O reconhecimento da atividade de infraestrutura pública como atividade administrativa

AutorAugusto Neves dal Pozzo
Páginas66-109
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4.1 Conceito jurídico de infraestrutura
Renato Alessi, em sua preciosa obra Le prestazioni amministrative
rese ai privati78, abre seu pensamento com uma indagação fundamental:
a teoria das prestações administrativas aos particulares representa uma
inútil duplicação da teoria dos serviços públicos?
Ao longo de sua exposição, o ilustre professor da Universidade de
Parma evidencia que a teoria das prestações administrativas aos particulares
complementa a teoria do serviço público que, a seu turno, não torna su-
pérfluo o tratamento autônomo da chamada prestação administrativa.
Essa revisão de entidades, institutos e conceitos no campo da
ciência jurídica não é nenhuma novidade. O Direito Processual Civil,
por exemplo, nasceu com a famosa polêmica entre Windscheid e Müther,
que se estabeleceu entre esses juristas alemães logo após a publicação,
pelo primeiro, em 1856, da obra “A ação do direito civil romano sob o
ponto de vista do direito atual”.
Até então o Direito Processual “pertencia” ao Direito Civil (se-
gundo a chamada teoria civilista ou imanentista, cujo maior expoente
foi Savigny): o direito de ação e o direito que se pretendia ver tutelado
eram uma única e mesma coisa, o verso e o reverso da mesma medalha.
A referida polêmica revelou a autonomia do direito de ação em face do
direito deduzido em juízo, e assim foram sendo construídas as bases do
Direito Processual.79
Ao examinar certas áreas do Direito, muitas vezes realmente se
entrevê numa determinada realidade duas dimensões e, então, busca-se
78 ALESSI, Renato. Le prestazioni amministrative rese ai privati: teoria generale. 2. ed.
Milão: A. Giuffrè, 1956, p. 1, tradução nossa.
79 Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. Tomo
II. 5. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 40.
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CAPÍTULO 4 - O RECONHECIMENTO DA ATIVIDADE...
saber se são autônomas entre si, ou se são a mesma e a única realidade,
caso em que aquelas duas dimensões são pura ilusão de ótica. Porém, ao
concluir pela autonomia dessas dimensões, é evidente que o estudioso
jamais poderá negar, apagar ou cancelar o vínculo estreito e íntimo que
fez com que aquela realidade parecesse, durante muito tempo, ter ou
ser uma única dimensão. Assim, voltando ao nosso exemplo da autono-
mia do Direito Processual em relação ao Direito Civil, ela não impede
– mas aconselha – uma grande área de interferência recíproca entre
ambos: as condições da ação, por exemplo, vão buscar na situação de
direito material deduzida em juízo a sua presença, ou não; a causa peten-
di há de invocar a natureza do direito reclamado judicialmente; a deter-
minação da competência depende de muitos conceitos civilísticos (como
o de domicílio, residência, por exemplo) e assim por diante.
A nosso ver, o mesmo ocorreu com a infraestrutura. Vamos ra-
ciocinar com as rodovias.
Dentre as muitas razões que levaram as comunidades a estabe-
lecerem uma via de acesso entre si, provavelmente a mais importante
tenha sido o comércio. Assim, por exemplo, a antiquíssima Rota da
Seda, que ligava a cidade de Chang’Na (atual Xi’An), situada na Chi-
na, aos mercados asiáticos e europeus, contribuindo para o nascimen-
to de civilizações situadas na Mesopotâmia, Índia e África, dentre
outras, e como o nome indica, destinava-se, principalmente, ao co-
mércio da seda.
Se repararmos com cuidado, constataremos que as estradas que
ligavam antigas aldeias e cidades da Europa, provavelmente também por
razões comerciais, e que existem até hoje, cruzam cidades inteiras, como
se vê em França, Itália, Espanha, Alemanha etc. Essas estruturas viárias
constituíram o que mais tarde veio a se chamar estruturas de infraestru-
tura, noção que perdura nos dias atuais.
Todavia, embora a vida moderna tenha acrescentado outros
motivos para a existência das estradas – como o turismo, o atendimento
médico, o mercado de trabalho – o objetivo de interligação perdura. A
vida moderna não apenas alterou as finalidades essenciais das estradas
como interferiu na realização e construção da própria estrutura viária
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AUGUSTO NEVES DAL POZZO
– nenhuma autoestrada europeia cruza as cidades, como as estradas antigas
faziam. Além de interferir na parte física das rodovias, a tecnologia acabou
interferindo, de modo decisivo, na atividade de – numa palavra – como
operar a atividade que sobre as rodovias ocorre.
Essa operação, ou seja, o fazer funcionar, o fazer entrar em função
ou atividade é tão importante que, segundo nossa visão – e este é o
cerne deste trabalho – passou a se constituir numa dimensão distinta
daquela consistente em meramente construir o meio físico em que essa
atividade irá se desenvolver.
Como dito antes, é evidente que há inúmeros pontos de contato
entre a atividade e o meio físico em que ela deve operar e, ainda, é
claro que há uma interferência recíproca entre elas – mas é preciso ve-
rificar que a complexidade da atividade infraestrutural está a exigir uma
formatação jurídica diversa da formatação jurídica a respeito da constru-
ção do meio físico.
As autoestradas deixaram de passar no meio das cidades não pela
dificuldade ou custo de construção, mas porque a operacionalidade da
atividade infraestrutural que nela ocorrerá está a impedir esse planejamento.
Na presente investigação, os meios físicos em que a atividade de
infraestrutura se desenvolve são havidos como “ativos públicos”, cuja
finalidade é a de permitir que se realize a atividade de infraestrutura. Essa
atividade detém outro propósito: a de promover concretamente o
desenvolvimento econômico-social, sob um regime jurídico-
administrativo próprio.
Na medida em que essa atividade tem finalidades próprias, méto-
dos de avaliação peculiares, princípios e regras jurídicas específicos que
conformam um sistema harmônico e coerente, pensamos que tal cons-
tatação não mais permite uma visão unitária dessa realidade (meio físico/
infraestrutura), mas uma visão binária, que descola essas realidades jurí-
dicas, sem que isso anule suas mútuas inter-relações e interferências.
Imaginamos que essa concepção poderá permitir uma visão mais nítida
de cada um desses componentes de uma realidade que exige tratamen-
to jurídico diferenciado.

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