O tratamento do discurso de ódio no direito brasileiro

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O TRATAMENTO DO DISCURSO
DE ÓDIO NO DIREITO BRASILEIRO
A liberdade de expressão no Brasil se consubstancia em um importante direito
fundamental, inscrito na CF, no art. 5º, de modo que houve uma grande preocu-
pação do constituinte em salvaguardar constitucionalmente este direito, com suas
respectivas garantias, como resultado de uma reação à restrição das liberdades comu-
nicativas durante a ditadura brasileira, o que pode explicar também o amplo rol de
direitos fundamentais que é uma das marcas da Constituição brasileira. Atualmente,
os direitos à expressão passaram a integrar, de forma mais intensa, ressalte-se, o
vocabulário constitucional, de forma que muitos casos têm sido levados ao STF em
virtude de conf‌litos envolvendo tal liberdade e direitos contrapostos das vítimas.
Esse quadro fez com que houvesse um desenvolvimento signif‌icativo em relação a
parâmetros para que o intérprete jurídico analise o âmbito de proteção da liberdade
de expressão e as situações abusivas do direito que a ela refogem.
A salvaguarda no âmbito da Suprema Corte brasileira dos direitos da perso-
nalidade teve como um de seus marcos o caso Ellwanger, em que foi def‌inido que
condutas ilícitas penais não são tuteladas pelo direito à liberdade de expressão,
conforme se verá com mais verticalidade abaixo. Mesmo que se trate de um dos
casos sobre direitos humanos mais importantes julgados pelo STF, chama a atenção
os diversos fundamentos utilizados e a aplicação do preceito da proporcionalidade
por dois ministros, os quais chegaram a resultados totalmente opostos quando
da sua aplicação. O julgamento se aproxima do ordenamento jurídico alemão,
uma vez que torna crime a negação do holocausto, à diferença de que, no Brasil,
não existe tipo penal específ‌ico, sendo enquadrado no crime de racismo da Lei
7.716/89. Muitas são as nuances a serem analisadas no direito brasileiro, cuja
análise se passa a fazer.
5.1 LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Na literatura jurídica, tem sido comum traçar um breve escorço histórico que se
mostra assaz importante quando o assunto é liberdade de expressão, especialmente
quando são acrescidos outros temas que lhe são correlatos, como a ordem demo-
crática e sua manutenção pelos mais diferentes posicionamentos. Em um primeiro
momento, pode se af‌irmar que a liberdade assumia contornos mais participativos
DISCURSO DE ÓDIO NO DIREITO COMPARADO • Graziela Harff
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(denominada liberdade dos antigos), é dizer, uma cidadania ativa, que visava ao
envolvimento da sociedade nas decisões estatais.
Por sua vez, na liberdade dos modernos, os indivíduos passaram a perseguir
seus interesses e exigiam que o Estado não interviesse na sua esfera de atuação. Por
conseguinte, pode se af‌irmar que, enquanto na liberdade dos antigos se delineava uma
liberdade-participação política, na liberdade dos modernos o elemento constituinte
passa a ser a liberdade-defesa, na dicção de J.J. Gomes Canotilho.1 Esta af‌irmação tem
importância quando se fala que uma república pressupõe um catálogo de liberdades,
em que se inscrevem tanto a liberdade dos antigos, como a liberdade dos modernos.
Quando se trata de liberdade de expressão, conforme se verá quando se tratar de
pluralismo político, estão envoltos o direito aos mais diferentes discursos, os quais
não devem, a princípio, ser censurados pelo Estado.2 Ainda, a liberdade dos antigos
pode ser conectada ao status activus, o qual prevê que o particular exerce a sua liber-
dade não apenas no Estado, mas para este, tornando-se um espaço para o exercício
daquela. Em uma visão mais abrangente da temática, esta interpretação deve ser
estendida para abranger o status negativus para a contribuição na conformação do
Estado democrático, dado que o cidadão, com suas opiniões na qualidade de leitor
e editor de jornal, membro de clube ou partido, manifesta suas ideias e opiniões
sem que o Estado a isso possa se opor. Isso porque o status negativus tem como eixo
central a liberdade em face do Estado, em que a conformação dos mais variados
negócios jurídicos e da sua vida privada em geral ocorre sem interferências estatais,
por isso, então, com forte aderência aos direitos de defesa.3
A liberdade de expressão está prevista no artigo 5º, IV da CF e prescreve que é
“livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.” De uma primeira
leitura, nota-se a diferenciação terminológica (liberdade de expressão e liberdade
de manifestação do pensamento), que parece guardar traços diferenciadores entre
si. Contudo, uma parte da doutrina já vem defendendo uma uniformização ter-
minológica, a f‌im de que a partir do termo liberdade de expressão (gênero) f‌iquem
englobados a liberdade de manifestação do pensamento e de opinião (espécies), as
quais guardariam em seu âmago, em última instância, o mesmo substrato jurídico.
Em relação às liberdades de informação e de imprensa, pode-se englobá-las sob o
mesmo manto da liberdade de comunicação. Assim, teria-se um gênero maior, das
liberdades de comunicação e de expressão.4
1. GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Alme-
dina, 2000. p. 226-229.
2. Pensamento que encontra forte assento na doutrina americana. FADEL, Anna Laura Maneschy. O discurso
de ódio é um limite legítimo ao exercício liberdade de expressão: uma análise das teorias de Ronald Dworkin e
Jeremy Waldron a partir da herança do liberalismo de John Stuart Mill. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2018.
p. 26.
3. PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. Trad. António Francisco de Sousa e António
Franco. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 62-65.
4. FARIAS, Edilsom. Liberdade de expressão e comunicação: teoria e proteção constitucional. São Paulo: Ed.
RT, 2004. p. 53.

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