O tratamento do discurso de ódio no direito alemão

Páginas87-148
4
O TRATAMENTO DO DISCURSO
DE ÓDIO NO DIREITO ALEMÃO
A partir deste capítulo será estudada a liberdade de expressão na Alemanha,
de modo a serem contempladas não apenas as principais características atribuídas a
este direito fundamental, mas em um contraponto essencial com relação à dignidade
da pessoa humana. Ainda, diferentemente do que se passa nos Estados Unidos, em
que se tem a categorização, ou seja, os limites são estabelecidos por categorias pela
Suprema Corte, na Alemanha será feito a análise jurisprudencial essencialmente pelo
estudo de casos, uma vez que a análise são se subjaz a categorias, mas à ponderação,
realizada em cada caso concreto. Nessa linha, serão feitas referências a alguns casos
julgados ela Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH), a f‌im de que seja traçado
um panorama, ainda que sem maiores aprofundamentos, no nível europeu.
4.1 LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA LEI FUNDAMENTAL
Conforme já esposado alhures, o modelo alemão pode ser usado como um bom
exemplo no combate ao discurso de ódio e à imposição de limites à liberdade de ex-
pressão. Em primeiro lugar, pode-se justif‌icar pelo fato de a República Federativa da
Alemanha ter se formado após a Segunda Guerra Mundial, a qual foi marcada pelos
crimes cometidos pelo nacional-socialismo, além de intensas campanhas marcadas
pelo discurso de ódio. Soma-se a isso o fato de a Lei Fundamental (Grundgesetz) ter
adquirido grande respeito internacional, o que se estende ao domínio da liberdade
de expressão.
Impende trazer à lume algumas observações sobre o constitucionalismo ale-
mão que se fazem importantes para a compreensão do seu sistema jurídico e de suas
peculiaridades. A Lei Fundamental de 1949 retrata a experiência constitucional
de mais de um século – motivo pelo qual se remete à Constituição de Frankfurt
(Paulskirchenverfassung)1 e a Constituição de 1918, de Weimar, assentando-se sobre
1. A Constituição de Frankfurt, muito inf‌luenciada por lideranças acadêmicas, nunca entrou em vigor. A
primeira Constituição nacional a entrar em vigor foi a de Weimar, em 1918. Segundo Konrad Hesse, essa
constituição do Reich logo fracassou, pois, na sequência, fundou-se o império alemão, que não se fundava
nos direitos do povo, mas nos direitos dos príncipes. Um catálogo de direitos fundamentais havia sido
redigido pela Assembleia Nacional, por ocasião da redação da Constituição de Frankfurt, tendo entrado
em vigor em dezembro de 1848, antes da edição da Constituição em si, mas revogado em 1851, depois da
vitória da Restauração. EBERLE, Edward J. Public discourse in contemporary Germany. Case Western Law
DISCURSO DE ÓDIO NO DIREITO COMPARADO • Graziela Harff
88
bases liberais, democráticas e sociais das constituições anteriores.2 Neste ponto, a Lei
Fundamental alemã difere da Constituição americana: enquanto aquela adveio das
tradições do liberalismo clássico, do socialismo democrático e do direito natural
cristão,3 esta teve uma inspiração liberal e do direito natural. Nesse sentido, esse
país possui uma Constituição de um valor neutro (value-neutral), diferentemente
da Alemanha que possui como valor fundante, e que perpassa todo o ordenamento
jurídico, a dignidade da pessoa humana, o que a insere no grupo de constituições,
neste caso uma Lei Fundamental, que declaram um valor, não pretendendo ser neu-
tra. Pelo contrário, com a consagração da dignidade da pessoa humana abrindo a
Lei Fundamental, além do amplo rol de direitos fundamentais, forma-se uma ordem
axiológica objetiva, de nenhum modo neutra, o que contribui ao f‌im de robustecer a
força normativa dos direitos fundamentais, de modo a inf‌luenciar todos os Poderes
constituídos e relações privadas.4 Estas assertivas atuam em um contraste quase
absoluto com os Estados Unidos, que, além de possuírem uma Constituição neutra
em valores, ainda persegue um esquema de liberdades negativas, sem enumerar
deveres dos cidadãos ou valores a serem realizados pelo governo.5
Após os crimes perpetrados durante o período do nacional-socialismo, e como
resultado da política de informação totalitária de Josef Goebbels, f‌irmou-se uma
preocupação em inscrever na Lei Fundamental distintas previsões sobre liberdade
de informação e de expressão, a f‌im de prevenir qualquer recorrência totalitária.6
Além do artigo 5º, que prescreve algumas liberdades comunicativas, o artigo 8º
prevê a liberdade de reunião e o artigo 21 garante os direitos dos partidos políticos.
Review, v. 47, n. 3, 1997. p. 800. HESSE, Konrad. Signif‌icado de los derechos fundamentales. In: BENDA,
Ernest; MAIHOFER, Werner; VOGEL, Hans-Jochen; HESSE, Konrad; HEYDE, Wolfgang (Org.). Manual de
derecho constitucional. Madrid: Marcial Pons, 2001. p. 85; GRIMM, Dieter. The role of fundamental rights
after sixty-f‌ive years of constitutional jurisprudence in Germany. International Journal of Constitutional
Law, v. 13, n. 01, p. 11.
