O Ordenamento Infraconstitucional Brasileiro e os Concursos Públicos

AutorAlice Ribeiro de Sousa
Ocupação do AutorAdvogada
Páginas127-162

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Conforme visto alhures, a Constituição Federal tratou de estabelecer as diretrizes gerais a serem obedecidas quando da realização dos procedimentos necessários ao recrutamento dos agentes públicos. No entanto, tais comandos não receberam uma regulamentação aprofundada, de modo que a lacuna tem sido preenchida com a aplicação de dispositivos legais empregados em analogia, bem como com a interpretação exaustiva dos princípios cabíveis à espécie.

De fato, por mais recomendável que seja a regência principiológica dos concursos públicos, os princípios não são capazes de regulamentar em minúcias as questões a serem enfrentadas quando da apreciação da matéria. Assim, ainda que devidamente fulcrados em princípios constitucionais, dois concursos públicos organizados para a seleção de cargos com atribuições semelhantes, em entes políticos distintos, podem conter disposições diversas capazes de estabelecer diferenças marcantes entre os certames, criando seleções distintas e violando a segurança jurídica.

Com efeito, é de se esperar que o concurso público sempre tenha como meta a escolha do candidato mais preparado para o exercício da função pública em apreço. Contudo, a realização de provas em modalidades e dificuldades variáveis, e ainda o acometimento de uma discricionariedade elevada ao agente ou órgão responsável pela organização, são capazes de criar desigualdades na avaliação. Por tais motivos, a escolha do candidato mais preparado torna-se um fator

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meramente circunstancial, dependente de questões subjetivas como a especialidade de conhecimento ou a orientação doutrinária seguida pelo responsável por corrigir a prova.

Tal condição pode trazer prejuízos ao sistema de seleção de agentes públicos e, por conseguinte, ao próprio interesse público. Afinal, a sua prevalência abala a premissa de que a escolha da Administração é aquela que melhor atende às necessidades da população a que está comprometida a servir.

Essas constatações encontram-se resumidas na doutrina de Márcio Barbosa Maia. O autor realça que a ausência de regras claras sobre as etapas procedimentais dos concursos, os prazos, as condições legais para sua deflagração, a constituição das bancas examinadoras, a elaboração dos editais, entre outros, além de preocupante é inadmissível na atualidade. No tocante às bancas examinadoras, anota ainda que o excesso de poder discricionário que lhes costuma ser conferido muitas vezes resvala para a arbitrariedade, violando o caráter seletivo dos concursos públicos.288Da mesma forma, Agapito Machado Júnior aponta claramente a necessidade de regulação dos concursos públicos por meio de normas legais, sob pena de sua submissão ao Poder Judiciário.289Levando em conta tais considerações, o presente capítulo pretende traçar uma relação entre a função administrativa e o processo, de modo a justificar o primeiro pelo segundo, assim recomendando a criação de regras processuais claras. Em seguida, tenciona-se analisar a distribuição constitucional das competências, com o intuito de verificar qual o ente político responsável pela elaboração das normas responsáveis por regulamentar os concursos públicos.

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4. 1 A legitimação da função administrativa pelo processo

É perfeitamente possível vincular a efetividade das ações estatais à formulação e atendimento a uma sequência de atos concatenados, com o objetivo de alcançar um fim, como ocorre no processo.

Luiz Carlos Figueira de Melo, ao estudar as relações entre a processualidade e a função pública, reconhece claramente a primeira como conteúdo da última, vislumbrando uma relação entre ambas idêntica àquela travada entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. É assim porque, segundo o autor, o exercício das funções de cada um dos Poderes depende essencialmente da correta aplicação dos instrumentos processuais disponíveis.290Em razão dessas observações, torna-se necessário adotar uma concepção processual mais ampla, capaz de englobar e de ser aplicada dentro de todas as esferas de Poder em atividade, observadas as particularidades de cada uma. Em sintonia com tal pensamento, José Alfredo de Oliveira Baracho ensina que o processo, com o tempo, passou a admitir uma noção mais inclusiva, condizente com a sucessão coordenada de atos com vistas a um fim que produza efeitos jurídicos.291Luiz Carlos Figueira de Melo sustenta que a estruturação processual deverá ser aplicada não apenas para a atividade judicial, como em todo espaço de atuação estatal. É assim porque o processo confere instrumentalidade a direitos inerentes ao Estado Democrático, como a participação pública nos atos do Estado, o contraditório e a ampla defesa pessoal e pública. Assim, o processo deve ser o meio de canalização da função pública em todos os níveis.292

