Parte 2

AutorNelson Rosenvald e Fabrício Oliveira
Páginas125-287
PARTE 2
Tratamos na primeira parte de um conteúdo especíco, que é a elaboração
da proposta estrutural que atinge a forma e o conteúdo da sociedade contro-
ladora. Mas também elaboramos um conteúdo que é comum às duas partes: o
problema e o fundamento contratualista que assumimos para compreendermos
as sociedades, grupadas ou não.
Entretanto, sem avançarmos sobre o que será tratado na Parte seguinte, que-
remos aqui anunciar ao leitor o que relaciona os desenvolvimentos da primeira
parte àqueles que seguirão nessa segunda.
Sinteticamente, o que está em causa aqui são os efeitos das sanções jurídicas
a serem aplicadas nos casos em que um grupo de fato qualicado é identicado
sobre o comportamento dos tomadores das decisões estratégicas que conformam
a empresa grupal.
O que se espera, ao nal, é a produção de estímulos sucientemente fortes
para canalizar os comportamentos dos agentes para que optem pelo tipo mais
adequado à forma como se dá a relação entre as sociedades que compõem o gru-
po. Se há um comando hierárquico denido, que se adote o modo ou modelo de
governança da empresa. O conteúdo da sociedade que exerce o comando sobre
a empresa grupal deve-se abrir à internalização dos interesses dos minoritários
e preferencialistas das controladas.
Nesse contexto, as sanções jurídicas elaboradas e propostas nesta segunda
parte podem estimular a que grupos de fato qualicados assumam a forma de
grupos de direito, que admitem a contratação de uma estrutura orgânica apta a
acomodar os interesses presentes nas relações inter e intrasocietárias vericadas
nos casos dos grupos.
Como se poderá perceber, os problemas de agência na primeira parte são
tratados via solução estrutural, enquanto que na segunda parte são equaciona-
dos via produção de estímulos e desestímulos por força das sanções jurídicas.
Na primeira parte, o que está em causa é a estrutura societária que viabiliza e
inuencia o processo de tomada de decisão que afeta os interesses dos partícipes
externos das sociedades controladas. Na segunda parte, o que está em causa é
a ecácia do direito posto para minorar os problemas de agência presentes nas
sociedades grupadas.
GOVERNANÇA NOS GRUPOS SOCIETÁRIOS: INOVAÇÕES • NelsoN RoseNvald e FabRício oliveiRa
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2.1 O FENÔMENO DOS GRUPOS SOCIETÁRIOS
Em um panorama abrangente dos últimos duzentos anos, pode-se reservar
aos grupos de sociedades um “terceiro estágio” na trajetória da mitigação dos
riscos empresariais, partindo das empresas individuais, prosseguindo com as
empresas societárias, até alcançarmos as empresas plurissocietárias ou policor-
porativas.
Paradoxalmente, a maioria dos compêndios de Direito Societário negligen-
ciam os grupos societários quase que por completo. Por vezes, esse fenômeno é
virtualmente ignorado. A doutrina da separação de personalidades não é desaada
em detrimento dos credores da subsidiária. Porém, essa doutrina não pode se
converter na resposta derradeira para os grupos, sendo inevitável a introdução
de um regime que responda a tamanhas questões em aberto e reita para o fato
de que a governança empresarial inclui o exercício do poder e demanda mecanis-
mos de controle. É inequívoco que todos os setores do sistema jurídico foram de
alguma forma afetados pela fenomenologia dos grupos. Um dos temas centrais
concerne aos critérios para delimitar qual é o nível permitido para o exercício
de uma inuência. A subsidiária deve aceitar o interesse do grupo ou ser gerida
exclusivamente com base em seu interesse próprio? A resposta para essa questão
afeta a responsabilidade intergrupal e com terceiros, especialmente credores e
sócios minoritários. Os tribunais costumam levantar o véu em grupos societá-
rios, porém surpreendentemente, o percentual de tais decisões é menor do que
aquelas que perfuram o véu quando o sócio é um indivíduo.
Na qualidade de instituição econômica, social, política e mesmo cultural,
o exercício da empresa pressupõe uma atividade de risco, que pode acarretar
perdas signicativas para proprietários (sócios), credores, trabalhadores e con-
sumidores, ou mesmo toda uma sociedade, pois as externalidades que produz
incidem nos cenários privado e público.1 Mas quem suportará o peso desses
1. Enquanto iniciava esse trabalho, no Brasil se deu o maior acidente ambiental oriundo da mineração,
em todos os tempos, protagonizado pela empresa Samarco. Quem é a sociedade-mãe da Samarco?
