Negociação coletiva, Convenção N. 151 da OIT e eficácia dos instrumentos negociados

AutorArnaldo Boson Paes
Páginas59-70

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1. Introdução

O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário n. 693456, ocorrido em 27 de outubro de 2016, com repercussão geral reconhecida, ao decidir que a Administração Pública deve cortar o ponto dos grevistas e proceder aos descontos nos salários, reacendeu o debate sobre a necessidade de institucionalização da negociação coletiva no serviço público.

Na ocasião, foi fixada a tese de que "a administração pública deve proceder ao desconto dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre, permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público".

O precedente, ao determinar o corte dos salários dos servidores grevistas, tem impacto direto e imediato sobre a negociação coletiva, na medida em que as categorias "sindicato", "greve" e "negociação" estão em regime de complementaridade, espécies de vasos comunicantes, alimentados que são pela seiva da liberdade sindical.

De fato, a negociação, assim como a greve, integra o conteúdo essencial da liberdade sindical, pois impossível a existência de sindicato de servidores na ausência da greve ou da negociação, pois se o direito assegura a vida dos sindicatos é para que lutem pela realização de seus fins.

Nesse quadro, há de ser considerado que os sistemas democráticos de relações coletivas de trabalho vêm reconhecendo a legitimidade e a necessidade de os servidores públicos participarem na formação das normas que regulam suas condições de trabalho no regime jurídico-administrativo.

Incursão histórica nas democracias contemporâneas demonstra que gradualmente passou-se de um sistema de não negociação para um sistema de negociação formal, intercalado por uma realidade de negociação informal.

Progressivamente os métodos e procedimentos incorporados pelo Direito do Trabalho passaram a exercer forte influência sobre a institucionalização da negociação coletiva no serviço público, uma decorrência do reconhecimento constitucional dos direitos coletivos dos servidores públicos (GUANTER, 1986, p. 25).

Nesse aspecto, por meio das experiências já consolidadas no âmbito do Direito do Trabalho, observa-se em muitos sistemas jurídicos uma tendência à renovação, à oxigenação e à democratização do Direito Administrativo, que passa por uma erosão de suas bases e de seus princípios fundamentais.

O Brasil, no entanto, não se encontra no rol dos países em que a negociação coletiva constitui instrumento democrático de participação dos servidores no processo decisório, estando completamente afastada a figura da negociação e de seus instrumentos (ARAÚJO, 2011).

Aqui não existe autêntica negociação coletiva, o diálogo não flui adequadamente, as reuniões são vazias, as autoridades limitam-se a invocar genericamente argumentos econômicos, não há revisão periódica do poder de compra dos salários, nem existe valorização do servidor como meio de aprimoramento dos serviços públicos.

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Deflagrados os conflitos, por falta de um sistema de negociação, a Administração Pública apresenta sua proposta e tenta impor as condições de trabalho. Aceita a proposta, encaminha o projeto de lei ao Congresso Nacional. Recusada, envia mesmo assim, forçando os servidores à deflagração das greves, que se arrastam indefinidamente.

O Direito Comparado, contudo, vem demonstrando a necessidade de adequação do modelo brasileiro de serviço público à nova realidade sociopolítica que as experiências jurídicas democráticas consagram.

Nesse contexto, este ensaio analisa a temática da negociação coletiva no serviço público, as consequências da ratificação pelo Brasil da Convenção n. 151 da Organização Internacional do Trabalho e a eficácia jurídica dos instrumentos negociados.

O estudo compreende os modelos de consulta e negociação coletiva, a negociação na Constituição de 1988, a decisão do STF em face da Lei n. 8.112/1990, a relação entre direito de greve dos servidores e a negociação coletiva, a ratificação da Convenção n. 151 da OIT e a eficácia jurídica dos instrumentos negociados.

2. Consulta e negociação coletiva no serviço público

Examinando os procedimentos de participação dos servidores públicos na determinação das condições de trabalho, constata-se que os modelos são definidos em razão dos condicionamentos históricos, conduzindo às especificidades dos ordenamentos jurídicos nacionais.

De um modo geral, há sistemas que negam qualquer eficácia jurídica aos ajustes, outros admitem eficácia bastante limitada e existem ainda aqueles em que a negociação coletiva ocupa espaço central, resultando dos ajustes eficácia jurídica direta.

