Prescrição

AutorFernando Maciel
Ocupação do AutorProcurador Federal em Brasília/DF. Mestre em Prevenção e Proteção de Riscos Laborais pela Universidade de Alcalá (Espanha)
Páginas159-183

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A incidência do fenômeno prescritivo sobre a pretensão ressarcitória exercida nas ARAs é outra questão que apresenta inúmeras controvérsias, as quais passarão a ser abordadas especificamente nos tópicos que seguem:

4.1. Imprescritibilidade da ARA (art 37, § 5º, CF/88)

Inicialmente mostra-se oportuno compartilhar o entendimento daqueles que sustentam que a pretensão ressarcitória exercida nas ARAs não estaria sujeito ao fenômeno prescritivo230, o que teria suporte em uma interpretação ampliativa da norma de imprescritibilidade prevista na parte final do art. 37, § 5º, da CF231.

Em consequência disso, sobrevindo um prejuízo ao erário decorrente de um ato ilícito, a pretensão ressarcitória estaria imune a incidência da prescrição, independentemente de quem fosse o causador do dano, conclusão essa que poderia ser alcançada a partir da expressão genérica "qualquer agente, servidor ou não".

Com efeito, a imprescritibilidade da ARA decorreria do fato de ela ser uma demanda ressarcitória que pressupõe a ocorrência de um ato ilícito, no caso, o descumprimento de alguma norma de saúde e segurança do trabalho que tenha ocasionado um acidente do trabalho, ilicitude que, ao gerar o implemento de uma prestação social por parte do INSS, causaria um prejuízo ao erário em sua feição previdenciária.

Reconhecendo a perfeita aplicabilidade do art. 37, § 5º, CF/88 às ARAs podemos citar o precedente que segue:

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ADMINISTRATIVO. INSS. AÇÃO REGRESSIVA. ACIDENTE DE TRABALHO. NORMAS DE SEGURANÇA DO TRABALHO NÃO OBSERVADAS. ART. 20 DA LEI N. 8.213/91. IMPRESCRITIBILIDADE DA PRETENSÃO DE RESSARCIMENTO. ART. 37, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ANULAÇÃO DA SENTENÇA.

  1. O INSS, ora apelante, ajuizou a presente ação regressiva, através da qual objetiva o ressarcimento das verbas despendidas com o pagamento de benefício de pensão concedida em prol da esposa de vítima fatal de acidente de trabalho.

  2. O Juízo sentenciante reconheceu a prescrição da pretensão autoral, com fundamento no art. 206, § 3º, do Código Civil e julgou improcedente o pedido, nos termos do art. 269, IV, do CPC.

  3. Ocorre que o Pleno do Egrégio Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Mandado de Segurança n. 26.210-DF, publicado em 10.10.2008, já se posicionou pela imprescritibilidade das ações de ressarcimento movidas pela Fazenda, reconhecendo a aplicação do art. 37, § 5º, da Constituição Federal.

  4. Em seu voto, o Relator Ministro Ricardo Lewandowski destacou que a imprescritibilidade incide não apenas para ações movidas contra agentes públicos, mas sobre qualquer hipótese de ressarcimento ao erário vinculado à prática de ato ilícito.

  5. Dessa forma, em atenção à posição firmada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, devese afastar a prescrição no caso concreto.

  6. Como a presente hipótese discute o ressarcimento pelo INSS das despesas com concessão de pensão por morte, em virtude de suposta negligência na observância de regras de medicina e segurança do trabalho, indiscutível a necessidade de ampla dilação probatória para fins de apuração de responsabilidade da ré.

  7. Assim sendo, os autos devem retornar à Vara de origem, a fim de que se proceda à necessária produção das provas.

  8. Apelação e remessa necessária conhecidas e providas.

    (APELREEX 200950010048995, TRF-2, 7ª Turma Especializada, Rel. Juiz Federal Convocado José Arthur Diniz Borges, E-DJF2R de 19.2.2014)232

    A partir de uma análise superficial poderíamos concluir que tal entendimento encontraria acolhida no STF, mais especificamente na jurisprudência firmada a partir do Mandado de Segurança n. 26.210233, leading case em que a tese da imprescritibilidade das ações de ressarcimento de danos ao erário foi reconhecida, sendo ratificada pela Corte Suprema até os dias de hoje conforme podemos constatar a partir dos julgamentos subsequentes proferidos acerca da matéria, como por exemplo no AgR-RE 578.428234 e no AgR-AI 712.435235.

    Entretanto, imbuído do espírito crítico que inspirou a elaboração e, consequentemente, a atualização desta obra, ousamos discordar desse entendimento

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    favorável à imprescritibilidade das ARAs. E assim fazemos com fundamento na basilar regra de hermenêutica que preconiza que "as exceções devem ser interpretadas restritivamente".

