A separação dos poderes e o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição

AutorWashington Luís Batista Barbosa
Páginas17-62
1. A Separação dos Poderes e
o Princípio Constitucional da
Inafastabilidade da Jurisdição
Os temas relacionados à matéria previdenciária, de há muito represen-
tam grande parte das demandas tratadas pelo Poder Judiciário. Dados do
Conselho Nacional de Justiça, Relatório Justiça em Números de 2017, apon-
tam que “na Justiça Federal o nó central está nos assuntos de ‘Benefícios em
Espécie/Aposentadoria por Invalidez’ e ‘Benefícios em Espécie/Auxílio-Doença
Previdenciário’, ambos recorrentes nos cinco TRFs”(8). Do total de mais de 195
milhões de processos novos de todo o Judiciário, em 2016, 5,58%, ou seja quase
11 milhões de processos ajuizados, dizem respeito a matéria previdenciária.
Analisando somente os processos novos ajuizados no âmbito da Justiça Federal,
num total de, aproximadamente, 15,5 milhões, mais de 43%, quase 7 milhões
de processos, dizem respeito ao tema Direito Previdenciário.(9) Somente para
se ter uma dimensão do que isso representa e como parâmetro de comparação,
o segundo maior tema, dentre os casos novos ajuizados, é o Direito Tributário,
com menos de 3,5 milhões de processos.
Além dos processos judicializados, que são tratados pelos órgãos do Poder
Judiciário, especialmente da Justiça Federal, e pelos membros da Advocacia
Geral da União, por meio da Procuradoria Federal Especializada, existem os
processos administrativos, oriundos dos recursos interpostos contra as decisões
do Instituto Nacional do Seguro Social que tramitam no Conselho de Recursos
do Seguro Social — CRSS.
O CRSS é órgão de controle jurisdicional das decisões do Instituto Nacional
do Seguro Social — INSS, cuja competência é o julgamento dos conitos em
matéria previdenciária, de interesse dos beneciários e das empresas(10), onde
(8)  Relatório Justiça em Números 2017 (ano-base 2016). Disponível em:
br/programas-e-acoes/pj-/justica-em-numeros>. Acesso em: 12.7.2018, p. 170.
(9)  Relatório Justiça em Números 2017 (ano-base 2016). Disponível em:
br/programas-e-acoes/pj-/justica-em-numeros>. Acesso em: 12.7.2018.
(10)  Art. 1º e parágrafo único do Regimento Interno do Conselho de Recursos do Seguro Social
— CRSS. Portaria n. 116, de 20 de março de 2017, Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário.
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foram recebidos, em 2017, mais de 600 mil processos(11). A jurisdição do CRSS é
exercida em todo o território nacional e possui quatro Câmaras de Julgamento,
situadas em Brasília, e vinte e nove Juntas de Recursos, espalhadas por todos
os Estados brasileiros.
A análise dos motivos para que o beneciário e as empresas acabem por
procurar o Poder Judiciário no lugar de buscar solucionar o conito no âmbito
do tribunal administrativo é fator essencial para compreender o fenômeno.
Entretanto, faz-se necessário discutir os aspectos relacionados à separação
dos Poderes, os princípios constitucionais da inafastabilidade de jurisdição e
as diferentes formas de se prestar jurisdição.
1.1. Teoria do Estado e a separação dos Poderes
Todas as sociedades, portanto, têm como meta alguma vantagem, e
aquela que é a principal e contém em si todas as outras se propõe à
maior vantagem possível. Chamamo-la Estado ou sociedade política.(12)
Antes de adentrar no estudo do Princípio da Separação de Poderes, faz-se
necessário retomar o contexto teórico e histórico da formação do Estado. Em
primeiro lugar tem-se de claricar que o Estado é uma estrutura composta por
instituições, cargos, órgãos, enm, tudo aquilo que organiza a sociedade na qual
ele está inserido. Há de se incluir dentre os requisitos que compõem o Estado, o
seu ordenamento jurídico, a Constituição, as leis e todo o plexo de normas que
denirão o esqueleto que o sustentará. Desde o início dos tempos, a formação do
Estado tem sido objeto de estudo. Teses de que foi resultado da luta de classes; ou
do uso da violência como mecanismo de opressão e coação; ou dos pensamentos
teológicos ou mesmo das teses voluntaristas que pensam o Estado como um m
em si mesmo. Ainda, aqueles que defendem a criação do Estado como fruto do
crescimento do poder das famílias, ou mesmo pelo concurso de várias dessas
forças em prol da unicação de um povo e de uma nação.(13)
Ao falar-se em união de pessoas em um dado local, território, com obje-
tivos semelhantes e com a intenção de formar um Estado, não há como fugir
Disponível em:
%20ALTERA%C3%87%C3%95ES_ago.pdf>. Acesso em: 10.1.2019.
(11)  Em 2017 foram recebidos 604.442 processos, Relatório de Atividades do Conselho de
Recursos do Seguro Social — CRSS, resposta ao ofício de requisição, com base na Lei de Acesso
à Informação.
(12)  ARISTÓTELES. A política. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 1.
(13)  RIBEIRO, Diógenes V. Hassan. A revisão do princípio da separação dos poderes: por uma
teoria da comunicação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 14-15.
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às disputas pelo poder, à tentativa de subjugar uns aos interesses dos outros.
Os conitos tiveram, e por que não dizer, têm lugar por conta dessas disputas
de ideias e de forças que formam o Estado. Desde Aristóteles, passando por
Locke e Montesquieu(14), o poder foi objeto de estudo, mais ainda a forma do
exercício do poder ante o cidadão de cada Estado. É nesse contexto histórico,
social e político que oresce a teoria da separação de poderes.
