Reflexões críticas sobre a referência a 'nações civilizadas' no artigo 38 do estatuto da corte internacional de justiça

Páginas67-126
Capítulo III
REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A
REFERÊNCIA A “NAÇÕES CIVILIZADAS”
NO ARTIGO 38 DO ESTATUTO DA
CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA1
Sumário: I. Introdução: Premissa Geral. II. A Inserção da Referência a
“Nações Civilizadas” no Artigo 38 do Estatuto da Corte da Haia (CPJI/
CIJ). III. O Entendimento de “Civilização” na Época da Adoção do Estatuto
de CPJI (1920). IV. A Tensão entre Civilização e Barbárie: Panorama Geral.
V. Considerações de Ordem Psicológica. VI. Considerações de Ordem
Histórica. 1. Civilização e Barbárie no Tempo. 2. A Projeção da Barbárie
no Tempo. VII. Considerações de Ordem Jurídica. VIII. A Falsidade da
Alteridade entre “Civilizado” e “Bárbaro”. IX. Sob a “Custódia do Estado”
em Condições Infra-Humanas. X. Novas Manifestações da Barbárie
Contemporânea. XI. O Princípio Básico da Igualdade e Não-Discriminação
em um Mundo de Desigualdades. 1. A Idéia da Igualdade Humana
em Projeção Histórica. 2. Igualdade e Não-Discriminação, e o Drama
dos Desenraizados. 3. Igualdade e Não-Discriminação, e o Abandono
dos Esquecidos do Mundo. XII. Considerações Finais. 1. De Volta aos
Princípios Gerais do Direito. 2. Premissa Conrmada.
I. INTRODUÇÃO: PREMISSA GERAL.
Para a inauguração desta Cátedra de Direito Internacional na Universida-
de Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), aqui em Foz do Iguaçu,
nesta tarde de 22 de agosto de 2013, não poderia ter deixado de eleger um
tema que me tem acompanhado ao longo dos anos. Com efeito, sempre me
indaguei acerca do papel dos princípios gerais do direito na formação do direi-
to internacional, assim como em sua interpretação e aplicação. Encontram-se
1 Aula magna ministrada pelo Autor, por ocasião da cerimônia de inauguração da Cátedra de
Direito Internacional da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA),
em Foz do Iguaçu, aos 22 de agosto de 2013.
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ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE
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tais princípios incluídos no elenco das fontes formais do direito internacional,
consagrado no artigo 38 do Estatuto da antiga Corte Permanente de Justiça
Internacional (CPJI) assim como da atual Corte Internacional de Justiça (CIJ).
Apesar de sua inegável importância, nem sempre têm recebido a atenção que
requerem e merecem.
De minha parte, sempre atribuí aos princípios gerais do direito a maior
relevância (cf. infra), embora a bibliograa jurídica contemporânea venha de-
les se descuidando. Ainda recentemente, em meu extenso Voto Arrazoado no
caso das Papeleras (Rio Uruguai) decidido pela CIJ (Sentença de 20.04.2010),
tive ocasião de reiterar minhas considerações a respeito, assinalando sua re-
levância na formação, assim como interpretação e aplicação das normas do
direito internacional (pars. 8-113 e 191-217). Curiosamente, a referência aos
princípios gerais do direito no artigo 38 do Estatuto da CPJI/CIJ faz-se acom-
panhar da caracterização – “reconhecidos pelas nações civilizadas”.
Anteriormente, em meu extenso Voto Arrazoado no Parecer n. 18 da
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIADH) sobre a Condição Ju-
rídica e Direitos dos Migrantes Indocumentados (de 17.09.2003), outra vez
examinei e ressaltei a posição e o papel dos princípios fundamentais do di-
reito, como substratum do próprio ordenamento jurídico (pars. 44-64). Mais
recentemente, voltei a fazê-lo, na CIJ, em meus Votos Arrazoados nos ca-
sos de A.S. Diallo (mérito, Sentença de 30.11.2010; e reparações, Sentença
de 19.06.2012) (pars. 93-106 e 74-76 dos Votos respectivos), do Templo de
Preah Vihear (medidas provisórias de proteção, Ordonnance de 18.07.2011)
(pars. 71-81 do Voto), da Declaração de Independência de Kossovo (Parecer
Consultivo de 22.07.2010) (pars. 177-211 do Voto), e da Revisão de Sentença
do Tribunal Administrativo da OIT, a Pedido do FIDA (Parecer Consultivo
de 01.02.2012) (pars. 28-51 e 82-100 do Voto); também o z em meu Voto
Dissidente no caso relativo à Aplicação da Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial (exceções preliminares, Sentença
de 01.04.2011) (pars. 79-87 do Voto), em que sustentei a aplicação devida da
referida Convenção das Nações Unidas.
