Novos modelos de entidades familiares

AutorGuilherme Calmon Nogueira da Gama
Páginas435-472
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NOVOS MODELOS DE ENTIDADES FAMILIARES
Guilherme Calmon Nogueira da Gama
Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ) e do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC/RJ).
Professor Permanente do PPGD da Universidade Estácio de Sá (UNESA/RJ). Desembar-
gador e Vice-Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2).
Sumário: 1. Introdução – 2. Famílias jurídicas no direito brasileiro – 3. Famílias fundadas na conju-
galidade; 3.1 Casamento; 3.2 União estável (ou companheirismo); 3.3 Casamento e união estável de
pessoas do mesmo sexo (casamento e união estável homoafetivas); 3.4 Uniões simultâneas e uniões
poliafetivas – 4. Famílias fundadas no parentesco; 4.1 Biparentalidade; 4.2 Monoparentalidade;
4.3 Pluriparentalidade (ou multiparentalidade) – 5. Famílias recompostas (ou reconstituídas) – 6.
Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O período atual de vigência do Código Civil de 2002 em nada se assemelha ao
tempo em que foi editado o Código Civil de 1916 baseado na f‌ilosof‌ia da construção
de um sistema jurídico completo, hermético e total contido nas normas jurídicas
codif‌icadas.
As transformações operadas na sociedade brasileira durante o século XX reper-
cutiram enormemente nas relações familiares e apresentam, neste início de século
XXI, inovações fundamentais nas famílias jurídicas – ou novas entidades familiares
– na perspectiva do Constituinte responsável pelo texto da Constituição de 1988.
De um período extremamente conservador e autoritário no que se refere à família
tradicional, elitizada, hierarquizada e matrimonializada – datada do f‌inal do século
XIX e início do século XX no caso brasileiro – até o estágio contemporâneo da família
plural, democrática, humanizada e funcionalizada ao atendimento e à promoção da
dignidade das pessoas dos seus integrantes, foram inúmeros os acontecimentos que
motivaram alterações jurídicas no quadro das relações familiares. Houve profundas
mudanças de função, de natureza, de composição e de concepção das famílias, espe-
cialmente após o advento do Estado Social e Democrático de Direito, sendo marcante
a progressiva tutela constitucional das entidades familiares.
Este artigo apresenta pesquisa a respeito do estágio atual das famílias na percep-
ção do Direito brasileiro, contemplando os avanços e as polêmicas ainda presentes
na realidade social e política brasileira devido à historicidade da concepção de famí-
lia, atualmente impregnada de valores democráticos. Duas décadas passadas após
a edição de qualquer lei no sistema jurídico representa o momento adequado para
se realizar o diagnóstico acerca dos pontos positivos e negativos dos preceitos con-
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tidos nas normas jurídicas, além de verif‌icar a viabilidade do seu aperfeiçoamento
seja no plano legislativo (de possível alteração da lei), seja no plano jurisdicional – e
até mesmo doutrinário – do esforço de interpretação e de aplicação dos preceitos
normativos. Com muito mais razão tal tarefa se revela bastante pertinente acerca da
análise do conteúdo do Livro IV (Direito de Família) da Parte Especial do Código
CivilLei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 –, no segmento das entidades familiares,
cuja importância no cotidiano das pessoas é inconteste.
Este é o objetivo do presente trabalho doutrinário acerca dos novos modelos de
entidades familiares, tal como regulado no Código Civil e em algumas leis especiais
(inclusive as Lei 6.515/77, 8.069/90 8.560/92, 8.971/94, 9.278/96). Sem a pretensão
de realizar uma exposição completa das novas famílias, a f‌inalidade deste trabalho é
proceder à análise das questões de maior importância e que têm suscitado maiores
polêmicas no âmbito das famílias jurídicas e, simultaneamente, apresentar sugestões
que possam viabilizar o tratamento mais adequado dos novos modelos de família
no Direito brasileiro. Para tanto, algumas noções precisarão ser destacadas até para
permitir o desenvolvimento de raciocínio que viabilize demonstrar os motivos para
as polêmicas e os caminhos possíveis para sua solução.
2. FAMÍLIAS JURÍDICAS NO DIREITO BRASILEIRO
Quais são os modelos contemporâneos de famílias reconhecidas no Brasil? A
constitucionalização do Direito de Família brasileiro proporcionou a abertura do
sistema jurídico para vários arranjos sociais que até 1988 não eram compreendidos
como entidades familiares. Houve inúmeras mudanças quanto à função, natureza,
composição e concepção da família, em especial com o advento do Estado Social e
Democrático de Direito, sendo clara a progressiva tutela constitucional da família.
