Relação de causalidade e imputação objetiva

AutorRuy Celso Barbosa Florence
Ocupação do AutorMestre e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Páginas93-133

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1. Considerações iniciais

A causalidade é um fenómeno de interesse de todas as formas do conhecimento humano.

Até mesmo do ponto de vista teológico, que acolhe o enfoque da causa suprema, e por vezes do determinismo oriundo do todo universal, para justificar a participação do homem na causalidade segundo o seu comprometimento com o místico, o tema desperta curiosidade, questionamentos e investigações.

No campo da Física, Isaac Newton (1642-1727) elaborou regras acerca da causalidade, sempre com a ideia de "força-impul-so" de uma coisa para outra. Por uma "força", a teoria de Isaac Newton entende como algo que provoca ou ao menos tende a provocar uma modificação no estado das coisas, ou seja, produz algum acontecimento distinto1.

Ainda na área de estudo da Física, conhece-se hoje o desenvolvimento da física quântica, que investiga os fenómenos das ondas e partículas no campo atómico e que chegou à hipótese, aceita pela maioria dos cientistas, dos processos de os átomos

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não estarem vinculados às relações de causalidade, seguindo apenas as leis da estatística, que só permitem previsões de probabilidade2.

Na Filosofia, na Psicologia, na Sociologia e outras áreas, o tema é tratado por variadas fórmulas e métodos3.

No Direito penal, a causalidade encontra-se vinculada ao princípio da materialidade ou exterioridade da ação, pois somente a ação externa está em condições de produzir uma modificação no mundo exterior com qualidade de lesão. A exteriorização da conduta penal é um pressuposto da lesividade ou danosidade do resultado, que, por sua vez, caracteriza-se por um outro fato externo distinto da conduta4.

Portanto, em princípio, só é possível falar em causalidade na área penal nos chamados delitos de resultado material ou externo, apuráveis no mundo real, e que sejam abrangidos pelo tipo.

Adianta-se, desde logo, que no Direito penal, para a investigação da causalidade natural nos delitos com resultado, não se exige das outras ciências mais do que conhecimentos básicos das Leis de Newton.

Por isso, a preocupação maior sobre o assunto deve estar voltada ao estudo das teorias da causalidade jurídico-penal, cuja tarefa é estabelecer um elo de sentido entre a ação do autor e o resultado típico produzido por ela. As teorias causais jurídico-penais suscitam a pergunta de quando a conexão entre a ação e o resultado é daquelas sobre as quais se pode fundar a responsabilidade penal do autor5.

Entretanto, o fato de as tradicionais teorias alinhadas ao dogma causal não conseguirem satisfazer, sob o aspecto prático, todos os casos de interesse do Direito penal no denominado mun-

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do globalizado, tem determinado a busca de sua complementação pela imputação objetiva6.

A análise dessas teorias, incluída a da imputação objetiva, põe a descoberto questões teóricas e práticas que afloram no mundo do Direito penal e que necessitam de respostas convincentes diante da nova sociedade complexa que ele serve.

2. Teorias jurídicas da causalidade

Inúmeras teorias sobre a causalidade tentam, na ciência penal, dar respostas às dificuldades sobre o tema.

Entretanto, como já se adiantou, por não corresponderem às expectativas de um Direito penal que deve servir à nova sociedade complexa de um mundo globalizado, essas teorias têm sido complementadas pela teoria da imputação objetiva.

Assim, entre as variadas teses formuladas em relação ao assunto causalidade em matéria penal, três delas continuam, ao lado da moderna imputação objetiva, merecendo atenção dos pe-nalistas, ainda que, em alguns casos, apenas como material de referência para estudos.

São elas: a teoria da equivalência das condições, teoria da causalidade adequada e teoria da relevância jurídica.

2. 1 Teoria da equivalência das condições

Nascida das mãos do processualista austríaco Julius Glaser7, em 1858, essa teoria teve em Maximilian von Buri, a partir da Alemanha da segunda metade do séc. XIX, seu principal expoente.