A doutrina da separação de Poderes atingiu seu ápice com a Revolução
Francesa que, com seus dogmas de liberdade, de igualdade e de fraternidade,
serviu como parâmetro principiológico das cartas constitucionais do chamado
Estado Moderno. Claro que se tratou de um processo evolutivo, até chegar
onde nos encontramos. Como falado anteriormente, o pontapé inicial teve
por objetivo restringir o poder do Estado e buscar a garantia das liberdades
individuais, mas nesse processo foram criadas algumas formas práticas para
assegurar a harmonia e interdependência entre os Poderes. Destaque-se o sis-
tema de freios e contrapesos, criado pelos americanos e, atualmente, presente
em praticamente todos os modelos constitucionais democráticos.(15)
Dentro desse processo evolutivo de concepção e de desenvolvimento do
princípio da separação de Poderes, relembre-se a experiência brasileira do
chamado Poder Moderador. Em seu título 3º, Dos Poderes e Representação
Nacional, art. 10, a Constituição Imperial Brasileira estabelecia: “Os Poderes
Políticos reconhecidos pela Constituição do Império do Brasil são quatro: o
Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial.
Ainda, considerava o Poder Moderador como a chave de toda a organização
política nacional, atribuindo-lhe a responsabilidade de velar sobre a manuten-
ção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais Poderes Políticos(16),
um quarto poder, a quem caberia a scalização e a integração dos demais. Mais
do que isso, havia uma mitigação das garantias das liberdades individuais ante
o poder do Monarca, pois, ao se colocar o Imperador, representante único e
máximo do Poder estatal, acima dos demais Poderes, acabava-se por atribuir
(14)  Nesse sentido: “Tal princípio, que no dizer de Manoel Gonçalves Ferreira Filho ‘não foi
invenção genial de um homem inspirado, mas sim é o resultado empírico da evolução cons-
titucional inglesa, a qual consagrou o Bill of Rights, de 1688’ e que tem por antecedente mais
remoto o estudo de Aristóteles, foi teorizado por John Locke e foi denitivamente concebido
como uma doutrina sistemática por Montesquieu”. (WATANABE, Kazuo. Controle jurisdicional:
princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional no sistema jurídico brasileiro e mandado
de segurança contra atos judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 8.)
(15)  WATANABE, Kazuo. Controle jurisdicional: princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional no sistema jurídico brasileiro e mandado de segurança contra atos judiciais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 7-10.
(16)  Art. 98, Constituição do Império do Brasil, de 25 de março de 1824. Disponível em:
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em: 16.7.2018.
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posição de supremacia do Estado ante os administrados, indo de encontro a
toda a concepção da própria origem do princípio da separação de Poderes.
Outro ponto que merece destaque, diz respeito à possibilidade de di-
ferentes modelos de jurisdição, onde há separação rígida entre os Poderes,
coibindo-se a possibilidade de interferência de um Poder em outro, como é o
caso da chamada jurisdição contenciosa ou administrativa francesa, na qual ao
Poder Executivo cabe julgar, em caráter denitivo suas lides, sem possibilitar
a análise, muito menos a sua revisão pelo Poder Judiciário. Mas esse tema
será melhor estudado quando se falar dos diferentes sistemas de jurisdição(17).
Ainda, há de se destacar a concepção do sistema de governo parlamenta-
rista em que se pode notar uma ligação umbilical entre o Poder Legislativo e o
Poder Executivo. Na realidade, o Executivo recruta seus colaboradores dentre
os membros do Legislativo, mais do que isso, há íntima colaboração entre os
dois Poderes, que em uma relação interdependente e hiperconectada não se
pode, geralmente, estabelecer uma nítida delimitação de onde um Poder inicia
e o outro acaba.
1.1.1. Releitura dos princípios da separação de Poderes e da inafastabilidade
da jurisdição e o m do monopólio estatal para distribuição de justiça
Com o passar dos anos, a separação de Poderes transformou-se em um
dogma constitucional(18) e, como tal, atrai posturas refratárias a sua moderniza-
ção e ao aprimoramento de suas bases interpretativas. Não se pode perder de
vista que o objetivo maior é a garantia das liberdades individuais e o cercea-
mento da ânsia de poder do Estado ante o administrado. Com a evolução da
sociedade e com a maior complexidade das relações, não haveria mais espaço
para interpretações estanques e segregacionistas. Para o cidadão comum não
importam as teorias, muito menos a discussão sobre a divisão de poderes,
sobre competências ou mesmo sobre os embates acadêmicos. O que importa
é que o seu direito seja garantido, que a justiça prevaleça, que o Estado não
seja o ser onipotente das épocas despóticas. Nesse sentido, faz-se imprescin-
dível rever a dinâmica organizacional dos Poderes que constituem o Estado
Democrático de Direito.
(17)  Quanto aos sistemas de jurisdição, este tema será aprofundado no item 1.2. “A função
jurisdicional”, do presente estudo.
(18)  Nesse sentido: “...o constitucionalismo compreende duas noções identicadoras básicas:
o princípio da separação dos poderes e a garantia dos direitos como instrumento de limitação
do exercício de poder estatal consagrados nas constituições com o objetivo de proteger as liber-
dades fundamentais”. (NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 8. ed. vol. único.
São Paulo: Método, 2014. p. 53.)