O Código Civil de 2002 ainda apresenta maior preocupação com as situações
jurídicas patrimoniais1 e, por isso, não se revela tão próximo da realidade atual das
famílias brasileiras, o que remete à necessidade de edição de novo texto legislativo em
substituição às normas de Direito de Família contidas no Código Civil até em razão
da sua defasagem. Contudo, em razão do fundamento da mudança de eixo axioló-
gico, no qual as situações jurídicas existenciais são prioritárias quando comparadas
com as de natureza patrimonial, o estágio atual do Direito de Família brasileiro serve
como paradigma para outros sistemas jurídicos de outros países.
Alguns acontecimentos e movimentos sociais vêm impactando as relações
familiares. A progressiva emancipação econômica, social e jurídica da mulher, a
signif‌icativa redução do número médio de f‌ilhos das uniões conjugais, a maior
complexidade da vida contemporânea, o reconhecimento da fundamentalidade de
proteção das pessoas integrantes de grupos minoritários, a massif‌icação das relações
1. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de Direito de Família. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, p. 23.
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econômicas (especialmente de consumo), a urbanização desenfreada, os avanços
científ‌icos no campo das técnicas conceptivas e contraceptivas, os medicamentos e
práticas médicas mais avançadas, o rápido desenvolvimento tecnológico em termos
de comunicação e informação, entre outros acontecimentos, foram decisivos para
as mudanças nas relações familiares atuais. Houve a valorização das funções afetivas
das famílias, tornando-as espaços mais democráticos de vida em comum.
3. FAMÍLIAS FUNDADAS NA CONJUGALIDADE
Mesmo no período anterior à Constituição Federal de 1988, sob a perspectiva
de outras áreas do conhecimento científ‌ico – no âmbito da Sociologia, da Psicologia,
da Antropologia, da Psicanálise, do Serviço Social –, a família brasileira não se resu-
mia àquela formada pelo vínculo do casamento. Os dados estatísticos da Pesquisa
Nacional por Amostragem de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geograf‌ia e Es-
tatística (IBGE) já demonstravam um perf‌il de relações familiares para muito além
do modelo monolítico do casamento2. Na pesquisa estatística houve identif‌icação
de casais heterossexuais casados com f‌ilhos biológicos, outros com f‌ilhos adotivos,
outros com f‌ilhos biológicos e adotivos (famílias fundadas no casamento); casais
heterossexuais não formalmente casados com f‌ilhos biológicos, outros com f‌ilhos
adotivos, outros com f‌ilhos biológicos e adotivos (famílias fundadas na união estável);
pais ou mães com f‌ilhos biológicos, outros com f‌ilhos adotivos, outros com f‌ilhos
biológicos e adotivos (famílias monoparentais); irmãos adultos convivendo sob o
mesmo teto, sem pai e mãe que vivesse com eles (famílias fundadas no parentesco
na linha colateral); uniões homossexuais de caráter afetivo (famílias fundadas nas
uniões de pessoas do mesmo sexo); uniões entre pessoas que não podiam formalizar
o vínculo do casamento (devido à proibição do divórcio antes de 1977), entre outras
“unidades de vivência” encontradas nas residências brasileiras.
Contudo, a realidade concreta de algumas uniões não recebia o reconhecimento
da legislação a respeito das famílias consideradas pelo Direito brasileiro. A CF/88,
além de expressamente reconhecer o casamento como modo de constituição de família
(art. 226, §§ 1º e 2º), também identif‌icou a união estável entre o homem e a mulher
(art. 226, § 3º) e a família monoparental (art. 226, § 4º), admitindo expressamente o
vínculo familiar constituído pela adoção de criança ou adolescente (art. 227, § 5º).
A CF/88 prevê expressamente algumas espécies de família, ora formadas por
pessoas que até então não tinham vínculo no Direito de Família (casamento, união
estável e adoção), ora formadas por pessoas que já apresentavam vínculo original
no Direito de Família (parentesco natural entre pais e f‌ilhos, em razão da consan-
guinidade). Não cabe ao legislador constituinte elencar de modo taxativo o rol de
2. LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Direito de Família na Constituição de
1988. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 53.
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