2. Nesse sentido também Konrad Hesse, para quem a lei Fundamental absorveu as tradições da democracia
parlamentar liberal-representativa, do estado de direito liberal e do estado federal, com a junção de novos
princípios, especialmente o do Estado Social, o que contribui para a formação de uma ordem de valores,
afastando uma ideia de que o Estado possa ser neutro em valores (wertneutral), mesmo que neutro ideolo-
gicamente (weltanschaulich neutral). HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik
Deutschland. Neudruck der 20. Auf‌lage. Heidelberg: C.F. Müller, 1999. Rn. 3.
3. Na Constituinte alemã de 1949, o liberalismo clássico estava representado pelo Partido Democrático
Livre (Freie Demokratische Partei – FDP), a tradição democrática social pelo Partido Democrático Social,
(Sozialdemokratische Partei – SPD) e o direito natural cristão pela União Democrática Cristã (Christlich
Demokratische Union Deutschlands – CDU). A tradição liberal foi responsável pelos artigos 1º a 19; a so-
cialista, pelas cláusulas de bem-estar social; a cristã, pelas previsões sobre moralidade, família, educação
e consagração das igrejas estabelecidas institucionalmente. EBERLE, Edward J. Public discourse in con-
temporary Germany. Case Western Law Review, v. 47, n. 3, 1997. p. 801.
4. HESSE, Konrad. Signif‌icado de los derechos fundamentales. In: BENDA, Ernest; MAIHOFER, Werner;
VOGEL, Hans-Jochen; HESSE, Konrad; HEYDE, Wolfgang (Org.). Manual de derecho constitucional. Madrid:
Marcial Pons, 2001. p. 92. Ver decisão BVerfGE 7, 198 (205).
5. EBERLE, Edward J. Public discourse in contemporary Germany. Case Western Law Review, v. 47, n. 3, 1997.
p. 801.
6. EBERLE, Edward J. Public discourse in contemporary Germany. Case Western Law Review, v. 47, n. 3, 1997.
p. 801.
89
4 • O tRAtAmENtO dO dISCuRSO dE ódIO NO dIREItO ALEmãO
Esses vários artigos dispersos ao longo da Lei Fundamental levam à conclusão de
que devam ser considerados como tendo abordagens analíticas diferentes, ou seja,
peculiares na extensão e conteúdo em relação aos demais direitos inseridos no mesmo
domínio das liberdades comunicativas.7
Se na Alemanha a dignidade da pessoa humana pode ser considerada o princí-
pio supremo da Lei Fundamental, sendo também uma barreira absoluta a toda ação
do Estado,8 nos Estados Unidos a liberdade prepondera sobre demais valores caros
ao sistema jurídico-constitucional germânico, como a honra, igualdade e a própria
dignidade. Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, quando se encon-
tram em conf‌lito a liberdade de expressão e outros valores constitucionais como a
dignidade da pessoa humana, honra e igualdade, estes tendem a prevalecer no caso
concreto. Outro elemento que pode ser encontrado na doutrina sobre liberdade de
expressão é a noção de democracia militante (streitbare Demokratie), através da qual
o discurso pode ser proscrito se ameaçar a estabilidade da sociedade, seu bem-estar
e a ordem democrática. Não se pode conceber que em um Estado democrático os
inimigos da Constituição violem, coloquem em perigo ou destruam a existência
do Estado, sob a alegação de exercício dos direitos fundamentais concedidos pela
mesma Constituição.9
Tais discursos que visem a desestabilizar o sistema democrático e suas insti-
tuições podem se dar não apenas através de indivíduos, mas também de partidos.
Segundo o art. 21, aquelas associações que tenham por objetivo desestabilizar o
autogoverno democrático são proibidas, devendo sua dissolução ser declarada pelo
TCF, conforme se verá mais abaixo. O contraste com o sistema americano neste ponto
é claro: enquanto os limites da liberdade de expressão na GG estão no próprio texto,
a Constituição americana, além de não prever limites expressos na Primeira Emenda,
proíbe leis que visem a limitar tal direito, o que torna algo estranho a este sistema
constitucional noções como democracia militante. Conforme será visto ao longo
deste capítulo, as visões americanas e alemã ref‌letem as signif‌icativas diferenças entre
os ordenamentos jurídicos de liberdade de expressão, mesmo que os dois partam de
premissas substancialmente idênticas. Expressões que possam parecer muito caras
à liberdade de expressão nos Estados Unidos têm um alcance muito limitado no
sistema germânico, o que se dá com o ideal holmesiano de livre mercado de ideias.10
7. QUINT, Peter. Free speech and Private Law in German Constitutional Theory. Maryland Law Review, v.
48, n. 2, 1989. p. 250.
8. BENDA, Ernest. Dignidad humana y derechos de la personalidad. In: BENDA, Ernest; MAIHOFER, Wer-
ner; VOGEL, Hans-Jochen; HESSE, Konrad; HEYDE, Wolfgang (Org.). Manual de derecho constitucional.
Madrid: Marcial Pons, 2001. p. 117-120.
9. EBERLE, Edward J. Public discourse in contemporary Germany. Case Western Law Review, v. 47, n. 3, 1997.
p. 825; Ver também BVerfGE 30, 1, 19-20 (1970).
10. KROTOSZYNSKI JR, Ronald. A comparative perspective on the f‌irst amendment: free speech, militant
democracy, and the primacy of dignity as a preferred constitutional value in Germany. Tulane Law Review,
v. 78, n. 05, maio 2004. p. 1551 e ss.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT