A mutação do conceito constitucional de mercadoria

AutorSimone Rodrigues Costa Barreto
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Páginas133-177
133
CAPÍTULO 6 — A MUTAÇÃO DO CONCEITO
CONSTITUCIONAL DE MERCADORIA
6.1. Breves considerações sobre a tributação do consu-
mo no Brasil
Em outros países, a Constituição pouco prescreve sobre o
sistema tributário. Nos Estados Unidos da América, França e
Itália, por exemplo, foram alçadas ao plano constitucional so-
mente regras genéricas, como os princípios da igualdade e da
legalidade, assumindo o legislador infraconstitucional papel
decisivo na demarcação do sistema tributário.
O sistema tributário brasileiro apresenta, em relação aos
demais países, particularidades. A quantidade de disposi-
ções relacionadas à matéria tributária é tamanha que se pode
afirmar que, no Brasil, o sistema tributário está plasmado na
Constituição Federal. As demais regras tributárias vêm dar
efetividade ao que está na Constituição.
Uma das providências adotadas pelo constituinte bra-
sileiro, relativamente à tributação do consumo, foi repar-
tir a competência tributária entre a União, os Estados e os
Municípios.243 Em vez de centralizar a tributação do consumo
243. Conforme Geraldo Ataliba, “(…) nenhuma daquelas pessoas políticas, cria-
das pela Constituição, recebeu poder. Todas receberam meras competências,
simples parcelas de poder; em matéria tributária, portanto, União, Estados e
Municípios só tem competência tributária” (ATALIBA, Geraldo. Hermenêutica
Simone Costa.indd 133 15/11/2015 22:21:43
134
MUTAÇÃO DO CONCEITO CONSTITUCIONAL DE MERCADORIA
em uma única incidência, submetida ao mesmo ente tributan-
te, optou por descentralizá-la, criando incidências distintas,
repartidas entre diferentes entes tributantes, para cada setor
do consumo. À União foi atribuída a tributação dos produtos
industrializados (IPI); aos Estados, a tributação das opera-
ções de circulação de mercadorias (ICMS); e aos Municípios,
a prestação de serviços (ISS).244
Pode-se dizer, portanto, que o sistema tributário brasi-
leiro difere de forma significativa dos sistemas dos demais
países. Nestes, um único tributo recai sobre o consumo, de
uma perspectiva geral. Já no Brasil, diversos tributos recaem
sobre o consumo, em suas três feições: a indústria, o comércio
e a prestação de serviços.245
Eis a importância de o Direito se adequar às constantes
mudanças da sociedade. Fosse o consumo gravado por um
único tributo, dificilmente tais mudanças implicariam alguma
ingerência na forma de tributação. No entanto, considerando
a rígida e demarcada repartição da competência impositiva
para a oneração do consumo no Brasil, tais mudanças podem
vir a interferir na tributação.
Em outras palavras, mudanças no comportamento da
sociedade podem afetar a tributação do consumo no Brasil.
Queremos dizer, com isso, que a aquisição de produtos virtuais
e sistema constitucional tributário. In: _______ ( ). Interpretação no direito tribu-
tário. São Paulo: EDUC; Saraiva, 1975. p. 16).
244. Tem-se como exceção a prestação de serviços de transporte intermunicipal
e interestadual e de comunicação, cuja competência tributária foi outorgada aos
Estados, nos termos do art. 155, II, da CF.
245. Em decorrência dessa repartição, Paulo Ayres Barreto chama a atenção
para a complexidade do sistema tributário brasileiro. A despeito das deduções
permitidas pela não cumulatividade, nem sempre as incidências deixam de ser
cumulativas. Segundo o autor, “(…) não há dúvida de que a principal dificulda-
de no Brasil decorre do fato de que temos vários tributos, pertencentes a dife-
rentes esferas de governo, alcançando essas relações de consumo” (BARRETO,
Paulo Ayres. Tributação sobre o consumo: simplicidade e justiça tributária. In:
SANTI, Eurico Marcos Diniz de (Coord.). Tributação e desenvolvimento. Home-
nagem ao professor Aires Barreto. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 544).
Simone Costa.indd 134 15/11/2015 22:21:43
135
SIMONE RODRIGUES COSTA BARRETO
pode ficar excluída da tributação, embora se tratasse de uma
relação de consumo. A aquisição de um filme via download,
por exemplo, não configura uma industrialização, tampouco
uma prestação de serviços. Também não configura uma ope-
ração de circulação de mercadoria, se considerado o conceito
de mercadoria recepcionado pela Carta de 1988. E esse, cer-
tamente, não era o escopo da Constituição ao submeter o con-
sumo às esferas de competência da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios.
É com essa preocupação que elaboramos o presente
trabalho. Atentos à interferência que as mudanças no
comportamento da sociedade podem causar na tributação
do consumo no Brasil é que nos vimos na necessidade de
reinterpretar o conceito constitucional de mercadoria.
A reinterpretação do signo mercadoria assume, nesse
contexto, um instrumento de justiça fiscal. Segundo o escólio
de Betina Grupenmacher,
só há sociedade livre, justa e solidária quando o sistema tribu-
tário é composto por leis tributárias materialmente justas. A
política tributária há de ser, nessa medida, a política da justiça.
Aquela que reflita um comportamento revestido de moralidade
no exercício do poder de tributar.
246
E, conclui a Autora, afirmando que:
(…) a justiça fiscal só se realiza com a edição de leis tributárias
que distribuam igualmente a carga impositiva, onerando mais
pesadamente aqueles que têm mais aptidão para contribuir
(…).
247
246. GRUPENMACHER, Betina Treiger. Das exonerações tributárias. Incenti-
vos e benefícios fiscais. Novos horizontes da tributação: um diálogo luso-brasilei-
ro. Coimbra: Almedina, 2012. p. 45.
247. Idem, ibidem.
Simone Costa.indd 135 15/11/2015 22:21:43

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT