Análise da Decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a Liberdade de Exercício Profi ssional do Músico, a partir do Pensamento de Jorge Reis Novais e Virgilio Afonso da Silva

AutorAna Paula Nunes Mendonça
Páginas45-59

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Introdução

Neste artigo, propõe-se analisar e compreender qual o conceito, a conflguração e a extensão do suporte fático do direito de liberdade de ação proflssional, abrangido pelo direito social ao trabalho, consoante o entendimento dado pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 414.426, que entendeu que o direito constitucional de liberdade de ação proflssional protege o exercício proflssional de músico, independentemente de registro na Ordem dos Músicos do Brasil.

Assim, o ensaio conterá também considerações sobre o posicionamento daquela Corte em relação a possíveis intervenções e restrições ao âmbito de proteção da liberdade de exercício proflssional, veriflcando se a exigência de registros proflssionais é constitucional ou se afrontaria o direito social ao trabalho nesse aspecto de proteção de liberdade individual.

De início, vale consignar que o Supremo Tribunal Federal fora instigado a se manifestar sobre esse tema em sede de Recurso Extraordinário interposto pela Ordem dos Músicos do Brasil contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª

Região, que havia decidido que o músico não precisaria de registro ou licença para livremente expressar seu ofício e sua arte, não podendo ser impedido por interesses da Ordem dos Músicos do Brasil.

Em linhas gerais, os argumentos da Ordem dos Músicos do Brasil para defender a necessidade de registro e de pagamento de anuidade, condicionando e restringindo a liberdade de ação proflssional, são de que esse direito não pode ser considerado um direito absoluto, como acontece com qualquer outro direito individual, encontrando a liberdade do exercício do trabalho limitações nas leis infraconstitucionais que regulamentam as proflssões, no presente caso, na Lei n. 3.857/60, que dispõe sobre o ofício dos músicos.

O Supremo Tribunal Federal, por unanimidade de votos, em sessão plenária, negou provimento ao recurso, ementando a decisão nos seguintes termos:

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Nem todos os ofícios ou proflssões podem ser condicionados ao cumprimento de condições legais para o seu exercício. A regra é a liberdade. Apenas quando houver potencial lesivo na atividade é que pode ser exigida inscrição em conselho de flscalização proflssional. A atividade de músico prescinde de controle. Constitui, ademais, manifestação artística protegida pela garantia de liberdade de expressão.

No presente estudo, objetiva-se analisar tal julgado, partindo do conceito de direito social ao trabalho como direito fundamental consoante teoria manifesta por Jorge Reis Novais, demonstrando que a liberdade de ação proflssional também o integra. Pretende-se observar se tal direito de liberdade constitui-se segundo os parâmetros de conteúdo essencial, de restrições e de eflcácia dos direitos fundamentais expostos pelo jurista Virgílio Afonso da Silva,veriflcando se no caso concreto o STF analisou o direito de liberdade de exercício proflssional sob os enfoques do(a): a) suporte fático amplo ou restrito; b) teoria interna ou externa de limitação ou restrição de direitos fundamentais; c) limites imanentes, direito prima facie e sopesamento; e d) regra da proporcionalidade.

Para tanto, na primeira parte, o ensaio conterá considerações distintivas e aproximativas entre o direito social ao trabalho e o direito de liberdade de exercício proflssional, defendendo-se que eles integram o feixe de posições jurídicas subjetivas do direito do trabalho. Na segunda parte, a pesquisa abarcará os principais conceitos da teoria jurídica dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais do jurista Jorge Reis Novais e da teoria de conteúdo essencial e de restrições dos direitos fundamentais apontados pelo jurista Virgílio Afonso da Silva. Com esse aporte teórico, no terceiro item analisar-se-á a decisão do STF sobre o suporte fático do direito de liberdade de exercício proflssional dos músicos.

1. Do direito social ao trabalho e do direito de liberdade de exercício proflssional

Como o objeto de análise do presente artigo é o entendimento do STF consignado no Recurso Extraordinário n. 414.426 sobre a liberdade de exercício proflssional pelos músicos e como aqui se pretende tratar desse direito de liberdade em conjunto como direito social ao trabalho (o que não fora explicitado no julgamento em comento), cumpre-se sucintamente conceituar e distinguir o direito social ao trabalho e o direito de liberdade de exercício do trabalho, para defender que, ainda que os conceitos não possam ser confundidos, o direito fundamental ao trabalho, em sua amplitude, inclui um feixe de obrigações características de direitos sociais e de direitos de liberdade.