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Mais que pensar em Poderes herméticos e com limites clássicos para a
sua atuação, é importante garantir a convivência harmônica e interdependente
entre eles. Caso se analise a situação brasileira, que se trata de uma república
presidencialista, podem-se constatar exibilizações constitucionais à separa-
ção de Poderes. Por exemplo, quando se observa o processo orçamentário,
pode-se vericar que se trata de verdadeira função do Poder Executivo, não
obstante, a Constituição prevê que a proposta orçamentária cabe ao Executivo,
mas a competência para deliberação cabe ao Legislativo. Ainda que mesmo
atribuindo competência para a Câmara e para o Senado, o orçamento não será
impositivo, deixando a possibilidade de a Presidência da República executar o
orçamento conforme as suas prioridades e as suas disponibilidades. No mesmo
sentido, o Poder Judiciário tem liberdade, dentro dos parâmetros denidos
pelo Congresso Nacional, para executar a lei de dispêndios, conforme suas
decisões. Ainda, quando se refere à nomeação de alguns cargos da República,
até mesmo cargos privativos do Poder Judiciário, como é o caso da nomeação
de Desembargadores e de Ministros dos tribunais superiores, também há um
plexo de competências delegadas entre os Poderes Executivo e Legislativo, a
quem cabe a indicação, a sabatina e a nomeação.
Importante saber que o cerne da questão não está no local no qual a função
será realizada, mas sim que existam sistemas de controle, internos e externos,
para garantir o exercício adequado do poder. Nesse sentido há funções ad-
ministrativas desenvolvidas pelo Legislativo e pelo Judiciário, assim como há
competências jurisdicionais exercidas pelo Executivo e pelo Legislativo. Ainda,
há funções legislativas exercidas pelo Executivo e pelo Judiciário, tudo isso
ocorrendo de forma harmônica e sem signicar, necessariamente, uma violação
ao princípio da separação de Poderes. Muito pelo contrário, trata-se da con-
vivência entre as diversas funções, atividades e responsabilidades do Estado,
dentro do seu objetivo maior que é o de garantir as liberdades individuais e o
exercício moderado do poder.
Nesse ponto é importante a armação de Manoel Gonçalves Ferreira
Filho de que:
Cienticamente falando, não existe uma função jurisdicional di-
versa da administrativa. Politicamente falando, para a salvaguarda
da liberdade individual, a aplicação da lei em casos concretos deve
ser sempre conada, em última análise, a órgãos independentes e
imparciais, não subordinados ao governo, mas somente ao direito
impessoal.(19)
(19)  FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo:
Saraiva, 1978. Apud WATANABE, Kazuo. Controle jurisdicional: princípio da inafastabilidade
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Não há de se falar em um poder especíco, muito menos no local no
qual essas decisões poderão ser tomadas, mas tão somente das características
necessárias, o procedimento e a processualidade que devem ser observados
para que a decisão seja imparcial. Com o passar do tempo, como evolução e
solidicação naturais do princípio da separação de Poderes, acabou-se por
subsumir tal função para o Poder Judiciário. Ao ponto de se estabelecer a
existência do Poder Judiciário como condição essencial para a concretização
do Estado Democrático de Direito. Uma coisa não exclui a outra. Não se pode
deixar de valorizar a essencialidade da existência de uma magistratura livre
e independente, estruturada de maneira orgânica e dotada de principiologia
que lhe salvaguarde a imparcialidade. Não obstante, inviável atribuir-lhe a
exclusividade da função jurisdicional, o que poderia, inclusive, dotá-lo de
perigosa proeminência em relação aos demais Poderes, o que fugiria das bases
conceituais do princípio da separação de Poderes.
A própria ordem constitucional vigente autoriza a mitigação da separação
rígida de Poderes, delegando funções típicas de um Poder a outro. É o caso
da competência de julgamento das Comissões Parlamentares de Inquérito(20),
dotadas de processualidade similar à da prestação jurisdicional do Judiciário,
ainda, a possibilidade de os Poderes Executivo e Judiciário editarem normas de
auto-organização, como é o caso dos Regimentos Internos dos Tribunais(21) ou
mesmo das portarias e instruções normativas do Poder Executivo. Finalmente,
funções scalizadoras típicas do Poder Legislativo que podem ser desempe-
nhadas pelo Judiciário, exemplo o Conselho Nacional de Justiça(22), o Conselho
da Justiça Federal(23) e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho(24), sem falar
nas auditorias internas dos órgãos do Poder Executivo e a auditoria promovida
pela Controladoria Geral da União. Essas funções podem ser desempenhadas
sem signicar interferência de um Poder em outro, ou mesmo em usurpação
de competência de um Poder em outro. Na realidade, trata-se de prova cabal
de que não há mais espaço para se falar em separação rígida de Poderes, mas
sim na sua convivência harmônica e interdependente.
Ao longo da história, o princípio da separação de Poderes acabou por
atribuir exclusividade ao Poder Judiciário para o exercício da função jurisdi-
cional. Para se ter uma ideia do que isso signica, faz-se necessário conceituar
jurisdição. Em um primeiro momento, pode-se considerar jurisdição como o
do controle jurisdicional no sistema jurídico brasileiro e mandado de segurança contra atos
judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 15.
(22)  Arts. 92, I e 103-B, da Constituição Federal do Brasil de 1988.
