Preços personalizados: considerações à luz da LGPD

Páginas107-174
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PREÇOS PERSONALIZADOS:
CONSIDERAÇÕES À LUZ DA LGPD
Na Sociedade da Informação, como explorado nos capítulos anteriores, a uti-
lização da tecnologia, que inclui algoritmos e ferramentas de inteligência artif‌icial,
possibilita que sejam formados preços personalizados em plataformas digitais a
partir do tratamento de dados pessoais.
Todavia, a ocorrência da precif‌icação personalizada é difícil de ser encontrada
no mercado, seja pela sua inexistência em todas as plataformas digitais ou pela opa-
cidade por parte das empresas. Com efeitos controversos, preços personalizados
impactam tanto em termos econômicos no mercado, como visto no item 3.4, como
em esferas jurídicas dos consumidores, titulares dos dados pessoais. Assim, a aná-
lise da prática pode ser feita por diferentes lentes, sendo que algumas extrapolam a
esfera jurídica, como a Economia.
Como def‌inido na introdução, o escopo da presente pesquisa é analisar espe-
cialmente a prática de preços personalizados sob o enfoque da LGPD, que exige
requisitos e condições para que o tratamento de dados pessoais do qual decorre a
precif‌icação personalizada seja lícito e viável. Para tanto, analisa-se a incidência da
lei ao tema, seus princípios, os direitos dos titulares e as bases legais que, em teoria,
poderiam justif‌icar a prática à luz da LGPD1.
4.1 PRESSUPOSTOS DA LICITUDE DE PREÇOS PERSONALIZADOS NO
BRASIL
Antes de analisar a viabilidade da precif‌icação personalizada diante da LGPD
e após discorrermos sobre a prática em um contexto mais amplo nos capítulos an-
teriores, serão apresentadas as premissas da presente pesquisa quanto à licitude da
prática diante do ordenamento jurídico brasileiro. Como o tema é recente e não há
vasta doutrina a seu respeito, vimos a necessidade de não apenas indicá-las, como
explicá-las ao leitor, sem a pretensão de esgotar o assunto que não faz parte do es-
copo da presente pesquisa.
1. Para informações e aprofundamentos no tema da proteção de dados de forma geral, recomenda-se a lei-
tura de BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de
Janeiro: Forense, 2019; DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Editora Revista dos
Tribunais: São Paulo, 2019.
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PREÇOS PERSONALIZADOS À LUZ DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS • Pietra Daneluzzi Quinelato
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No cenário nacional, destacam-se alguns dispositivos e princípios que podem
se tornar obstáculos para a prática de preços personalizados, a começar pela própria
Constituição Federal que tem como objetivo a não discriminação dos cidadãos,
bem como o princípio da igualdade, ordem econômica, livre iniciativa e defesa do
consumidor.
Além disso, destaca-se o sistema de proteção do consumidor, acompanhado
de robustas instituições para evitar práticas abusivas no mercado em relação aos
indivíduos. Por f‌im, a esfera concorrencial, que combate, por exemplo, o abuso
no poder econômico e barreiras de entradas por empresas, que podem prejudicar
consumidores.
4.1.1 Breve perspectiva dos Direitos Humanos e do Direito Constitucional
Na perspectiva dos Direitos Humanos, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948
e assinada pelo Brasil na mesma data, dispõe sobre a igualdade de todos perante a
lei, bem como a vedação a qualquer forma de discriminação.
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 af‌irma, em seus artigos 3º, IV,
5º, 227, o direito fundamental à igualdade e não discriminação. Da mesma forma,
a Convenção Americana de Direitos Humanos promulgada no Brasil pelo Decreto
678 em 1992 dispõe, em seu primeiro artigo, sobre a vedação de qualquer tipo de
discriminação da pessoa humana.
Assim, depreende-se dos fundamentos constitucionais e dos tratados in-
ternacionais dos quais o Brasil faz parte, com base na equiparação dos tratados
de Direitos Humanos como Emendas Constitucionais, que o papel do Estado na
defesa da pessoa humana e, consequentemente, do consumidor, deve ser proati-
vo, vez que estes são partes vulneráveis em uma relação de consumo, conforme
discutido no item 2.2.
