Liberdade de expressão e discurso de ódio

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LIBERDADE DE EXPRESSÃO
E DISCURSO DE ÓDIO
A liberdade de expressão é certamente um dos direitos fundamentais que se
encontra em evidência nos dias atuais, dado que pode ser considerado um daqueles
que mais denota a sua ligação com a personalidade e autonomia do indivíduo e cujo
exercício se dá de maneira muito acentuada, é dizer, frequente. Isso faz com que
conf‌litos com outros bens de estatura constitucional surjam e o direito seja chama-
do a estabelecer os limites aplicáveis, bem como o seu âmbito de aplicação. Pode
ser conceituado como uma exteriorização da liberdade de pensamento, do que se
extrai que, caso permaneça como atividade intrínseca do ser humano, não possui
relevância, pois ausente em sua base uma interferência intersubjetiva, o que, por
sua vez, se explica por permanecer incoercível e subtraída de terceiros. Pertence,
pois, a liberdade de pensamento ao domínio da autodeterminação do indivíduo e
se vincula a suas concepções de natureza existencial, tendo como alicerce uma for-
mação livre, autônoma e íntima.1 Nessa linha, a liberdade de expressão tem como
fase prévia a liberdade de pensamento, tratando-se de exteriorização de convicções,
ideias, crenças e opiniões do indivíduo. Se é verdade que não se nega a importância
para a realização dos demais direitos fundamentais, também se notam posições que
tendem a ir mais além, no sentido de considerá-lo como a base e condição para a
realização de todos os demais direitos fundamentais, na expressão do Justice Car-
dozo2, membro da Suprema Corte dos Estados Unidos.
Essa af‌irmação se atrela ao pensamento americano no tocante ao tema, que
tende a ter na liberdade de expressão um direito quase absoluto, conforme se
verá mais adiante. No Brasil, a liberdade de expressão vem sendo cada vez mais
explorada pelos tribunais, em face do grande número de casos que são levados
a julgamento, em um ambiente que propicia a análise e aplicação dos direitos
fundamentais nos conf‌litos, especialmente de natureza privada, colocando, por
1. OSSOLA, Ana Laura. Libertad de expresión: declaraciones, derechos y garantias- deberes y derechos
individuales. In: MIRANDA, Jorge; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; FRUET, Gustavo Bonato (Org.).
Direitos de personalidade. São Paulo: Atlas, 2012. p. 199.
2. Em sua famosa expressão, o mencionado Justice, já na década de 1940, consignou que a liberdade de
expressão poderia ser tida como “the matrix, the indispensable condition of nearly every other form of
freedom”. Palko v. Connecticut, 202 U.S. 319, 327 (1937).
DISCURSO DE ÓDIO NO DIREITO COMPARADO • Graziela Harff
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sua vez, em relevo a importância dos princípios constitucionais para a resolução
dos conf‌litos.3
Nesse sentido, referido direito tem encontrado limites em outros princípios que
emanam da Constituição Federal (CF) e encontram sua concretização na legislação
ordinária, a exemplo do Código Civil (CC), ao prever os direitos da personalidade.
Analisar a liberdade de expressão é, pois, proceder a uma análise que leva em conta
não apenas um caráter estático e rígido, em uma atividade hermética, mas também
de outros direitos que têm funcionado como fatores limitadores da liberdade de
expressão. Analisar tais barreiras deve ser uma tarefa da doutrina jurídica, a f‌im de
trazer à luz pontos de apoio e de justif‌icação para tanto. Mais do que isso, torna-se
premente a conjunção com a perspectiva da democracia, pois a liberdade de expres-
são atua na constituição de uma ordem democrática livre.4
Nessa quadra da história, mostra-se insuf‌iciente af‌irmar que um direito não
deve ser considerado como absoluto. Discursos mais extremistas podem vir a causar
danos irreparáveis às vítimas, membros de grupos historicamente vulneráveis, tor-
nando inadiável o aprofundamento do tema e de suas nuances constitucionais. Nesse
sentido, os direitos de expressão acabam por colidir com direitos de personalidade
das vítimas de ataques odiosos, o que revela a complexidade e amplitude do tema.
2.1 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMO DIREITO DA PERSONALIDADE
A categoria dos direitos da personalidade é de grande importância para o
estudo da liberdade de expressão e do discurso de ódio, haja vista que tanto esta
liberdade quanto os direitos que a ela se contrapõem, quando, na prática quotidiana,
verif‌icam-se discursos ofensivos e humilhantes, podem ser derivados do direito da
personalidade. Sendo assim, serão analisados os direitos da personalidade em geral,
com as suas derivações, como o direito à honra e à integridade psíquica, bem como
o livre desenvolvimento da personalidade, desenvolvido na Alemanha e inscrito no
art. 2º da Lei Fundamental (Grundgesetz – doravante GG) daquele país. Este exame
será feito sempre com um foco no direito alemão e brasileiro, a f‌im de que se tenha
uma perspectiva comparada do assunto e de seu tratamento em cada ordenamento
jurídico.