    Não podemos perder de vista que, com fundamento no brocardo latino dormientibus non sucurrit jus236, a regra na ciência jurídica é a prescritibilidade dos direitos237, visto que a perpetuidade dos mesmos poderia gerar uma indesejável insegurança nas relações intersubjetivas e, assim, prejudicar a necessária estabilidade social, um dos escopos da jurisdição.

    Nesse sentido é a doutrina de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho238 ao lecionarem que:

    (...) não é razoável, para a preservação do sentido de estabilidade social e segurança jurídica, que sejam estabelecidas relações jurídicas perpétuas, que podem obrigar, sem limitação temporal, outros sujeitos, à mercê do titular.

    O exercício de direitos, seja no campo das relações materiais, seja por ações judiciais, deve ser uma consequência e garantia de uma consciência de cidadania, e não uma "ameaça eterna" contra os sujeitos obrigados, que não devem estar submetidos indefinidamente a uma "espada de Dâmocles" sobre as suas cabeças.

    Com efeito, tomando como ponto de partida esse vetor interpretativo mais restrito que deve nortear a compreensão da excepcional norma de imprescritibilidade prevista no art. 37, § 5º, da CF/88, a tarefa que nos propomos doravante é desenvolver uma reflexão crítica que contribua para a exata delimitação do alcance da expressão genérica "qualquer agente, servidor ou não".

    Uma primeira linha interpretativa mais restrita seria aquela que exigisse a qualificação pública do agente causador do dano. Em outras palavras, quer decorra de uma conduta praticada por um servidor ou não, a imprescritibilidade do ressarcimento ao erário somente estaria presente nos casos em que o dano fosse praticado por um agente público.

    De acordo com a definição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro239 agente público é "toda pessoa física que presta serviços ao Estado e às pessoas jurídicas da Administração Indireta", gênero que abrangeria as espécies: agentes políticos; servidores públicos (estatutários, empregados públicos celetistas, temporários etc.); militares e particulares em colaboração com o Estado.

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    Adotando essa interpretação mais restrita do art. 37, § 5º, da CF/88, somente nos casos de danos ao erário praticados por integrantes de alguma das categorias elencadas anteriormente é que o fenômeno da imprescritibilidade se faria presente.

    Todavia, oportuno registrar que essa interpretação restritiva foi expressamente afastada no voto proferido pelo Relator do MS n. 26.210, Ministro Ricardo Lewandowski, o qual considerou que a aplicação da norma de imprescritibilidade apenas aos agentes públicos, com a liberação dos demais cidadãos, representaria uma injustificável quebra do princípio da isonomia, iniquidade que, no seu entender, não teria sido desejada pelo legislador constituinte.

    Eis trecho do voto do Min. Lewandowski que evidencia esse entendimento:

    Ademais, não se justifica a interpretação restritiva pretendida pela impetrante, segundo a qual apenas os agentes públicos estariam abarcados pela citada norma constitucional, uma vez que, conforme bem apontado pela Procuradoria-Geral da República, tal entendimento importaria em injustificável quebra do princípio da isonomia.

    Com efeito, não fosse a taxatividade do dispositivo em questão, o ressarcimento de prejuízos ao erário, a salvo da prescrição, somente ocorreria na hipótese de ser o responsável agente público, liberando da obrigação os demais cidadãos. Tal conclusão, à evidência, sobre mostrarse iníqua, certamente não foi desejada pelo legislador constituinte.

    Porém entendemos que também não foi intenção do legislador constituinte, tampouco a posição jurisprudencial definitiva da Corte Suprema responsável pela interpretação da Carta Magna, estender a norma de imprescritibilidade do art. 37, § 5º, CF/88 de forma indiscriminada aos danos ao erário causados por todo e qualquer cidadão240.

    A primeira ponderação a ser feita consiste no fato de que a aludida norma de imprescritibilidade encontra-se positivada na Constituição Federal no título atinente à Organização do Estado (Título III), mais especificamente no capítulo da Administração Pública (Capítulo VII), circunstância que merece ser considerada como um balizador do exercício hermenêutico a ser desenvolvido para alcançar o verdadeiro sentido e alcance da norma.

    A segunda ponderação digna de registro é o fato de que, em todas as oportunidades em que o STF reconheceu a incidência da imprescritibilidade do art. 37, § 5º, da CF/88, em nenhuma delas o dano causado ao erário foi praticado por um cidadão desprovido de qualquer relação jurídica específica e pré-existente com o Estado. Ao contrário, em todos os casos até hoje submetidos à cognição

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    jurisdicional da Suprema Corte, sempre se fez presente um vínculo de sujeição especial entre o administrado causador do ilícito e a Administração Pública241.

    Prova disso podemos alcançar a partir da análise do leading case em que o STF reconheceu a tese da imprescritibilidade dos danos ao erário (Mandado de Segurança n. 26.210), o qual possui como suporte fático uma relação mantida entre o Estado e um particular destinatário de uma bolsa de estudos no exterior, a...

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