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poder do Estado de dizer o direito, de aplicar a lei ao caso concreto. O Poder
Legislativo tem o poder de elaborar leis, que consideram a situação do dever-
-ser, que regula as situações em abstrato. De nada adianta a lei no mundo do
dever-ser sem que ela seja aplicada ao caso concreto. Neste momento surgem
as controvérsias, dada a casuística, dada a situação, podem surgir interpreta-
ções diferentes sobre a forma com que a lei deve ser aplicada ao caso. Em um
Estado Democrático de Direito, não se pode permitir que a força seja a forma
de se resolver tais questões, assim, em prol da harmônica convivência entre
os cidadãos, as pessoas dotam o Estado de poder para dizer e para aplicar
o direito ao caso concreto. A jurisdição caracteriza-se pela substituição dos
particulares, ou mesmo de particulares e da Administração, pelo Estado que
detém o poder de dizer o direito, de armar a vontade da lei e de torná-la
ecaz. Nos dizeres de Dinamarco:
À jurisdição costuma ser atribuída uma tríplice conceituação, dizen-
do-se habitualmente que ela é ao mesmo tempo um poder e uma
função e uma atividade. Na realidade, ela não é um poder, mas o
próprio poder estatal, que é uno, enquanto exercido com os objeti-
vos do sistema processual; assim como a legislação é o poder estatal
exercido para criar normas e a administração, para governar. Como
função, a jurisdição caracteriza-se pelos escopos que mediante seu
exercício o Estado-Juiz busca realizar — notadamente o escopo social
de pacicar pessoas, eliminando litígios. A atividade jurisdicional
constitui-se dos atos que o juiz realiza no processo, segundo as regras
do procedimento.(25)
Kazuo Watanabe, ao discorrer sobre o Poder Judiciário e Função
Jurisdicional, reforça a tese de que a jurisdição não é exclusiva do Poder
Judiciário. Cita ainda que a jurisdição pode ser analisada e conceituada como
poder, “no plano da soberania estatal, como função nos limites das atribuições
que lhe cabem aos órgãos estatais encarregados de dizer o direito objetivo,
e como atividade no âmbito do processo. Em sentido contrário, apresenta
também as denições de Frederico Marques que,na jurisdição, ao lado do
elemento material, consubstanciado no poder de julgar, há o elemento formal
em sentido estrito (processo e coisa julgada) e o elemento orgânico ou subje-
tivo (o Poder Judiciário). Veja que, nesse ponto, o autor atribui competência
exclusiva ao Poder Judiciário, denominando, inclusive, do que ele chama de
elemento orgânico ou subjetivo.(26)
(25)  DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 7. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013. v. I, p. 303.
(26)  WATANABE, Kazuo. Controle jurisdicional: princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional no sistema jurídico brasileiro e mandado de segurança contra atos judiciais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 14-22. Capítulo II: Poder Judiciário e Função Jurisdicional.
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Caso se olhe para a visão do cidadão comum, para o real destinatário
dos efeitos do princípio da separação de Poderes, não importa o elemento
orgânico, melhor dizendo, não há a necessidade de que o caráter subjetivo
da jurisdição seja exercido somente pelo Poder Judiciário, mas sim que ele
exista, que as regras estejam clara e previamente denidas, que o Estado,
independentemente de qual órgão, exerça a sua função de dizer e de aplicar
o direito, que dê efetividade e concretude às leis, que pacique as controvér-
sias. Poder-se-ia dizer que ao se atribuir a jurisdição exclusivamente ao Poder
Judiciário, minimizar-se-ia o poder da Administração, garantindo assim os
direitos individuais perante o Estado opressor.
Não se pode deixar de ter claro que o Judiciário também faz parte do
Estado, que juntamente com o Executivo e com o Legislativo concretizam um
todo orgânico. Entende-se que o cerne da discussão não deve residir no locus
mas sim no modus operandi do exercício da jurisdição. De nada valerá dotar o
Poder Judiciário de exclusividade da prestação jurisdicional se não forem ob-
servados os princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo
legal. Da mesma forma, não haverá sentido em não se dotar de executividade
a pacicação de uma lide que, mesmo não tendo sido composta dentro do
Judiciário, seguiu a processualidade devida, a imparcialidade de julgamento
e a impessoalidade da decisão. O que não se pode abrir mão é do monopólio
da justiça nas mãos do Estado, sob pena de voltarmos à barbárie do uso da
força ou, principalmente nos dias atuais, do poder econômico para resolver
as controvérsias.
Nessa mesma senda, Rodolfo de Camargo Mancuso(27) apresenta proposta
de ressignicação do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, que estabelece:
“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direi-
to”(28). No estudo, que será objeto de análise nas páginas seguintes, propõe-se
uma releitura do princípio da inafastabilidade do Judiciário, atribuindo-lhe
o sentido de acesso à justiça e não de acesso à estrutura orgânica do Poder
Judiciário nacional.
O primeiro ponto a ser destacado diz respeito à crescente judicialização
dos conitos, principalmente pelo entendimento de que a inafastabilidade de
jurisdição signicaria levar ao Poder Judiciário toda e qualquer controvérsia. Tal
entendimento tem feito com que qualquer pequena desavença vire um processo
judicial, não raro, antes mesmo de que o conito esteja realmente estabelecido.
(27)  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O direito à tutela jurisdicional: o novo enfoque do
art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. In: LEITE, George Salomão; STRECK, Lenio; NERY
JUNIOR, Nelson (coords.). Crise dos poderes da República: judiciário, legislativo e executivo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 69-104.
