'Novos condomínios' e a multipropriedade imobiliária: da comunhão do solo à partilha da unidade no tempo

AutorGuilherme Cinti Allevato
Páginas387-415
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“NOVOS CONDOMÍNIOS”
E A MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA:
DA COMUNHÃO DO SOLO À PARTILHA
DA UNIDADE NO TEMPO
Guilherme Cinti Allevato
Mestrando em Direito Civil na UERJ. Bacharel em Direito na UERJ. Advogado associado
e consultor jurídico.
Sumário: 1. Introdução – 2. Os condomínios antes do CC/2002: modelo inicial simplista, o desen-
volvimento das propriedades horizontais e experiências embrionárias da multipropriedade – 3. O
advento do CC/2002: derrogação da Lei 4.591/64, novidades no condomínio edilício e enunciado
doutrinário sobre novos arranjos condominiais – 4. Lei da reurb e condomínio de lotes no CC/2002:
uma tentativa de retirar o véu da informalidade fundiária – 5. Lei 13.777/2018 e a consagração de
“condomínios temporais”: a positivação da multipropriedade imobiliária no Brasil – 6. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Vivemos na Era do Compartilhamento1. Espaços, sentimentos, momentos, ex-
periências. Tudo é mais bem aproveitado se colocado à disposição do maior número
possível de pessoas. Até mesmo um intervalo de tempo como dono de uma unidade
imobiliária. Algo inimaginável para nossos pais, assim como os prédios com vários
apartamentos e áreas comuns eram impensáveis para nossos avós. De uma geração
a outra2, embora em graus e contextos distintos, nota-se crescente necessidade de
1. “A cada dia surgem novas formas de compartilhamento, as quais rapidamente são incorporadas ao nosso
cotidiano. Quando nos damos conta já não lembramos como era viver sem elas alguns anos atrás. [...].
Você já se deu conta de como o compartilhamento é um caminho sem volta? Seja por questões econômicas,
ambientais, logísticas ou por praticidade. Alguns anos atrás, era impensável para muitos dividir por algumas
horas o balcão de um bar ou restaurante com estranhos que dirá compartilhar uma viagem no seu veículo”.
(MAZZARIOL, Juliana de Oliveira. A era do compartilhamento: novas (?) formas de ocupação e convívio.
Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/319419/a-era-do-compartilhamento---no-
vas-----formas-de-ocupacao-e-convivio.
2. “Na década de 70 um jovem de 17 anos ansiava pela maioridade para ganhar um carro e assim poder exercer
sua liberdade dirigindo para qualquer lugar. O patrimônio exclusivo era o seu reconhecimento social de
autonomia, status e poder. Em 2019, o jovem de 17 anos, f‌ilho do anterior, impacta o seu pai quando em
um jantar de família af‌irma “eu não terei carro, vou de UBER”. Mas o que aconteceu entre uma geração e
outra para fazer esvair a ideia de patrimônio exclusivo e de acumulação de bens como desejo primordial de
uma pessoa?” (GUILHERMINO, Everilda Brandão. Acesso e compartilhamento: a nova base econômica e
jurídica dos contratos e da propriedade. Disponível: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-con-
tratuais/311569/acesso-e-compartilhamento--a-nova-base-economica-e-juridica-dos-contratos-e-da-pro-
priedade).
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partilhar a propriedade. Isso porque os anos passam e a exclusividade cabe menos
no bolso dos brasileiros. É o que se observa na trajetória do direito real de domínio
sobre imóveis, desde a antiga Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916 (“CC/1916”), até a
vigente Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (“CC/2002”), com recentes alterações
em 2017 e 2018.
Nos anos 20 do século passado, o Brasil ainda fazia a transição do modelo eco-
nômico agrário para o industrial. Começavam a surgir e aumentar as construções e
ocupações nas áreas que viriam a se tornar o que, hoje, denominamos grandes cida-
des. Havia, assim, oferta de espaços para uma procura f‌isicamente compatível. Cada
um, portanto, poderia, a um valor digamos razoável, obter seu “pedaço de chão”.
Já na década de 60, após os governos desenvolvimentistas de Getúlio Vargas e
Juscelino Kubitschek, a demanda seguia crescente, porém as principais urbes estavam
saturadas. Terrenos livres viraram artigo de luxo. Como consequência das ditas leis
do mercado, os preços dispararam e o imóvel a título singular passou a ser um sonho
inalcançável até para classes médias da população. Ganhou força, então, uma nova
mentalidade. Ora, se nenhum dos interessados, sozinho, tinha condições f‌inanceiras
de comprar um terreno e nele mandar levantar moradia, fábrica ou estabelecimento,
talvez várias pessoas, com aportes medianos, conseguiriam adquirir o solo e viabilizar o
prédio. Entretanto, a cada indivíduo caberia um recanto só seu no conjunto, agrupado
a outros módulos, por meio de espaços de convivência e uso de todos. Desta feita, os
condomínios edilícios proliferaram nas zonas urbanas do país, ensejando a edição de
diploma próprio, a Lei 4.591/64, que passou a vigorar paralelamente ao CC/1916. Tal
normativa foi aproveitada pelo CC/2002, com rearranjos e alguns ajustes pontuais.
O avanço do século XXI, de um lado, consolidou a estrutura condominial, mas
não sem trazer à tona outros desaf‌ios para o tema, quais fossem: (i) as ocupações imo-
biliárias irregulares; e (ii) a crescente onerosidade, sob perspectiva custo-benefício,
da aquisição e manutenção de uma segunda unidade imobiliária. Indo de encontro ao
primeiro ponto, o legislador positivou os condomínios de lotes, urbano simples e os
loteamentos controlados, mediante edição da Lei 13.465/2017 (“Lei da REURB”). Na
sequência, promulgou a Lei 13.777/2018, consagrando o condomínio em multipro-
priedade. Se, no passado, os preços f‌izeram com que os terrenos fossem divididos em
módulos individuais, agora, a segmentação atinge as unidades autônomas, gerando
frações de tempo de uso e fruição exclusivos em relação ao imóvel como um todo.
Ambas as leis acresceram dispositivos (arts. 1.358-A a 1.358-U) e novos arranjos
condominiais ao CC/2002, sendo estes o objeto de investigação deste trabalho.
No que tange à metodologia, o artigo está pautado na técnica de análise crono-
lógica do instituto dos condomínios (inclusive o multiproprietário), através de uma
linha do tempo iniciada com a entrada em vigor do CC/1916 e que desemboca no
cenário atual, com as adições feitas ao CC/2002 em 2017 e 2018. Durante o percurso,
serão tecidos comentários acerca das principais características e normas aplicáveis
em cada recorte temporal, incluindo ref‌lexões sobre alguns aspectos controvertidos.
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