Essa teoria pretendeu demonstrar a possibilidade de se detectar o nexo causal por meio de um exercício mental em que se

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suprime o suposto causador dos acontecimentos. Se, apesar dessa operação hipotética, o resultado subsistir e a série sucessiva de causas intermediárias permanecer a mesma, está claro que o fato e o seu resultado não podem ser atribuídos àquela suposta pessoa. Se ao contrário, com a supressão mental do aparente causador, o resultado não se produzir, então está justificado considerar o evento como efeito da ação daquele que foi mentalmente afastado da cena dos acontecimentos8

Acolhido por diversos autores como o criador dessa teoria9, Maximilian von Buri foi, em verdade, quem a desenvolveu, negando, até, que tenha se baseado nos conceitos sobre causa e condição do filósofo inglês John Stuart Mill (1806-1873)10, como às vezes se escreve11.

Consta da literatura jurídica12 que Maximilian von Buri sempre esclareceu ter buscado inspiração apenas em Julius Glaser e outros como Albert F. Berner e Hugo Hãlschner. O que não retira de John Stuart Mill o mérito de ter traçado o antecedente científico-filosófico da teoria da equivalência das condições, ao estabelecer que: a causa, pois, filosoficamente falando, é a soma das condições positivas e negativas tomadas juntas...13. Se Maximilian von Buri conheceu ou não Stuart Mill, ou sua teoria, não modifica a ordem das coisas.

De qualquer forma, Maximilian von Buri deu outra elaboração à concepção de Julius Glaser sobre a denominada supressão causal hipotética, concluindo que só o conjunto total das condições

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do fato, tanto positivas quanto negativas, constitui a causa do resultado. Por sua vez, se o resultado for indivisível, e impossível quantificar de que modo e com que intensidade tenha influído cada uma das condições em sua produção, chega-se à conclusão de que todas as condições são equivalentes entre si e, em consequência, qualquer condição considerada é indispensável14.

Hans Welzel15 viu nesse método uma fórmula "heurística", baseada em perguntas, que diz: causa é toda condição que, suprimida mentalmente, tem por efeito que o resultado (em forma concreta) não se produza; "conditio sine qua non".

Lembra também Hans Welzel16 que, para a omissão, a teoria pode ser formulada da seguinte maneira: uma omissão é causal, se acrescentada mentalmente à ação omitida, o resultado se suprime.

2.1. 1 A teoria da equivalência das condições no Direito brasileiro

O Código Penal brasileiro de 1940 adotou expressamente a teoria da equivalência das condições, deixando isso claro já na exposição de motivos17.

A construção legal do art. 11 do código quarentista também não deixava dúvida quanto à opção de o legislador acolher o critério da conditio sine qua non para a solução da causalidade jurídi-co-penal18.

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Opção enaltecida por alguns doutrinadores brasileiros19 e criticada por outros20, todos comentaristas dessa legislação ao tempo de sua vigência.

De qualquer forma, cabe destacar o fato de essa construção legislativa ter separado, por meio de conceitos diferentes, a causalidade da culpabilidade, condicionando a solução da causalidade ao espaço restrito do elemento material do delito nos limites da conduta e do resultado.

É certo, entretanto, que o Código de 1940 não adotou por completo a teoria da equivalência, pois abriu uma exceção à causalidade objetiva quando, no parágrafo único do mencionado art. 11, previu a superveniência de causa independente, aceita pela doutrina como de independência relativa, dando uma perspectiva temperada à teoria da equivalência.

Com a reforma integral de sua parte geral (Lei ns 7.209/84), o Código Penal vigente dispõe sobre o tema:

Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. § 1º A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou. § 2º A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

  1. tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

  2. de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;

  3. com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

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Chamam a atenção, desde logo, nessa disposição legal, a manutenção do conceito de causa e o...

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