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Um simples abalroamento de carros, ou uma discussão natural entre vizinhos
de um condomínio têm abarrotado as prateleiras do Poder Judiciário. Esta
leitura exacerbada, de que o acesso à Justiça signica um processo judicial,
tende a matar qualquer tentativa de composição. Não raro se escuta um advo-
gado falar que não faz acordo, que não acredita em conciliação, que somente
acredita em seu preparo técnico para conduzir o processo judicial à vitória. Da
Constituição Federal de 1988 até os dias atuais, consolidou-se o conceito de
que, ao mínimo desentendimento, à mínima resistência, ou mesmo, o simples
conito de ideias deve ser levado ao crivo do Magistrado, fazendo nascer, nas
palavras de Mancuso, “a judicialização do cotidiano, numa açodada ligação
direta entre a controvérsia e o Fórum”.(29)
Centrando a discussão aos limites do escopo do presente estudo, quando
se analisa o conito previdenciário, pode-se facilmente constatar que os bene-
ciários do sistema não se utilizam das vias administrativas para a solução de
seus conitos. O mero indeferimento do pedido, de forma parcial ou integral,
leva à constituição de um advogado e o consequente ajuizamento de uma ação
para requerer a reversão da decisão administrativa.(30)
Há de se ter claro que as decisões administrativas são fruto de um
processo, fruto de procedimentos desencadeados de maneira ordenada e
preestabelecidos em lei, em atos e instruções normativas. O servidor público,
ao receber um requerimento do administrado, tem a obrigação de instaurar
o devido procedimento administrativo, instruir o processo, cumprir todas as
etapas previstas no procedimento, até chegar à decisão em relação ao pleito.
Ainda, nos termos da legislação, desta decisão cabe pedido de reconsideração
e, se for o caso, de recurso administrativo para a autoridade superior. Durante
todo o procedimento, são assegurados ao administrado os postulados da lega-
lidade, nalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade,
ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público, eciência,
dentre outros tantos previstos na Administração Pública.(31)
(29)  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O direito à tutela jurisdicional: o novo enfoque do
art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. In: LEITE, George Salomão; STRECK, Lenio; NERY
JUNIOR, Nelson (coords.). Crise dos poderes da República: judiciário, legislativo e executivo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 73.
(30)  Veja-se Relatório Justiça em Números 2017 (ano-base 2016). Disponível em:
cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-/justica-em-numeros>. Acesso em: 12.7.2018, anteriormente ci-
tado no presente estudo, que mostra a grande participação dos conitos previdenciários dentre
as demandas dos órgãos da Justiça Federal.
(31)  Arts. 2º, caput, parágrafo único e incisos, 56 e parágrafos, da Lei n. 9.794/99, de 29 de ja-
neiro de 1999. Disponível em: . Acesso
em: 25.7.2018.
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No estudo citado anteriormente, o autor ressalta que a ausência de recur-
sos e a complexa estrutura da Administração Pública acaba por não atender
adequadamente às necessidades da sociedade, o que acarretaria como conse-
quência: (i) a não submissão de muitas demandas às esferas administrativas; (ii)
a resposta da Administração se dá de maneira insuciente; (iii) o demandismo
exacerbado; (iv) a visão distorcida do Judiciário que passou a ser considerado
como o primeiro recurso a ser acionado e não, como deveria, ser envolvido
somente após o exaurimento das outras formas possíveis de composição.(32) Essa
visão errônea do princípio da inafastabilidade de jurisdição acaba por deslegi-
timar as soluções primárias para a composição de conitos, no caso especíco
das demandas contra a Administração Pública. Nem sequer o iter completo do
processo administrativo é percorrido e aciona-se o Poder Judiciário.
Do ponto de vista da gestão pública, o encaminhamento das demandas de
maneira prematura para o Judiciário desconsidera a estrutura administrativa
instalada para lidar com esses conitos, causando desperdício e, até mesmo,
superposição de funções. A título de exemplo, e dentro do escopo do presente
estudo, ao se referir ao processo previdenciário para análise do pedido para
concessão de benefício previdenciário, existe estrutura para a recepção, aná-
lise, instrução e decisão administrativa do pedido. Refere-se a uma autarquia
federal, o Instituto Nacional do Seguro Social — INSS, criado em 27 de junho
de 1990, que tem como competência a operacionalização do reconhecimento
do direito dos segurados do Regime Geral de Previdência Social — RGPS, hoje
vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Social — MDS e que possui mais
de 50 milhões de segurados.(33) A Autarquia, com presença em todo o território
nacional, é dotada de quadro de pessoal especializado composto por técnicos,
analistas, auditores, peritos médicos, assistentes sociais e tem seus processos
suportados pela DATAPREV, criada há mais de 40 anos, empresa pública que
fornece soluções de tecnologia de informação e comunicação para o INSS e
para o aprimoramento e a execução de políticas sociais do Estado brasileiro,
com capacidade para hospedar, manter, gerir e proteger todas as informações
e sistemas para a consecução dos objetivos da Autarquia Previdenciária.(34)
Ainda, tem-se a estrutura do Conselho de Recursos do Seguro Social — CRSS,
órgão colegiado, integrante da estrutura do Ministério do Desenvolvimento
Social, que funciona como um tribunal administrativo e tem por função básica
(32)  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O direito à tutela jurisdicional: o novo enfoque do
art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. In: LEITE, George Salomão; STRECK, Lenio; NERY
JUNIOR, Nelson (coords.). Crise dos poderes da República: judiciário, legislativo e executivo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 73.
(33)  Disponível em: . Acesso
em: 25.7.2018.
(34)  Disponível em: . Acesso em:
25.7.2018.