O modelo de simples consulta é próprio dos regimes em que há a prerrogativa unilateral do Poder Público de determinar as condições de trabalho, conservando a concepção tradicional, autoritária e estatutária de função pública, mas com possibilidade de audiência prévia dos servidores.

O modelo de negociação coletiva corresponde ao procedimento por meio do qual é possível alcançar consenso entre os servidores e a Administração Pública, visando à regulamentação das condições por ato bilateral, resultando um instrumento normativo no qual se formaliza o conteúdo do consenso, dotado de eficácia jurídica.

Um modelo de consulta não exclui o de negociação coletiva, mas o primeiro é insuficiente, razão por que há tendência de progressiva superação da consulta por um modelo de negociação coletiva, ainda que para determinadas matérias a negociação seja pré-legislativa ou de legislação negociada.

Na negociação coletiva pretende-se alcançar o consenso, visando à regulamentação das relações por meio de ato bilateral. Pelo contrato coletivo negociado, a Administração Pública e as entidades dos servidores pactuam, nos limites definidos em lei, as normas que regularão as condições de trabalho, com eficácia jurídica direta.

Admissível ainda a negociação pré-legislativa, quando envolver matéria sujeita à reserva da lei, situação em que a eficácia jurídica é mais restrita, porquanto, embora vinculante para a Administração Pública, não o é para o Parlamento, cuja soberania não está condicionada ou limitada no momento de elaborar e aprovar o projeto de lei.

A negociação pode envolver aspectos gerais, atingindo todos os servidores de um ente estatal. Em seguida, ou concomitamente, podem ocorrer negociações específicas, por setor de trabalho, em processo descentralizado que visam ao atendimento de reivindicações de certos grupos de servidores e interesses dos órgãos estatais.

Essas negociações específicas têm a virtude de flexibilizar a gestão administrativa, contemplando o acordo geral apenas as linhas básicas das relações coletivas de trabalho, ficando aos níveis menores a competência para, conforme as peculiaridades, estabelecer as demais normas sobre condições de trabalho.

Quanto à frequência das negociações, podem ser instituídas de forma permanente ou em caráter temporário, conforme o interesse das partes e a natureza dos assuntos envolvidos, com a possibilidade de fixar a negociação em períodos diversos, mas sendo recomendável a configuração de um processo permanente de diálogo social.

No Brasil, como dito, não há autêntica negociação coletiva. Existem meros diálogos informais, por meio de métodos inadequados e reuniões vazias, em que quase sempre os governos impõem unilateralmente as condições de trabalho.

Os novos paradigmas indicam que se faz necessária, urgentemente, a institucionalização no Brasil de um sistema de negociação coletiva, de modo que se assegure o pleno e efetivo exercício dos direitos coletivos pelos servidores e que a negociação coletiva seja instrumento adequado e eficaz para a resolução dos conflitos.

Deve haver um modelo de negociação institucionalizada, pois a Constituição admite e inclusive exige

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um espaço negocial, com o reconhecimento dos direitos coletivos dos servidores e a passagem de um modelo unilateral e autoritário para um modelo democrático e bilateral de função pública (GRAU, 1987).

Nesse contexto, a adoção de adequado modelo de negociação passa pelo exame dos direitos coletivos dos servidores na Constituição de 1988 e pela análise da Convenção n. 151 da OIT, standart fundamental ratificado há algum tempo pelo Brasil e que está a exigir imediata institucionalização do procedimento negocial.

3. A negociação coletiva na constituição de 1988

No Brasil, até a promulgação da atual Constituição, não existia consagração de liberdade sindical para os servidores públicos. As constituições anteriores não se reportavam a esse direito e havia expressa vedação pelo art. 566 do Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, que instituiu a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), esta de forte concepção corporativista e autoritária, promulgada sob o influxo da Constituição de 1937, inspirada pela Carta del Lavoro de 1927.

Com a redemocratização do país, a Constituição Federal de 1988 assegurou a plena liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar (CF, art. 5º, XVII), garantindo aos trabalhadores, em geral, a liberdade profissional ou sindical (art. 8º, caput), considerando obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho (art. 8º, VI) e assegurando o direito de greve (art. 9º, caput) (BRASIL, 1988).

Com a Constituição de 1988, a liberdade sindical foi expressamente atribuída aos servidores civis, conforme disposto no art. 37, VI, ficando, entretanto, expressamente vedado qualquer direito...

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