De início, vale lembrar que no nosso ordenamento jurídico a Constituição Federal deflne os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa como fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV), assegurada a liberdade de exercício de qualquer trabalho (art. 5º, XIII). É a Constituição também que deflne que a ordem econômica deverá ser organizada consoante aos ditames da justiça social, conciliando

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a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano (art. 170), para que todos possam subsistir com dignidade (art. 1º, III).

Tem-se, portanto, um Estado que permite a liberdade para que se empreenda e se auflra lucro no Brasil, desde que observe, entre outros, os valores do trabalho humano, cujas regras estão dispostas na Constituição, especialmente no art. 7º, e nas leis infraconstitucionais, mormente na CLT. Esse contexto normativo é que possibilita se falar em direito social ao trabalho, como conjunto de normas a reger as relações sociais do trabalho, incluindo as condições materiais de trabalho, a possibilidade e a liberdade de escolha de trabalho, o conteúdo do contrato de trabalho, entre outros. Enflm, o direito social ao trabalho é amplo e inclui tanto os direitos de liberdade como outras condições materiais.

Destaque-se que o Estado garante a liberdade de ação proflssional como direito fundamental de liberdade de dimensão negativa, cabendo-lhe proteger contra ameaças infundadas e sendo-lhe reservado estabelecer condicionantes ou restrições a esse direito de liberdade tão somente quando se justiflcar a tutela de interesses sociais.

Parece, portanto, que o direito do trabalho abarca uma complexidade de posições jurídicas subjetivas, tanto nos aspectos de direito social quanto de direitos de liberdade, possuindo dimensões positivas e negativas. Como bem pontua Leonardo Vieira Wandelli:

Trata-se, então, de compreender que, em torno de "um" direito ao trabalho, enfeixa-se um complexo de posições jurídicas subjetivas tanto de caráter prestacional (prestações fáticas e normativas), quanto de caráter defensivo, como direitos de proteção, assim como emanam, desse mesmo direito, obrigações ao Estado e aos particulares de respeitar, proteger e satisfazer, que conflguram a sua dimensão objetiva1.

Especiflcamente sobre o direito de liberdade de exercício proflssional, compreende-se que, ao regulamentar uma proflssão e exercer a competência flxada na parte flnal do art. 5º, XIII, da CF, que dispõe que "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou proflssão, atendidas as qualiflcações proflssionais que a lei estabelecer", o legislador tem o dever de respeitar outros direitos fundamentais, já que a garantia de liberdade não pode se restringir apenas para tutelar os interesses individuais de determinada categoria de trabalhador, mas também para resguardar os interesses da sociedade, garantindo que determinadas proflssões somente sejam praticadas por pessoas comprovadamente aptas.

Nesse sentido, Leonardo Vieira Wandelli aflrma:

Trata-se de uma reserva de lei qualiflcada, pois a limitação deve observar a relação de pertinência entre o requisito legal e a flnalidade a que se

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pretende atingir com a sua introdução. Bem assim, a própria limitação está limitada por outros direitos de índole constitucional2.

Historicamente, essas normas estatais reguladoras do exercício proflssional se restringiam

A exigir qualiflcações técnicas apenas às proflssões liberais, como as de médico, advogado ou engenheiro. Com o avanço da especialização e do ensino técnico no Brasil, passou-se a exigir qualiflcação técnica também para determinadas proflssões às quais o diploma de curso superior não era exigível3.

Nesse mesmo sentido, Miguel Reale observou que

À medida que progridem os processos de formação proflssional específlca, pressupondo técnicas cada vez mais apuradas de ensino, e quanto mais se impõe a salvaguarda dos interesses coletivos, o desempenho de certas proflssões deixa de ser matéria de estrita ação privada para passar à esfera do controle estatal4.

Se assim o é, se a regulamentação de uma proflssão é a exceção da liberdade do exercício de qualquer trabalho, ofício ou proflssão e se a regulamentação se restringe às atividades em que a sociedade necessita de proteção, como são as proflssões relacionadas à vida, à saúde, ao bem-estar, à segurança e à liberdade, a lei de competência privativa da União que regulamenta uma proflssão há de satisfazer os requisitos de exigência de conhecimentos técnicos e de risco social.

O jurista Celso Ribeiro Bastos disserta sobre os dois requisitos de legitimidade de restrição do direito de liberdade de ação proflssional, acima citados, nos seguintes termos:

Um, consiste no fato de a atividade em pauta implicar em conhecimentos técnicos e científlcos avançados.

É lógico que toda proflssão implica algum grau de conhecimento. Mas muitas delas, muito provavelmente a maioria, contentam-se com um...

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