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mediar os litígios entre segurados e o INSS, conforme dispuser a legislação, e
a Previdência Social(35), formado por 4 (quatro) Câmaras de Julgamento — CaJ,
localizadas em Brasília — DF, que julgam em segunda e última instância maté-
ria de Benefício, e por 29 (vinte e nove) Juntas de Recursos — JR nos diversos
Estados que julgam matéria de benefício em primeira instância.(36)
De outro lado, demonstrando mais claramente a ineciência administra-
tiva, o Poder Judiciário, que se tornou fortemente demandado para solucionar
esse tipo de conito, a cada dia mais reforça a sua estrutura organizacional,
mais juízes, mais varas, mais servidores, mais prédios, sistemas computacionais
complexos, tudo isso para atender à crescente demanda, principalmente sob o
tema do Direito Previdenciário. Tal ocorre por conta de uma fórmula métrica
para denição da estrutura administrativa do Judiciário, que privilegia a va-
riável quantidade de processos(37). Esta avaliação meramente numérica trata
o efeito e não as causas do problema, mais do que isso, traz a impressão de
que o aumento do número de processos deve ser uma meta a ser alcançada,
pois somente assim poder-se-ia ampliar os recursos destinados àquele Poder.
1.1.2. A separação de Poderes, de Montesquieu a Ackerman
Após esta introdução, na qual se destacou a necessidade de releitura do
princípio da separação de Poderes, faz-se necessário estudar as premissas
que nortearam a criação do princípio. Assim, este tópico apresentará as bases
principiológicas lançadas por Montesquieu(38), a sua aplicação ao modelo fede-
ralista de Madison(39) e a proposta de nova divisão de Poderes de Ackerman(40).
Ressalte-se que o objeto do presente momento do estudo não será de apresentar
detalhadamente cada um dos modelos, mas sim de promover um diálogo entre
as diferentes teses de harmonização entre os Poderes do Estado, de reforçar a
(35)  Disponível em: -
selho-de-recursos-da-previdencia-social-crps/>. Acesso em: 12.7.2018.
(36)  Disponível em: -
selho-de-recursos-da-previdencia-social-crps/>. Acesso em: 12.7.2018.
(37)  Nesse sentido a Resolução n. 219, de 26 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Justiça,
que dispõe sobre a distribuição de servidores, de cargos em comissão e de funções de conança
nos órgãos do Poder Judiciário de primeiro e segundo graus. Disponível em:
jus.br/les/atos_administrativos/resoluo-n219-26-04-2016-presidncia.pdf>. Acesso em: 15.8.2018.
(38)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia).
(39) HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. Tradução de Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003.
(40)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007.
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necessidade da releitura do princípio de separação de Poderes e de estabelecer
premissas para a sua aplicação ao ordenamento jurídico nacional.
1.1.2.1. Montesquieu e o modelo clássico de separação de Poderes
Desde Aristóteles achava-se temerário deixar o uso do poder somente nas
mãos de uma pessoa. Ele já se insurgia contra a estrutura da antiga Grécia,
onde um só órgão promulgava as leis, promovia o julgamento e declarava a
guerra e a paz. O lósofo entendia que não se poderia conceber a gura de uma
pessoa que pudesse possuir um conhecimento tão vasto ao ponto de transitar
em áreas tão distintas, além de ser perigoso para a democracia concentrar os
poderes na mão de uma pessoa ou de um órgão, dando margem para o sur-
gimento de tiranias.(41)
Essas primeiras linhas foram mais bem trabalhadas por John Locke, em
sua obra Segundo Tratado sobre o Governo Civil(42), quando imaginou que o poder
do Estado, no caso da Monarquia, poderia ser dividido em quatro grandes
funções: Executivo, Legislativo, Prerrogativa, que atribuía capacidade de o
monarca não se subordinar às leis, e o Poder Federativo.(43) Destaque-se que
em momento algum Locke referiu-se ao Poder Judiciário, que somente veio a
aparecer com Montesquieu, que será estudado à frente.
A teoria da separação de Poderes, na forma que se conhece hoje, foi es-
truturada por Montesquieu, na obra O Espírito das Leis(44), especialmente no
Livro Décimo Primeiro: Das leis que formam a liberdade política e sua relação
com a Constituição(45), cuja linha central é o estudo da liberdade, seus concei-
tos e como garanti-la aos cidadãos de cada Estado. Como se sabe, a obra de
Montesquieu trata-se de primoroso relato histórico da estrutura de governo
(41)  ARITÓTELES, A política. Tradução de Pietro Nassei. São Paulo: Mantin Claret, 2003
(Coleção obra prima de cada autor), p. 32.
(42)  LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo civil. In: Dois tratados sobre o governo
civil. Tradução de Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
(43)  Nesse sentido: “(...) para disporem de regras xas e delimitá-las (...) É para esse m que
os homens renunciaram a todo o seu poder natural em favor da sociedade em que ingressam,
e a comunidade deposita o poder legislativo nas mãos que considera convenientes, conando-
-lhes o encargo de que a sociedade seja governada por leis expressas”. (LOCKE, John. O segundo
tratado sobre o governo civil. In: Dois tratados sobre o governo civil. Tradução de Júlio Fischer.
São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 507-508.)
(44)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia).
(45)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 165-196.
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de vários Estados da antiguidade e da sua contemporaneidade. Destaque-se
que todo o livro apresenta-se com uma análise de como se dão as relações
de poder em cada um dos Estados nacionais relatados, as diferentes formas
de governo e as relações entre o Estado e os Cidadãos. No presente estudo,
atentar-se-á aos aspectos estruturantes do princípio da separação de poderes,
cujas bases teóricas foram lançadas por Montesquieu no meio do século XVIII,
no auge do Iluminismo, movimento de grandes pensadores como Voltaire,
Locke e Rousseau, base conceitual para as revoluções burguesas da segunda
metade daquele século.
