O tratamento do discurso de ódio no direito norte-americano

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O TRATAMENTO DO DISCURSO DE ÓDIO
NO DIREITO NORTE-AMERICANO
O discurso de ódio pode ser tido como um dos principais limites à liberdade
de expressão atualmente, tendo em vista os seus efeitos perversos que são cau-
sados não apenas às vítimas, como também à sociedade e à própria democracia.
Trata-se de um fenômeno que não encontra barreiras locais ou regionais, sendo,
pois, mundial. Para que seja feita uma análise de maneira mais abrangente, é mister
que haja uma compreensão dos principais paradigmas atuais quando se fala em
liberdade de expressão e, consequentemente, de discurso de ódio. Isso porque
haverá diferenças signif‌icativas em relação ao seu tratamento em se tratando do
sistema estudado. Este capítulo se concentrará na análise do âmbito de proteção
da liberdade de expressão, tal como previsto na Primeira Emenda do Bill of Rights,
da Constituição americana.
3.1 A PRIMEIRA EMENDA DA CONSTITUIÇÃO NORTE-AMERICANA E A
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
A liberdade de expressão nos Estados Unidos possui um panorama muito
distinto em comparação com as democracias constitucionais, especialmente com
os países europeus, neste caso, mais especif‌icamente a Alemanha. Contudo, são
necessários argumentos adicionais para que se encontre razões justif‌icadoras
deste estudo comparativo. Tanto a Alemanha quanto os Estados Unidos estão
comprometidos com um governo constitucional e direitos individuais; ambos
os países são democracias ocidentais com culturas políticas centenárias e são
atingidos por problemas similares de ordem política. Ao mesmo tempo, as opções
políticas e sociais dos dois países se encontram abertas, o que sói ocorrer em
sociedades livres, assim como as altas cortes estão abertas a novas interpreta-
ções de normas constitucionais antigas.1 Não apenas isso, mas possuem grupos
específ‌icos que foram alvo de discriminação. Se na Alemanha existe uma forte
sensibilidade em relação a discursos que possuem o potencial de causar dano aos
judeus, nos Estados Unidos a escravidão e a segregação racial causaram muitas
1. KOMMERS, Donald P. The jurisprudence of free speech in the United States and the Federal Republic of
Germany. Southern California Law Review, v. 53, n. 2, jan. 1980. p. 658.
DISCURSO DE ÓDIO NO DIREITO COMPARADO • Graziela Harff
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tensões, o que requer proteção especial contra o discurso danoso à população
discriminada.2
Nos Estados Unidos, a liberdade de expressão é vista quase como um direito
absoluto, com poucas restrições que lhe são aplicáveis. Nas palavras de um consti-
tucionalista norte-americano, a liberdade de expressão não é apenas o direito mais
estimado, mas também um dos mais ilustres símbolos culturais norte-americanos.3
Topologicamente, está cristalizado na Primeira Emenda à Constituição norte-a-
mericana, localizada no Bill of Rights.4 Esta primeira informação é signif‌icativa da
importância que esta assume na jurisprudência constitucional. Apenas para fazer
uma análise comparativa inicial, na Alemanha a liberdade de expressão vem elencada
apenas no artigo 5º da GG, enquanto a dignidade da pessoa humana se encontra no
artigo 1°. Enquanto no artigo 5º da GG se encontram vários limites à liberdade de
expressão, não existem limitações específ‌icas na Primeira Emenda norte-america-
na.5 Certo é que a liberdade de expressão, com seus contornos quase absolutistas, é
parte da história e experiência americana. Por isso se falar em seu excepcionalismo,
integrante de um fenômeno próprio daquele país,6 o qual é marcado por um forte
liberalismo econômico, com consequências em seu ordenamento jurídico-consti-
tucional.
Muitos fatores poderiam ser citados para explicar a proeminência da liber-
dade de expressão nos Estados Unidos, o que inclui uma preferência da liberdade
sobre a igualdade (prevista na 14ª Emenda), comprometimento com individua-
lismo e uma tradição de direitos naturais que deriva de John Locke, que advoga
a liberdade do Estado (liberdade negativa), sobre a liberdade através do Estado
(liberdade positiva). Nessa linha, os direitos de livre expressão são concebidos
como um direito contra o Estado, que não devem sofrer qualquer intervenção es-
tatal.7 Existe, então, um enfoque em valores individuais e não naqueles coletivos,
de modo a superar o interesse na proteção da coletividade nacional. O inverso
apenas ocorre quando algum risco individual possa se verif‌icar, é dizer, algum
dano possa decorrer do discurso.8
2. HAUPT, Claudia E. Regulating hate speech: Damned if you do and damned if you don’t: lessons learned from
comparing German and U.S. approaches. Boston University International Law Journal, v. 23, 2005. p. 302.
