Tópicos Avançados na Teoria Positiva do Processo

AutorIvo Teixeira Gico Junior
Ocupação do AutorPh.D. em Economia (UnB)
Páginas149-207
5 TÓPICOS AVANÇADOS NA TEORIA POSITIVA DO PROCESSO
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No capítulo anterior apresentamos e discutimos os fundamentos d a análise eco-
nômica do processo e os modelos básicos a partir dos quais fomos capazes de entender
e discutir fenômenos processuais sobre os quais a teoria do processo tradicional, via
de rega, não se debruça, tais como a decisão de ajuizar uma ação, de conte stá-la ou de
celebrar um acordo. Agora, munidos desse ferramental, podemos expandir a análise
para alguns tópicos mais avançados e que não ainda foram explorados, mas que são
igualmente importantes para a compreensão do fenôm eno processual.
Em especial, vamos falar de quatro questões especícas: (i) a insuciência do
espaço de acordo para a celebração de um acordo; (ii) a função do duplo grau de ju-
risdição e seu impacto sobre a estrutura de incentivos dos litigantes; (iii) o impacto
do problema agente-principal entre cliente e advogado e, por m; (iv) faremos uma
apresentação dos principais vieses identi cados na análise econômica comporta-
mental e que podem ser relevantes em uma discussão processual.
5.1 A Insuciência do Espaço de Acordo
No nal do capítulo anterior, utilizamos a Teoria dos Jogos para tentar entender o
impacto da presença de assimetria de informação no comportamento do réu ao decidir
se faz uma proposta de acordo ou se contesta a ação judicial após ser devidamente
citado. Agora, vamos usar a mesma teoria, mas um modelo diferente para estudar o
cenário em que, mesmo diante da existência de um excedente cooperativo e, portanto,
da racionalidade de celebração de um acordo, as partes talvez não consigam chegar
a um acordo e, portanto, cooperar.
Primeiro, vamos explorar essa possibilidade como o resultado do comporta-
mento estratégico das partes (Seção 5.1.1); depois, vamos explorar como esse com-
portamento pode ser o resultado da racionalidade prospectiva decorrente dos efeitos
dos custos irrecuperáveis sobre a estrutura de incentivos dos agentes (Seção 5.1.2).
5.1.1 Excesso de Negociação e o Dilema do Prisioneiro
Ao pensar sobre a questão do excesso de negociação, benecio-me da experiência
de décadas como mediador em grandes negociações, como litigante perante os tribu-
nais e como árbitro em arbitragens comerciais. Nesse sentido, a experiência mostra
que é de se esperar que, em casos emocionalmente carregados, como nos casos de
divórcio ou de dissolução societária de empresas familiares (a versão comercialista
do divórcio), as partes possam se comportar de maneira contrária ao seu próprio
interesse de longo prazo. A depender do contexto, em algumas circunstâncias, punir
ou prejudicar o outro lado da mesa pode trazer mais utilidade para a pessoa do que
resolver o problema.
Por outro lado, em situações não tão carregadas emocionalmente, seria de se
esperar uma postura mais objetiva, mais focada em resultados, especialmente quan-
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ANÁLISE ECONÔMICA DO PROCESS O CIVIL Ivo T. Gico Jr.
150 do as partes estão acompanhadas de um advogado. O acordo deveria ser fácil de ser
alcançado. Todos os litígios em que há um excedente cooperativo deveriam terminar
em acordo, com as partes – devidamente orientadas por seus advogados – dividindo
o excedente e evitando os custos do litígio. No entanto, nem sempre é isso que ocorre,
mesmo quando há excedente a ser dividido. Por quê?
Uma possível explicação é o excesso de negociação ou o que os americanos
costumam chamar de hard bargaining. Assim como em quase toda relação com um
especialista, em geral, o cliente não é capaz de mensurar efetivamente a qualidade do
serviço do advogado, exceto pelos sinais externos facilmente perceptíveis339. No caso
de uma negociação, um advogado que se comporte de forma dura e intransigente
pode ser visto – pelo seu cliente – como um advogado que defende ferrenhamente
os seus interesses, enquanto o advogado mais ponderado, que considera os dois la-
dos da mesa, pode ser percebido como um advogado fraco, que capitula facilmente.
Sem saber como o cliente perceberá a qualidade de sua atuação, um advogado pode
simplesmente adotar a postura mais agressiva por precaução e, como veremos, isso
dicultará a negociação, podendo, inclusive, levar a um impasse340.
Apenas a título de exemplo, o autor deste livro teve a feliz oportunidade de
presenciar a negociação de uma dissolução societária em que o advogado do outro
lado era um antigo professor seu (sim, alguns ainda estão vivos). Antes mesmo de
começar a negociação, o professor entrou em contato para reforçar que, qual quer
palavra eventualmente mais dura dita durante as negociações não seria um ataque
pessoal, mas apenas o resultado de militância ferrenha. O que ele estava tentando
dizer é que, apesar de ser um cavalheiro e muito educado, o que de fato é, durante as
negociações, ele poderia agir, digamos assim, de forma mais dura.