Para Montesquieu, o exercício pleno da liberdade era a essência de uma
democracia, mas até mesmo esse princípio máximo haveria de sofrer limitações
para possibilitar a boa convivência dos povos. Tal acepção irá atribuir à lei o
papel de limitar a liberdade, de forma que ser livre será fazer tudo aquilo que
as leis permitem(46), é o “poder atribuindo limite ao próprio poder”.(47) Mas
quem deveria criar as leis? De que forma elas deveriam ser executadas? Quem
lhes asseguraria o cumprimento? A resposta para essas perguntas aparecem
na obra com a formulação do princípio da separação de Poderes.
Em primeiro lugar, o Filósofo identica as funções clássicas e impres-
cindíveis para o exercício do poder em um Estado: Legislativo, Executivo e o
Judiciário:
Com o primeiro, o príncipe ou o magistrado cria leis por um tempo
ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com
o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas,
instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga
os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos
a este último o poder de julgar e ao outro simplesmente de poder
executivo do Estado.(48)
A concepção das funções presentes em um Estado, embora hoje pareça
óbvia, representou signicativa evolução para a época. Há de se destacar que
o momento histórico caracterizava-se pela presença marcante de monarquias
absolutistas. Todo o poder estava depositado nas mãos dos reis que, muitas
(46)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 166.
(47)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 166.
(48)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 167-168.
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vezes, possuíam mandatos com aspirações de verdadeiras divindades. Naquele
momento histórico pensar-se em dividir o poder em funções distintas, mais do
que isso, estabelecer-se a lógica de que a divisão dessas responsabilidades em
pessoas ou órgãos distintos, representou radical alteração no pensamento até
então hegemônico. Por isso mesmo, como forma de contraponto e de se evitar
o exercício do Poder de forma absoluta, Montesquieu cunha o princípio de
separação de Poderes de maneira hermética e isolada. Não se poderia permitir
a mínima intersecção entre cada uma das funções, quem cria a lei não pode ser
o mesmo que a executa, muito menos quem julga se ela veio a ser cumprida.
Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do Poder
Legislativo e do Executivo.(49)
Ao Poder Executivo caberia a execução das leis, a decisão sobre a guerra
e a paz, a ação instantânea para administrar o Estado, a faculdade de impe-
dir, consubstanciada no poder de veto.(50) Já ao Poder Legislativo, caberia a
faculdade de instituir, escolhido para representar a vontade do povo, expresso
pelos debates em suas assembleias(51), ainda caberia a faculdade de examinar
de que maneiras as leis que criou foram executadas, o poder de scalizar(52).
Finalmente, no que diz respeito ao Poder Judiciário, Montesquieu atribuiu-
-lhe papel de menor destaque, ao ponto de considerá-lo como “de alguma
forma nulo”(53), caberia aos julgadores ser a “boca que pronuncia as palavras
da lei”.(54) Interessante destacar que, no modelo originário, o Judiciário teria,
já de princípio, usurpado parte do que se veio a chamar jurisdição. Em vários
pontos de sua obra, o Filósofo estabelece a participação do Poder Legislativo
no processo de prestação jurisdicional. Ao mesmo tempo em que relega o papel
(49)  “Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está
reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca
ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.” (MONTESQUIEU, Charles
de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresentação de Renato Janine Ribeiro.
Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes, 1996 (Paideia). p. 168.)
(50)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 172.
(51)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 172.
(52)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 174.
(53)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 172.
(54)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 174.
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dos juízes a de “seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem
seu rigor”(55), atribui ao Legislativo o poder de transformar-se em um tribunal
necessário para moderar a lei em favor da própria lei, podendo, até mesmo,
sentenciar com menos rigor do que ela mesma estatuiu.(56)
Após a conceituação clássica dos três Poderes, Montesquieu desenvolve
uma série de análises e estabelece princípios que nortearam a visão de que cada
uma das funções do Estado deveria ser desempenhada de maneira autônoma,
independentemente e, até mesmo, hermeticamente fechada, cada uma em
seu mundo. A posição é totalmente compreensível, pois a prioridade, àquela
época, era de evitar a concentração de poderes em uma só pessoa ou órgão, de
forma a prevenir o surgimento dos tão odiados regimes absolutistas. Em seu
estudo sobre como se dá o exercício das liberdades e a separação de Poderes
em Roma e em suas províncias, vários são os pontos em que o Filósofo relata
problemas que poderiam advir da possível intromissão de um Poder na esfera
de atuação do outro, tais como, se daria o poder de scalizar e julgar os atos
de cada Poder(57) a quem deve controlar os exércitos(58), a quem caberia o poder
de distribuir os recursos públicos(59) e as implicações sobre a quem caberia o
Poder de julgar e em quais situações(60).
Montesquieu aprofunda os estudos de Aristóteles, que não fazia a distin-
ção de quem estaria à frente de cada uma das funções, mas tão somente que
existiriam responsabilidades diferentes no exercício do Poder, e aprimora o
ensaio de Locke, que não dotava o Poder Judiciário de autonomia e atribuía
suprapoderes ao monarca. Em síntese, além de observar os aspectos funcionais
para a tripartição dos Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, tratou a
situação sob o ponto de vista institucional, ao distinguir parlamento, governo
(55)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 175.
(56)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 175.
(57)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 174.
(58)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 177.
(59)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 189.
(60)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apresen-
tação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia). p. 193.
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e tribunais, e, nalmente, sob o aspecto socioestrutural analisou a Coroa, o
Clero, a Nobreza e o Povo(61). Por isso, sua obra é considerada como basilar
para concepção da teoria de separação de Poderes, que será, posteriormente,
aplicada ao caso concreto por Madison, em O Federalista, objeto de estudo do
próximo tópico.