3. ROSENFELD, Michel. Hate speech in constitutional jurisprudence: a comparative analysis. Cardozo Law
Review, v. 24, n. 4, abr. 2003. p. 1529.
4. As primeiras dez emendas à Constituição norte-americana formam o Bill of Rights, ou a Carta de Direitos.
5. BRUGGER, Winfried. Ban on or protection of hate speech? Some observations based on German and
American Law. Tulane European & Civil Law, v. 17, 2002. p. 7.
6. SEDLER, Robert. A. Freedom of speech: The United States versus the rest of the world. Michigan State Law
Review, n. 377.
7. ROSENFELD, Michel. Hate speech in constitutional jurisprudence: a comparative analysis. Cardozo Law
Review, v. 24, n. 4, abr. 2003. p. 1529.
8. HAUPT, Claudia E. Regulating hate speech: Damned if you do and damned if you don’t: lessons learned
from comparing German and U.S. approaches. Boston University International Law Journal, v. 23, 2005. p.
313.
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3 • O tRAtAmENtO dO dISCuRSO dE ódIO NO dIREItO NORtE-AmERICANO
A liberdade de expressão e sua importância ainda podem ser percebidas na
crença que os cidadãos possuem de que se trata de um direito virtualmente ilimitado
e um intenso temor de que qualquer intervenção estatal no campo desta liberdade
causará um mal maior do que sua simples abstenção.9 Com isso, chega-se à conclusão
de que a Primeira Emenda foi desenhada para que permitisse um debate aberto, o
que engloba pontos de vista impopulares e controversos, já que, sendo o discurso
um meio neutro, pode facilmente promover o fascismo ou a democracia, justif‌icar o
genocídio ou o igual gozo dos direitos civis. Esse livre trânsito de ideias tem trazido
muitas críticas à tona, pois o Estado não pode f‌icar de braços cruzados enquanto as
liberdades fundamentais de uma democracia são utilizadas para prejudicar a justiça
e o bem comum.
Como consequência natural e regra geral, existe uma presunção contra a vali-
dade das tentativas estatais de proibir, punir ou regular expressões, especialmente
aquelas que dizem respeito a assuntos públicos, como políticas públicas e governa-
mentais.10 Mesmo que (surpreendentemente) pouca referência seja feita às liberdades
preferenciais (preferred freedoms), esta doutrina ainda assume relevo quando na seara
interpretativa, de modo a conceder-lhes grande peso.11
Nesse ponto, impende ressaltar que o conceito de liberdade está mais proxima-
mente relacionado à liberdade de expressão do que os demais direitos. Para muitos
doutrinadores, este direito repousa forma o núcleo das democracias liberais, uma
vez que é a condição para que se mantenha atualizado sobre os atos governamentais,
para a transparência, bem como para que se possa habilitar os cidadãos a partici-
parem do processo democrático. Nessa sequência, se estabelece uma desconf‌iança
sobre a autoridade governamental e uma crença na liberdade humana, o que são
temas centrais para o liberalismo político. Aqui entra em cena um aspecto relevante
que é a autonomia do indivíduo, pois o liberalismo coloca a ênfase no indivíduo e
sua capacidade deliberativa para realizar escolhas. A liberdade de expressão é vista
como um pré-requisito para a existência da autonomia. Nessa linha, caso seja nega-
do acesso a algumas visões de mundo, será prejudicada a sua habilidade de receber
todas as informações, o que dif‌iculta a existência da uma autonomia verdadeira.12
Outro liberal em defesa da liberdade de expressão é Benjamin Constant, que em
sua obra Princípios de Política, faz uma defesa enfática das liberdades. Segundo o
francês, as liberdades dos cidadãos são a liberdade individual, a liberdade religiosa,
9. ROSENFELD, Michel. Hate speech in constitutional jurisprudence: a comparative analysis. Cardozo Law
Review, v. 24, n. 4, abr. 2003. p. 1530.
10. HAUPT, Claudia E. Regulating hate speech: Damned if you do and damned if you don’t: lessons learned
from comparing German and U.S. approaches. Boston University International Law Journal, v. 23, 2005. p.
317.
11. KOMMERS, Donald P. The jurisprudence of free speech in the United States and the Federal Republic of
Germany. Southern California Law Review, v. 53, n. 2, jan. 1980. p. 668.
12. CARMI, Guy E. Dignity versus Liberty: the two Western Cultures of free speech. Boston University Inter-
national Law Review, v. 26, n. 02, 2008. p. 294 e ss.

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