3. Estas análises pelos tribunais, ressalte-se, têm sido feitas, em especial pelo STF, com recurso à doutrina e
jurisprudência estrangeira, o que se denota pela inf‌luência do direito norte-americano e alemão, em especial.
Essa constatação leva à análise da liberdade de expressão com breves referências à doutrina estrangeira, a
f‌im de que seja desenhado um panorama mais completo e aprofundado acerca da matéria, o que contribui
igualmente para um cotejamento do desenvolvimento em solo brasileiro de institutos advindos do direito
comparado.
4. Conforme esboçado na famosa decisão Lüth (BVerfGE 198, 207). No mesmo sentido: KARPEN, Ulrich.
Freedom of expression and national security: the experience of Germany. In: COLIVER, Sandra; HOF-
FMANN, Paul; FITZPATRICK, Joan; BOWEN, Stephen (ed.). Secrecy and Liberty: national security, freedom
of expression and access to information. Hague: Martinus Nijhoff Publishers. p. 290.
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2 • LIBERdAdE dE EXPRESSãO E dISCuRSO dE ódIO
Conforme exposto, a liberdade de expressão tem forte conexão com a persona-
lidade do indivíduo.5-6Assim, ao exercer a liberdade de expressão, há, concomitan-
temente, uma exteriorização dos traços de sua personalidade. A conceituação dos
direitos de personalidade é, de certa forma, f‌luída, dado que diversas são as tentativas
de estabelecer marcos conceituais. No entanto, podem ser mencionadas algumas
abordagens. Dentre a reunião de conceitos que Jorge Miranda traz, podemos fazer
uma síntese no sentido de que são aqueles direitos que são inerentes ao homem,
pelo fato de nascer e viver e que emanam de sua personalidade, em relação aos quais
pode se exigir respeito.7 No direito brasileiro, Rubens Limongi França conceitua os
direitos da personalidade como “as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos
aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim seus prolongamentos e projeções”.8
Conforme af‌irma Josef Kohler, o direito de personalidade adquire relevância
por meio de uma faceta ativa ou dinâmica, para que a vontade se revele e mostre
sua signif‌icância para o mundo. Isso se dá pelo fato de que a cultura pode apenas
avançar se as pessoas são livres para se expressar e estiverem em posição de colocar
suas capacidades a comando da sua vontade.9 Desta passagem podem ser destacadas
a necessidade de a personalidade poder se manifestar e revelar sua signif‌icância. O
indivíduo demostra e mesmo aperfeiçoa sua personalidade pela expressão, seja ela
de que tipo for. Considerando o escopo do trabalho, no sentido de apresentar uma
perspectiva comparada, será feito um breve escorço histórico no Brasil e na Alema-
nha, de forma mais aprofundada.
Na Alemanha, os direitos de personalidade (Persönlichkeitrechte) têm uma
origem doutrinária, desenvolvida na segunda metade do século dezenove e ape-
nas gradualmente incorporado pela legislação. Atualmente, tais direitos têm sido
cada vez mais objeto de proteção nos Estados europeus.10 Conforme é observado
5. Interessante salientar que personalidade, que advém do latim personalitas se contrapõe à ideia de genera-
lidade, o que deixa entrever a ideia de particularidade e singularidade. RAMOS, Erasmo Marcos. Estudo
comparado do direito de personalidade no Brasil e na Alemanha. Doutrinas essenciais de Direito Civil, São
Paulo, v. 3, maio 2002. p. 215-244.
6. Importante ressaltar que personalidade não se confunde com direito de personalidade, pois aquele é a
“aptidão para ser sujeito de direitos e de obrigações na ordem jurídica”. NERY, Rosa Maria Barreto de An-
drade. Distinção entre personalidade e direito geral de personalidade: uma disciplina própria. Doutrinas
essenciais de Direito Constitucional, v. 8, São Paulo, ago. 2015. p. 473.
7. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: direitos fundamentais. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000.
p. 58-59. t. IV.
8. FRANÇA, Rubens Limongi. Direitos da personalidade: coordenadas fundamentais. Doutrinas essenciais
de direito civil, São Paulo, jan. 1983. p. 653-667.
9. KOHLER, Josef. Philosophy of law. Trad. A. Albrecht. New York, 1969. p. 80. No original: “the right of
personality expresses itself in particular in the activities of the personality both in and outside the law.
Personality must be permitted to be active, tha is to say, to bring its will to bear and reveal its signif‌icance
to the world; for culture can thrive only if persons are able to express themselves, and are in a position to
place all their inherent capacities at the command of their will”.
10. BRÜGGEMEIER, Gert; CIACCHI, Aurelia Colombi; O’CALLAGHAN, Patrick. A commom core of perso-
nality protection. In: BRÜGGEMEIER, Gert; CIACCHI, Aurelia Colombi; O’CALLAGHAN, Patrick (Ed.).
Personality Rights in European Tort Law. New York: Cambridge, 2010. p. 577.

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