A Natureza Econômica do Direito, dos Tribunais e a Tragédia do Judiciário

AutorIvo Teixeira Gico Junior
Ocupação do AutorPh.D. em Economia (UnB)
Páginas209-237
6 A NATUREZA ECONÔMICA DO DIREITO, DOS T RIBUNAIS E A TRAGÉDIA DO JUDICIÁRIO
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O Judiciário444 é uma tecnologia institucional desenvolvida ao longo de milhares
de anos de experimentação humana com um único propósito: resolver disputas apli-
cando as regras jurídicas445. Como discutido no Capítulo 2, um Judiciário que funcione
bem é essencial para o desenvolvimento de qualquer nação. De uma perspectiva pú-
blica, a existência de um mecanismo imparcial de resolução de controvérsia permite
aos grupos políticos alcançar soluções de compromisso ex ante (ou seja, leis) que, se
violadas, serão devidamente impostas ex post por esse mecanismo externo (coerção)446.
Do ponto de vista privado, o Judiciário não apenas protege os direitos dos ci-
dadãos contra possíveis violações pelo próprio governo ( freios e contrapesos) e por
terceiros, mas também permite que os indivíduos cooperem uns com os outros para
atingir seus objetivos por meio da geração de compromissos críveis (ou seja, contra-
tos). No entanto, a função institucional do Judiciário requer que qualquer violação
de direito seja corrigida em tempo hábil. Nesse contexto, o congestionamento dos
tribunais é um problema socioeconômico que reduz a efetividade do Judiciário como
mecanismo de promoção de cooperação e de desenvolvimento e, em longo prazo, o
valor de coordenação do próprio direito.
Assim como a importância de um sistema adjudicatório para a construção e
manutenção de sociedades complexas é ancestral, a ideia de que a demora na pres-
tação jurisdicional equivale à sua negativa é milenar. Séculos antes da Era Comum, a
literatura judaica no Pirkei Avot, que faz parte do Mishnah, no Capítulo 5, parágrafo 8,
já dizia: “A espada veio ao mundo pela demora da justiça, pela perversão da justiça e
por aqueles que ensinam a Torá em desacordo com as leis aceitas.” No século XIII, a
parte nal da Cláusula 40 da Magna Carta dizia: “A ninguém nós venderemos, a nin-
guém nós negaremos ou retardaremos o direito ou a justiça.” E, como visto na Seção
3.4, a Constituição brasileira estabelece em seu art. 5º, inc. LXXVIII, que todos têm o
direito fundamental à duração razoável do processo.
No entanto, em quase todo o mundo, é comum dizer que o Judiciário está em
crise. Em muitos países, o Judiciário é considerado lento, ineciente e caro. Várias
reformas foram executadas para tentar acelerar os tribunais e muitas outras estão
em andamento, mas os resultados até agora não foram satisfatórios e é razoável diz er
que o número de casos e o congestionamento nos tribunais estão aumentando em
muitas jurisdições, inclusive no Brasil447.
Muitas razões foram oferecidas para explicar o congestionamento dos tribunais:
falta de recursos, procedimentos complexos, incentivos dos advogados, incentivos
444. Essa seção usa largamente os argumentos propostos e apresentados em Gico Jr. (2012), (2014), (2019) e (2020),
sem necessariamente fazer referência a cada um deles, para simplicar o texto.
445. Para uma discussão sobre outras possíveis funções do Judiciário, cf. Shapiro (1981).
446. Revisite a discussão acompanhando a Figura 3-1: A Função Social do Judiciário.
447. “O Poder Judiciário nalizou o ano de 2018 com 78,7 milhões de processos em tramitação, aguardando alguma
solução denitiva.” Cf. CNJ (2019, p. 79).
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ANÁLISE ECONÔMICA DO PROCESS O CIVIL Ivo T. Gico Jr.
210 dos juízes, má gestão, cultura de litígio, baixa qualidade das leis, número excessivo
de leis, baixo investimento em segurança jurídica, entre outros. Esforços têm sido
feitos para tentar identicar a relevância de cada uma dessas possíveis explicações e,
então, resolvê-las. Todavia, a ideia de que a própria natureza do direito e do sistema
adjudicatório possam contribuir para o problema do congestionamento não c ostuma
ser explorada. Neste capítulo vamos explorar justamente essa ideia.
6.1 Teoria Econômica do Bens e Serviços
Como juristas e economistas frequentement e usam as mesmas palavras com
signicados diferentes, é útil ter alguma uniformidad e conceitual. Por muito tempo, a
discussão básica sobre bens públicos versus bens privados na economia tem sido um
esforço para distinguir entre que tipo de bem deveria ser provido por mercados e que
tipo deveria ser provido pelo Estado. Se algo fosse classicado como bem privado, de-
veria ser fornecido pelo mercado; se fosse bem público, pelo Estado. Essa distinção era
baseada, única e exclusivamente, no atributo de “rivalidade” do bem, tal qual identicado
originalmente por Samuelson448. Entretanto, nossa compreensã o evoluiu para abranger
mais do que apenas o atributo de rivalidade e incluir também um segundo atributo
chamado “excludabilidade”, como explicado por Buchanan449 e Ostrom e Ostrom450.
Em tal abordagem moderna, a excludabilidade de a cesso refere-se à possibili-
dade de o possuidor de um determinado bem ou prestador de determinado serviço
excluir, a baixos custos, outras pessoas da fruição do bem ou serviço fornecido. Um
computador é um bem exclusivo porque o seu possuidor pode impedir a baixos custos
que outros o utilizem. Por outro lado, a segurança nacional é um bem não exclusivo,
pois, uma vez fornecida em um dado território, não é viável impedir a baixos custos
que outras pessoas dentro do mesmo território dela tamb ém gozem. É amplamente
aceito que a possibilidade de exclusão é um requisito para o fornecimento de qual-
quer bem ou serviço pelo mercado, uma vez que é a excludabilidade que permite ao
fornecedor impedir que o cliente em potencial tenha acesso ao bem ou serviço sem
uma contraprestação. Como discutido sobre a Teoria da Barganha na Seção 4.1.2, é
a excludabilidade que impõe a uma das partes a necessidade de apresentar a outra
parte algo de interesse desta; em outras palavras, é a característica de exclusividade
que possibilita a existências das trocas voluntárias e o surgimento de um mercado.
Por outro lado, a rivalidade ocorre quando o consumo de um bem ou serviço por
uma pessoa impede, substancialmente, que o mesmo bem ou serviço seja consumido
por outra pessoa, i.e., o consumo por um agente diminui signicativam ente a utilidade
do mesmo bem para os demais. Uma maçã e um copo de água são bens rivais, uma vez
que seu consumo por um indivíduo impede que outros deles usufruam. Quando um
448. Cf. Samuelson (1954).
449. Cf. Buchanan (1965).
450. Cf. Ostrom e Ostrom (1999 [1977]).
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