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Ainda segundo o autor, a processualização ampla da função pública torna-se possível mediante a edição de normas processuais adequadas a dirigir os procedimentos aplicáveis ao cumprimento do desiderato atribuído a cada um dos Poderes.293Assim, a função pública passa a ser conduzida pelo disposto na norma e, sendo tal norma dirigida por preceitos processuais genéricos e abstratos, tem-se a introdução do processo junto a Poderes que, em uma análise perfunctória, pareciam antes não se vincular a ele.

Na verdade, tal introdução não é mera opção do legislador. Ela se revela necessária, uma vez que somente por meio do ordenamento jurídico é possível a efetivação da função pública.294Tal observação resta clara à luz do princípio da legalidade, sobre o qual já se discorreu neste trabalho. Retomando as considerações realizadas naquela oportunidade, impossível não invocar a doutrina de Carlos Ari Sundfeld. Referido autor ressalta que por ser baseada na lei, e porque o agente é apenas um dos elementos envolvidos na questão, a vontade administrativa deve ser emitida por meio de um processo, sob pena de tal vontade igualar-se à do particular, passando a ter como fundamento o agente e não mais a lei.295A esse respeito, a doutrina alienígena é ainda mais incisiva. Para Adolfo Merkl, no fim das contas, toda atividade administrativa equipara-se a um procedimento administrativo, enquanto os atos administrativos apresentam-se como meros produtos desse procedimento.296

Agustín Gordillo, por seu turno, aduz que toda atividade estatal administrativa manifesta-se por meio do procedimento administrativo e, por

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intermédio dele, os conceitos de função e processo administrativo passam a coincidir.297De fato, em uma análise mais cuidadosa, é possível verificar que a legislação brasileira admite a importância do processo administrativo no sentido de assegurar não apenas o bom prosseguimento do feito em sentido procedimental, mas também o próprio reconhecimento e fruição do direito. Na verdade, não é possível dissociar os dois elementos, uma vez que um processo administrativo conduzido à revelia da lei poderá não verificar a justiça aplicável ao caso e, portanto, não será capaz de atestar o cabimento ou não do direito pleiteado. Por tal prisma é que o art. 1º da Lei nº 9.784/99 prevê o estabelecimento de normas básicas de processo administrativo visando à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração.

É nessa esteira de pensar que Luiz Carlos Figueira de Melo enumera as seguintes conclusões: quando se tem em conta o Poder Público, a lei deve ser entendida como condição para o exercício da função administrativa; o processo administrativo é o condutor desse exercício, porque assegura que a norma seja seguida de forma não a garantir o cumprimento dos interesses do administrador, mas a estabelecer o equilíbrio entre liberdade e autoridade.298Carlos Ari Sundfeld expressa posição compatível com tal entendimento ao vislumbrar no direito público a missão de equilibrar a autoridade pública e o poder de mando conferidos ao Estado com a manutenção da liberdade, dos direitos individuais e da condição de titulares do poder própria dos indivíduos.299Para cumprir tal missão, cabe lançar mão de meios capazes de assegurar dito equilíbrio, e a obediência ao processo administrativo legalmente previsto é um desses meios. No

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mesmo norte, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da Silva atribui à participação dos particulares na tomada de decisões administrativas uma importante forma de controle e limitação do poder administrativo, especialmente levando-se em consideração o crescente número de atribuições conferidas ao Poder Público e o aumento do aparato administrativo.300Realmente, na forma determinada pelo princípio da legalidade, sem a lei o administrador nada pode fazer e, quando a lei descreve regras procedimentais, o administrador passa a ser obrigado a seguir o processo.

Destarte, a lei faz-se também importante para fixar as formas processuais a serem seguidas pela Administração e que lhe sejam mais adequadas. De fato, é possível verificar a tendência de entender-se o processo como conjunto de atos solenemente concatenados na forma judicialmente consagrada. No direito administrativo, nem sempre é conveniente que seja assim.

Assim, por exemplo, o...

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