Em tese, o papel de um advogado negociador é chegar a um resultado que seja
benéco para ambas as partes, pois, como visto na Seção 4.1.2 sobre a Teoria da Bar-
ganha, essa é a única forma de um acordo voluntário ser celebrado. Logo, a função de
um negociador é transformar um jogo de perde-ganha (jogo competitivo), em que o
339. Você já se perguntou por que muitos advogados gastam demasiadamente em ternos, relógios e carros caros
e escritórios nababescos? Da próxima vez, pergunte-se se não estão eles sinalizando para o cliente como são
prossionais bem-sucedidos. Tão bem-sucedidos que podem alocar recursos em luxos supéruos; logo, “de-
vem” ser bons advogados. Essa conduta se assemelha ao frondoso rabo do pavão que, ao invés de ajudar a sua
sobrevivência, diculta. Logo, sinaliza para a fêmea que seu detentor é tão jovem e forte que consegue manter
um rabo frondoso e ainda assim sobreviver. Em biologia evolucionária, esse tipo de estratégia é chamado de
sinalização. Na economia, a Teoria da Sinalização ou Teoria dos Sinais estuda os mecanismos utilizados por
alguns agentes para sinalizar (honesta ou desonestamente) informações para a outra parte e, assim, resolver
os problemas de assimetria de informação. A título de exemplo, para uma aplicação da Teoria da Sinalização
ao comportamento do consumidor, cf. Boulding e Kirmani (1993).
340. A literatura de negociação condena o uso da estratégia de posicionamento como um perigo aos sucessos
das negociações, mas a literatura comportamental sugere que o viés de ancoragem pode facilitar um acordo,
como discutido na Seção 5.4 adiante. Cf. Korobkin e Guthrie (1994).
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que um lado ganha o outro perde, em um jogo de ganha-ganha (jogo cooperativo)341,
em que todos ganham, e, assim, chegar ao acordo. Qualquer manual de negociação
ou de formas alternativas de resolução de controvérsia vai lhe dizer isso. Mas se isso
é tão óbvio, insisto, por que muitas vezes partes e advogados racionais não conse-
guem fechar um acordo ainda que haja excedente cooperativo a ser partilhado? Uma
resposta pode ser o problema do comportamento estratégic o.
Voltando à ideia de excedente cooperativo, suponha que Antônio tenha um
carro que ele valoriza em R$10 mil, e Roberta valorize o mesmo carro em R$20 mil.
O excedente cooperativo é a diferença dos valores de reserva, logo, há um excedente
de R$10 mil a ser gerado com a troca. Mas como esse valor será distribuído entre as
partes? Se Antônio disser a Roberta que só venderá o carro por R$19 mil, e ela acre-
ditar, então, o negócio será fechado a esse preço e ela cará com apenas R$ 1 mil do
excedente, mas adquirir o carro a R$19 mil é preferível a não adquirir o carro. Por
outro lado, ela poderia retrucar, dizendo que não compra o carro por mais de R$12
mil, e a mesma lógica se aplicaria. Como se resolve essa situação?
Se estivermos em um contexto de mercado competitivo342, tanto Antônio
quanto Roberta terão outras opções para comprar e para vender o carro e nenhum
deles terá condições de forçar o outro a aceitar o seu preço. Logo, a ameaça de
levantar da mesa de negociações de nenhum deles é crível . Se um dos lados não
oferecer um preço razoável, tanto Antônio quanto Roberta poderão buscar um
outro parceiro no mercado para realizar a troca. A concorrência entre consumi-
dores e a concorrência entre ofertantes faz com que o preço das trocas, em um
mercado competitivo, na média, seja o preço de mercado. Nesse sentido, é de se
esperar que eles fechem o negócio a um preço próximo ao de mercado, que mais
se aproxima do preço com o qual as outras pessoas estão fechando negócios se-
melhantes, por exemplo, R$15 mil.
Se a negociação de um acordo judicial ocorresse em um mercado competitivo,
não haveria problema de comportamento estratégico e um ac ordo sempre seria
alcançado, pois se o autor não quisesse aceitar a proposta do réu, ele poderia ne-
gociar com outra pessoa. E se o réu não aceitasse a proposta do autor, ele poderia
negociar com outra pessoa. Todavia, obviamente, não é assim que funciona em
uma ação judicial, pois a obrigação vincula apenas pessoa do obrigado, em geral o
réu343, e não pode ser exigida de outrem. Por isso, no contexto de uma negociação
341. Do ponto de vista teorético dos jogos, um jogo não-cooperativo é aquele em que as partes não podem se
vincular por um contrato, enquanto um jogo cooperativo é aquele em que elas podem fazê-lo. O conceito
é levemente diverso do que se está dizendo aqui. Para uma discussão sobre a imprecisão terminológica da
Teoria dos Jogos e a confusão que isso gera nos juristas, cf. Gico Jr. (2007, p. 233 e ss.).
342. Sobre o funcionamento do mercado, cf. Gico Jr. (2007) e (2018). Sobre o que é preço e sua formação, cf. Gico Jr.
(2019).
343. Aqui estamos desconsiderando os casos em que outros agentes podem ser responsáveis pelo débito de terceiros,
como na ança, aval etc. e os casos de cessão de direito, mas nestes casos eles seriam devedores também.
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