sociedade e do Estado no início do Século XX. A sequência de eventos jurídicos que marca a passagem do Estado Liberal para o Estado Social está associada com a Constituição Mexicana de 1917 (que, em seu art. 123, trouxe direitos trabalhistas como modalidade de direitos fundamentais), seguida pela Constituição alemã de Weimar de 1919 que, sob a influência da criação da Organização Internacional do Trabalho também em 1919, regulou a jornada de trabalho (inclusive a noturna), cuidou do desemprego e da proteção da maternidade, assim como idade mínima para admissão no trabalho e a responsabilidade do Estado prover a subsistência do cidadão caso não houvesse condições de trabalho, dentre outros temas. Nos EUA, apesar de o Judiciário americano ter rejeitado legislação do Estado de New...

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