No entanto, há de se considerar outros valores constitucionais como a livre
iniciativa, vista como um alicerce da democracia brasileira2, e a entrada em vigor
da Lei da Liberdade Econômica, Lei n. 13.874/2019, mesmo que a livre iniciativa
e a liberdade econômica não sejam ilimitadas, devendo ser compatibilizadas com
uma f‌inalidade social3.
Logo, a proteção do Estado ao indivíduo deve ser compatibilizada com outros
princípios e valores constitucionais e não deve ser danosa às relações econômicas
2. DOMINGUES, Juliana O.; GABAN, Eduardo M. Livre-iniciativa, livre-concorrência e democracia: valo-
res constitucionais indissociáveis do direito antitruste? p. 11-130. In: NUSDEO, Fabio (coord.). A ordem
econômica constitucional – Estudos em celebração ao 1º centenário da Constituição de Weimar. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2019. p. 112.
3. DOMINGUES, Juliana O.; GABAN, Eduardo M. Direito antitruste. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 54.
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4 • PREÇOS PERSONALIZADOS: CONSIDERAÇÕES À LUZ DA LGPD
e ao próprio desenvolvimento econômico social4. Isso porque os princípios cons-
titucionais devem estar harmonizados, sem exclusões. Nesse sentido, explicam
Domingues e Fraga:
Não é exatamente uma novidade o entendimento de que os princípios da livre iniciativa e da livre
concorrência não possuem valor absoluto na ordem constitucional e podem ser relativizados para
salvaguarda de outros valores constitucionalmente protegidos. Historicamente, há a discussão
sobre a intervenção estatal desde a regulação de preços. O que se deve ter em conta ao restringir
o princípio da livre iniciativa é a compatibilização deste princípio com os demais que são caros
à ordem econômica, assim como avaliar consequências práticas da decisão tomada ou que se
pretende tomar, principalmente no que diz respeito aos aspectos econômicos das limitações
eventualmente impostas5.
Por esse motivo, os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre
concorrência fundamentam a licitude da personalização de preços, possibilitando
a expansão da produção das empresas, bem como um maior alcance a diversos
consumidores na medida do seu poder de consumo. Nesse sentido, cobra-se mais
de uns permitindo que outros paguem menos, o que pode se justif‌icar por meio da
racionalidade e ef‌iciência econômica.
Como consequência, idealmente, os desiguais seriam tratados na medida
da sua desigualdade, mitigando-se o poder econômico e um abismo social já
existentes. Nery Junior af‌irma que “dar tratamento isonômico às partes signif‌ica
tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas
desigualdades”6. Da mesma forma, Bulos examina o preceito constitucional da
igualdade dispondo que “o raciocínio que orienta a compreensão do princípio da
isonomia tem sentido objetivo: aquinhoar igualmente os iguais e desigualmente
as situações desiguais”7.
Por esse motivo, Alexandre de Moraes conclui que “os tratamentos normati-
vos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verif‌icada a
existência de uma f‌inalidade razoavelmente proporcional ao f‌im visado”8. Assim,
de acordo com D’Avila Lopes, a igualdade deve ser interpretada da seguinte forma:
A igualdade deve ser interpretada não a partir da sua restrita e irreal acepção oriunda do libera-
lismo, que apenas considerava a igualdade no sentido formal – no texto da forma – mas devendo
4. Cf. FRAZÃO, Ana. Liberdade econômica para quem? A necessária vinculação entre a liberdade de inicia-
tiva e a justiça social. p. 89-121. In: CUEVA, Ricardo Villas Boas; FRAZÃO, Ana; SALOMÃO, Luis Felipe
(coords.). Lei de Liberdade Econômica e seus impactos no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2019.
5. DOMINGUES, Juliana O.; FRAGA, Breno. A liberdade econômica tem limites? – ref‌lexões sobre a aplicação
do princípio da livre iniciativa e da livre concorrência. p. 257-280. In: RODAS, João Grandino. 30 anos da
Constituição Federal. São Paulo: Ed. Cedes, 2019. p. 269.
6. NERY JÚNIOR, Nélson. Princípios do processo civil à luz da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999. p. 42.
7. BULOS, Uadi Lammego. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 79.
8. Cf. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 58.
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