Ninguém assumiu publicamente o papel de controladora do grupo. Há uma joint venture entre a Vale
e a BHP Billiton que gerou a Samarco como lial comum. Ou seja, uma forma privilegiada de implan-
tação internacional de grupos societários. A Vale é controlada pela Valepar, empresa criada para a
compra da então Vale do Rio Doce, na privatização. A Valepar é controlada por fundos de pensão, pelo
Bradesco e por acionistas do banco, pela transnacional japonesa Mitsui, pelo BNDES e sócios externos.
Os fundos são os de BB, CEF e Petrobras; a Previ, do BB, lidera. Seu comando é denido por acordo
entre governo, sindicalistas e funcionários. Quem manda na Valepar, enm, é um combinado entre
Bradesco e fundos-governo. Todavia, a Vale difundiu a esperada versão de que é “mera acionista” da
Samarco, dona das barragens que ruíram. E que “não houve negligência” (será que foi um terremoto?).
A BHP foi pelo mesmo caminho. Onde está o Estado, antes, durante e depois? A “crônica de uma morte
anunciada” do maior acidente ambiental do Brasil derramou uma onda de lama de resíduos químicos
que possivelmente matou 24 pessoas, solapou vilas e exterminou comunidades no trajeto que vai de
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PARTE 2
riscos? Estamos muito distantes dos tempos do direito comercial, em que pre-
dominavam as empresas individuais, desprovidas de personalidade jurídica,2
diretamente conduzidas e exploradas por um comerciante singular que arcava
pessoal e ilimitadamente com todos os débitos e responsabilidades, sendo o seu
patrimônio o centro de imputação de todos os efeitos negativos da atividade.
No estágio subsequente da revolução industrial e da consequente concen-
tração da atividade de produção em massa em grupos monopolísticos, a empresa
individual foi progressivamente suplantada pela empresa societária, cuja atribui-
ção de personalidade legal outorgou-lhe uma esfera distinta da dos proprietários
ou shareholders, imputando ao patrimônio daquela realidade jurídica todas as
consequências patrimoniais decorrentes da atividade empresarial, encorajando
a difusão de investimento e acúmulo do capital por empreendedores escorados
na regra da responsabilidade limitada pelos débitos societários. À medida que
o risco de ruína pessoal não estimula o empreendedorismo, a preocupação de
limitar o risco se torna uma constante nos regimes capitalistas.
Nos primeiros tempos, o modelo era uma sociedade comercial individual e
autônoma composta por pequenos sócios singulares e gerida por administradores,
objetivando a maximização dos lucros sociais. A maior parte do desenvolvimento
industrial e comercial dos dois últimos séculos só foi possível pelo mecanismo
societário. Além das inescapáveis exigências nanceiras (obtenção de maior
capital) e organizacionais (mão de obra qualicada e direção prossionalizada),
o decisivo para o triunfo do novo modelo foi o dogma da autonomia societária.
Ele pavimentou a edicação das complexas sociedades anônimas – de titulari-
dade dispersa por um conjunto de acionistas impotentes com poderes limitados
– governadas por autônomos gerentes, perseguindo os melhores interesses da
sociedade. Se os poderes dos acionistas eram limitados, naturalmente assim seria
a responsabilidade.3
O desenvolvimento das sociedades por ações (sociedades anônimas, com-
pany, corporate) no século XIX foi tributo de uma inovação legislativa que deferiu a
responsabilidade limitada dos sócios pelos valores investidos, consequentemente
Minas Gerais ao litoral do Espírito Santo. Completadas três semanas do rompimento das barragens da
Samarco, a mineradora ainda não começou a pagar auxílio nanceiro para as 296 famílias de Mariana
que tiveram suas casas destruídas pela lama. Belíssimo exemplo de responsabilidade ambiental, social
e de governança corporativa!
2. Unincorporate enterprise – empresas desprovidas de personalidade jurídica. Modelo prevalente até o
século XIX.
3. “Uma sociedade é um dispositivo legal para a execução de uma empresa com ns lucrativos, uma
unidade jurídica com status e capacidade própria, separada dos acionistas ou membros que a titula-
rizam”. COX, James & HAZEN, omas Lee. On Corporations. 2. ed. Aspen: Aspen Publishers, New
York, 2003, p. 1.01,

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