Limites ao poder de reforma: uma análise da fundamentalidade da previdência social

AutorLetícia Fernandes Albuquerque da Silva
Páginas133-165
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LIMITES AO PODER DE REFORMA:
UMA ANÁLISE DA FUNDAMENTALIDADE DA
PREVIDÊNCIA SOCIAL
Letícia Ferna ndes Albuquerque da Silva1
Resumo: O presente artigo objetiva analisar e discutir os limites ao poder
de reforma constitucional na seara previdenciária, com base na
fundamentalidade da previdência social. A Constituição de 1988 é fruto
do poder constituinte e necessita adaptar-se à realidade social para que
possa continuar a governar a vida em sociedade. Portanto, o presente
trabalho importa na breve análise de construção de parâmetros que
identifiquem a abrangência do art. 60, § 4º, IV, ao estabelecer que não
podem ser objeto de deliberação, as propostas de emendas constitucionais
tendentes a abolir os “direitos e as garantias individuais”. A
superconstitucionalidade dos referidos direitos e garantias individuais
impõe limites materiais ao poder de reforma. Tal restrição tem como base
a proteção do indivíduo e da dignidade da pessoa humana, frente às
alterações que coloquem em risco suas tutelas. A reflexão acerca de tais
fronteiras mostra-se indispensável, sobretudo após a reforma
previdenciária promovida pela Emenda Constitucional nº 103 de 2019.
Palavras-chave: Poder de reforma constitucional. Cláusulas pétreas.
Direitos fundamentais. Previdência social e Dignidade da pessoa humana.
1. Introdução
No constitucionalismo, o reconhecimento da superioridade
hierárquica da Constituição acarreta a preponderância das normas
1 Mestre em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ). Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade
Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Advogada no
Escritório PAV-Advogados Associados e Assessora Jurídica no Instituto de Previdência
dos Servidores Públicos do Munícipio de Queimados.
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constitucionais sobre as demais espécies normativas, legais e
administrativas. O poder constituinte encontra-se no ponto de partida do
ordenamento jurídico-positivo representando sua própria fundação2. A
supremacia da Constituição é a expressão do poder constituinte, tendo em
vista que as normas constitucionais encontram sua legitimidade na
pactuação do contrato social.
Após o holocausto cometido pelos nazistas na Segunda Guerra
Mundial, que representou um dos episódios mais trágicos da história da
humanidade, as Constituições no pós-guerra buscaram refutar a
banalização do mal3 e as atrocidades conferidas contra o ser humano, ao
inserirem cláusulas pétreas no ordenamento jurídico, que garantiriam
direitos pautados na dignidade da pessoa humana.
A expansão das limitações comportou um caráter mais dinâmico,
na tentativa de impedir o esvaziamento de princípios e valores
fundamentais das Constituições. As chamadas cláusulas pétreas
representam limites intransponíveis ao legislador, uma vez que,
diferentemente das outras cláusulas constitucionais, não podem ser
abolidas ou alteradas, nem mesmo através do processo qualificado.
A mudança na esfera positiva, de acordo com o Oscar Vilhena
Vieira4, ocorreu pela proteção abarcada pelas cláusulas intangíveis, com a
abertura das Constituições para as ideias de inalienabilidade dos direitos
humanos. No âmbito supraconstitucional, os Poderes do Estado foram
subordinados ao “Direito”, no sentido de justiça. A legitimidade da
produção legislativa, bem como da reforma constitucional, passou a ser
conectada não apenas a um procedimento, mas um a processo de
substantivação do direito constitucional.
Portanto, hoje as cláusulas de eternidade são classificadas como
limites materiais ao poder de reforma, definindo conteúdos essenciais que
não podem ser suprimidos pelo constituinte reformador5, portanto, são
inatingíveis de abolição pelos processos políticos deliberativos
juridicamente institucionalizados. O poder reformador da Constituição
2 KELSEN, H. Teoria pura do dir eito. 8ª ed. Tradução de João Baptista Machado. São
Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 215-247.
3 ARENDT, H. A condição humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
4 VIEIRA, A constituição e sua reserva da justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p.25.
5 Sobre o tema conferir: SILVA, A dignida de humana como valor supremo da
democracia. Acesso em: 20 dez. 2019.
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representa o processo mais elevado, portanto, as cláusulas pétreas só
podem ser extintas através de uma nova manifestação do poder
constituinte originário, a qual venha instaurar uma nova ordem jurídica
vigente6.
Na esteira para atribuição de eficácia jurídica efetiva aos limites
do poder de reforma, a interpretação do conteúdo essencial pode
pertencer ao Tribunal Constitucional, aos juízes e até Cortes em geral.
Contudo, a apreciação da constitucionalidade em última instância pelo
Poder Judiciário, coloca em prejuízo o órgão representativo do povo
(Parlamento), apontando problemas teóricos relacionados à supremacia
desse conteúdo constitucional ao passo que: (i) no aspecto temporal,
vincula a aspiração da política atual à uma maioria política do passado e
(ii) no aspecto semântico, importa no déficit de legitimidade democrática
de juízes que não foram eleitos pelo povo, mas que invalidam as decisões
tomadas pela maioria que foi eleita democraticamente para a
representação do povo7.
Assim, o debate acerca da eficácia e dos limites materiais ao
poder de reforma aponta interrogações obscuras entre a restrição do
governo do povo limitado pelo direito, com a finalidade de proteção do
indivíduo (constitucionalismo em sentido estrito) e o governo do povo
(democracia)8.
É inegável reconhecer que as cláusulas pétreas configuram uma
limitação ao princípio democrático, pois a mudança do núcleo essencial
protegido, só pode ser realizada através da manifestação de um poder
constituinte originário, inviabilizando as modificações almejadas pela
geração atual. Porém, considerando que o seu fundamento é a
manutenção do conteúdo constitucional essencial, a proteção dos direitos
fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana, não há
prejuízo para gerações atuais. Nessa lógica, sopesando as particularidades
do sistema constitucional, as cláusulas pétreas promovem a
autodeterminação da geração atual e funcionam como instrumento de
6 BRANDÃO, R. Dir eitos fundamentais, clá usulas pétr eas e democracia. 3ª ed. Rio de
Janeiro: LumenJuris, 2017. p. 2.
7 BRANDÃO, 2017, p. 2.
8 Ibid., p.452.

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