Apesar do uso da expressão “princípios gerais do direito reconhecidos pelas
nações civilizadas” remontar aos trabalhos do Comitê Consultivo de Juristas,
encarregado pela Liga ou Sociedade das Nações de redigir, em 1920, o Estatuto
da CPJI, preservado mutatis mutandis pelo Estatuto da CIJ adotado em 1945,
muito pouco se tem escrito sobre a mencionada categoria dos “princípios gerais
do direito reconhecidos pelas nações civilizadas”. Não obstante, em minha per-
cepção, – e tal como me permiti advertir em 2003 em meu Tratado de Direito
Internacional dos Direitos Humanos (vol. III), – os grandes desaos de nossos
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OS TRIBUNAIS INTERNACIONAIS E A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA
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tempos incitam “à revitalização dos próprios fundamentos e princípios do direi-
to internacional contemporâneo” emanados da consciência humana2.
Sendo assim, transcorrida uma década, meu propósito hoje, dia 22 de
agosto de 2013, é concentrar atenção nesta matéria, em particular em um de
seus aspectos. A premissa geral de que partirei, nas reexões da conferência
desta tarde aqui na UNILA, na presença de colegas acadêmicos de várias Uni-
versidades latino-americanas que me honram com suas presenças, pode ser
resumida em poucas palavras, a saber: – A expressão “nações civilizadas” no
artigo 38 do Estatuto da CIJ não signica nações que sejam por natureza “ci-
vilizadas” (estas não existem), mas sim nações que se comportam de modo
civilizado, enquanto e na medida em que assim se comportarem.
II. A INSERÇÃO DA REFERÊNCIA A
“NAÇÕES CIVILIZADAS” NO ARTIGO 38
DO ESTATUTO DA CORTE DA HAIA CPJI/CIJ.
Já no início dos anos oitenta me prendiam a atenção os princípios gerais do
direito, aí incluídos, não só os reconhecidos nos sistemas jurídicos nacionais,
mas, em meu entender, também os princípios do direito internacional3. Há
cerca de uma década tive ocasião de retomar o exame do processo de inser-
ção dos “princípios gerais do direito reconhecidos pelas nações civilizadas” no
elenco das “fontes” formais do direito internacional constante do artigo 38 do
Estatuto da Corte da Haia (CPJI/CIJ)4. Proponho-me hoje concentrar a aten-
ção na qualicação “reconhecidos pelas nações civilizadas”, insucientemente
estudada até o presente.
Durante os trabalhos preparatórios do Estatuto da CPJI (meados de 1920),
os membros do Comitê Consultivo de Juristas, encarregado de redigir o Es-
tatuto da CPJI, ao discutir os princípios gerais de direito (para incluí-los no
rol das fontes “formais” do direito internacional no artigo 38 do Estatuto), se
dividiram em dois grupos: um que favorecia os princípio contidos no “direito
internacional positivo” (E. Root) e outro que sustentava uma formulação mais
2 A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. III,
Porto Alegre, Edit. S.A. Fabris, 2003, pp. 434 e 503.
3 Cf. A.A. Cançado Trindade, Princípios do Direito Internacional Contemporâneo, Brasília,
Edit. Universidade de Brasília, 1981, pp. 1-268.
4 Cf. A.A. Cançado Trindade, “Foundations of International Law: e Role and Importance
of Its Basic Principles”, in XXX Curso de Derecho Internacional Organizado por el Comité
Jurídico Interamericano – OEA (2003) pp. 359-415.
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