Notas sobre o direito de superfície e o direito de laje

AutorRicardo Pereira Lira
Páginas369-385
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NOTAS SOBRE O DIREITO DE SUPERFÍCIE
E O DIREITO DE LAJE
Ricardo Pereira Lira
Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor
Emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Ex-Diretor da Faculdade
de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Presidente Cientíco
da Academia Brasileira de Direito Civil – ABDC.
Sumário: 1. O direito de superfície; 1.1 Autonomia do direito real de superfície; 1.2 Estrutura do direito
de superfície; 1.3 Aspectos subjetivos, objetivo da relação superciária e os dados terminológicos;
1.4 Espécies de superfície; 1.5 Formas de constituição da superfície; 1.6 Exercício da superfície;
1.7 Os direitos e as obrigações do superciário e do concedente; 1.8 Usos e vantagens do direito de
superfície; 1.9 O desenvolvimento do direito de superfície no direito brasileiro – 2. O direito de laje.
1. O DIREITO DE SUPERFÍCIE
Por ocasião do vigésimo natalício do Código Civil de 2002, muito me honra
tecer estes comentários acerca dos institutos jurídicos do direito de superfície e do
direito de laje, os quais dediquei longos anos de minha vida ao seu estudo.
Alcançadas duas décadas de vigência do atual Código Civil, a relevância não
apenas jurídica, mas especialmente social de ambos justif‌ica revisitá-los, particular-
mente com os avanços da doutrina e da jurisprudência.
Iniciarei, pois, a análise a partir do direito de superfície. Mas para chegarmos aos
contornos conceptuais do direito de superfície, devemos partir da noção de acessão.
Acessão é a união física entre duas coisas, formando, de maneira indissolúvel,
um conjunto em que uma das partes, embora possa ser reconhecível, não guarda
autonomia, sendo subordinada, dependente do todo, seguindo-lhe o destino jurídico.
A acessão pode ser discreta ou contínua. Discreta é a que resulta endogenamen-
te de um desenvolvimento natural da própria coisa, como acontece com os frutos
das árvores e com a crias dos animais. Contínua é a acessão caracterizada por uma
união exógena das coisas, f‌im de um processo de fora para dentro, como ocorre na
construção ou plantação. A rigor a plantação talvez constitua um caso de acessão
mista, em que há uma fusão orgânica, resultante de uma ação mecânica (seminatio).
O fenômeno da edif‌icação (inaedif‌icatio) e da plantação (plantatio) é dominado
pelo princípio superf‌icies solo cedit, por força do qual tudo que se planta ou constrói
em solo alheio é da propriedade do dono do solo (dominus soli). Esse é o princípio
que prevalece em nosso ordenamento.
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Pode ocorrer, contudo, a suspensão dos efeitos da acessão, quando se terá a su-
perfície temporânea, ou a interrupção dos efeitos da acessão, quando se consubstan-
ciará caso de superfície perpétua.1 Não incidirá, nesses casos, o princípio superf‌icies
solo cedit, pois a propriedade do incremento (construção ou plantação) é de quem
o realizou, continuando o terreno do domínio do dono do solo. Essa suspensão ou
interrupção resulta do direito de superfície.2
O direito de superfície suspende ou interrompe os efeitos da acessão, de forma
que alguém constrói ou planta sobre solo alheio, f‌icando com a propriedade (su-
perf‌iciária) da construção ou plantação, distinta da propriedade do dono do solo.
Em face dessas noções preambulares, já podemos f‌ixar o conceito do direito de
superfície: é o direito real sobre a coisa alheia, autônomo, temporário ou perpétuo, de
fazer uma construção ou plantação sobre ou sob o solo alheio, f‌icando a construção
ou plantação da propriedade de quem constrói ou planta, bem como é o direito de
manter essa propriedade sobre o solo alheio.
É direito real sobre a coisa alheia porque, na sua forma inicial, se revela em prin-
cípio por uma concessão ad aedif‌icandum ou ad plantandum, sendo que o instrumento
que contém essa concessão (contrato superf‌iciário), levado ao Registro de Imóveis,
já dá nascimento a um direito real sobre o lote ou gleba alheia. Concretizando-se a
concessão, pela construção ou plantação, o direito que era incorpóreo se corporif‌ica,
com a materialização do incremento, gerando o direito real de mantê-lo sobre ou sob
a propriedade de outrem.
1.1 Autonomia do direito real de superfície
Esse direito real é autônomo. Autônomo porque o direito de superfície guarda
características que o distinguem dos demais direitos reais sobre a coisa alheia.
Senão vejamos.
É diverso da enf‌iteuse, que é a maneira mais profunda de desdobramento da
propriedade, por isso que o enf‌iteuticador entrega ao enf‌iteuta o uso, o gozo e até
1. Cumpre-nos destacar que na regulamentação do art. 1.369 do Código Civil, o direito de superfície insti-
tui-se tão somente por tempo determinado e, logo, de modo temporário. Nesse sentido, explicita Carlos
Roberto Gonçalves que “Embora várias legislações, como o Código Civil português, o italiano, o suíço e
o de Quebec, permitam seja a superfície constituída por tempo indeterminado, o Código Civil brasileiro
de 2002 só admite a sua contratação por tempo determinado. Não se justif‌ica, realmente, a permissão para
que seja indef‌inida a duração dos direitos reais imobiliários de uso e gozo que implicam desmembramento
do domínio. Deve f‌ica a critério dos contratantes a estipulação de prazo que atenda aos seus interesses”
(GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das coisas. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
v. 5, p. 176). Sem prejuízo, o Estatuto da Cidade, não revogado pelas disposições do Código Civil, o admite
expressamente por prazo indeterminado, como se infere da disciplina legal do art. 21 da Lei 10.257/2001:
“O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo deter-
minado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis”.
2. Afasta-se, portanto, a aplicação do princípio da gravitação jurídica, segundo o qual o acessório segue a sorte
do principal, como observa Álvaro Villaça Azevedo (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito civil: direito
das coisas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. v. V, p. 158).
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