1.1.2.2. Madison e o modelo federalista de separação de Poderes americano
Madison analisa a aplicação do modelo clássico de separação de Poderes
de Montesquieu à luz das Constituições dos Estados americanos, sob o enfo-
que de que a aplicação do princípio é condição essencial para a garantia da
liberdade, valor mais caro para a democracia americana desde as suas origens.
Deixa claro, logo no início de seus estudos, citando o Filósofo Iluminista:
Que não há liberdade todas as vezes que a mesma pessoa ou a mesma
corporação legisla e executa ao mesmo tempo, ou por outras pala-
vras, quando o poder de julgar não está bem distinto e separado do
Legislativo e Executivo.(62)
Ao vericar as Constituições de New-Hampshire, Massachuses, Nova
Iorque, Nova Jersey, Pensilvânia, Delaware, Maryland, Virgínia, Carolina
do Sul, Carolina do Norte e Geórgia comprova que todas elas previram em
seus textos a separação de Poderes, nos moldes de Montesquieu: Executivo,
Legislativo e Judiciário, garantiram a autonomia e distinção entre cada um
deles, assim como estabeleceram condição para assegurar a não usurpação
de suas competências uns pelos outros. Este último merece destaque especial
no estudo de Madison, pois depois de ter separado os Poderes, é de suma
importância defendê-los de suas usurpações recíprocas.(63) Outro ponto que
merece destaque diz respeito à armação que inicia a lógica do sistema de
freios e contrapesos:
Fica provado que o axioma político que se examina não exige a se-
paração absoluta dos três Poderes; demonstrar-se-á agora que sem
(61)  BADAWI, Karina Bonei. Separação dos poderes no Brasil e a teoria de Bruce Ackerman. Tese
de doutorado apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direito
Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2014. p. 16. Disponível
em: . Acesso em: 21.8.2018.
(62)  HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. Tradução de Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 300.
(63)  HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. Tradução de Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 300-305.
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uma tal ligação que dê a cada um deles o direito constitucional de
scalizar uns aos outros, o grau de separação, essencial à existência
de um governo livre, não pode na prática ser ecazmente mantido.(64)
Como se vê, desde as primeiras aplicações da teoria da separação de
Poderes clássica, a convivência independentemente e harmônica dos Poderes
sofreu problemas para sua implementação, movimentos de crescimento da
força do Legislativo ante o Executivo, tentativas de o Chefe de Governo se
sobrepor às Câmaras do Povo, qualquer das duas situações não favorece as
liberdades individuais e dá espaço para o surgimento de tiranias.(65) O cerne
do estudo de Madison será exatamente a busca de mecanismos que possam
evitar ou, ao menos, minimizar essas interferências de um Poder em outro,
de forma a garantir o verdadeiro equilíbrio defendido por Montesquieu. A
solução esposada por Madison foi a criação do sistema Check and Balances(66),
que estabelece a possibilidade de os Poderes se scalizarem uns aos outros,
que se complementem em suas atribuições e competências, podendo, assim,
manterem-se cada um em sua área de atuação e minimizando as usurpações
uns dos outros. O objetivo principal do sistema é garantir uma convivência
harmoniosa entre os Poderes e que eventuais excessos sejam resolvidos, sempre
a m de evitar qualquer possibilidade de concentração que, certamente, levaria
ao exercício tirano do poder. Dessa forma, há de se estabelecer nas Constituições
a possibilidade e a forma de exercício do veto(67), formas compartilhadas de
indicação e de nomeação para as supremas magistraturas(68), fazendo uso da
oposição e da rivalidade de interesses como forma de distribuição de poder(69),
evitando a criação de maiorias injustas, a m de prevalecer o interesse da
sociedade como um todo.(70)
(64) HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. Tradução de Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 305.
(65)  HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. Tradução de Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 306.
(66)  “A que meio se recorrerá, portanto, para manter na prática essa separação essencial dos
poderes, que a Constituição estabelece em teoria? Como todos os remédios exteriores são sem
efeito, não há outro remédio possível senão traçar de tal maneira a construção do governo, que
todas as suas diferentes partes possam reter-se umas às outras nos seus lugares respectivos.”
(HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. Tradução de Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 316.)
(67)  HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. Tradução de Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 319.
(68)  HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. Tradução de Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 319.
(69)  HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. Tradução de Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 318.
(70)  HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. Tradução de Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 320.
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Ressalte-se que a Constituição Americana de 1787(71) dá início ao sistema
de governo presidencialista, em que a gura do presidente incorpora as funções
de Chefe de Estado e de Chefe de Governo, concentrando em uma única pessoa
o Poder Executivo, o que torna mais premente a necessidade de estabelecer
formas para evitar-se a usurpação de um Poder em outro. É nítida a concen-
tração de Poderes na mão do Chefe de Governo no regime presidencialista,
sendo necessária a adequação da teoria clássica de separação de Poderes de
Montesquieu, acabando por atribuir mais responsabilidades e competências
ao Executivo do que inicialmente imaginado pelo lósofo. O movimento ame-
ricano, rumo ao sistema de governo presidencialista, acaba por solidicar o
modelo de check and balances, como fórmula de sucesso a ser copiada em outros
regimes constitucionais democráticos. Nesse sentido, Badawi, ao analisar o
sistema americano, conclui:
Esse sistema de controle e a dependência recíproca dos poderes,
uns em relação aos outros, os dotaram dos meios necessários para
garantir a sua autonomia. A fórmula dos freios e contrapesos nunca
precisou ser alterada no texto constitucional norte-americano, pois
pôde ser adaptada a todas as mudanças econômicas e sociais da
história dos Estados Unidos. O modelo estadunidense percorreu
Estados afora, não sendo raro encontrar tal conguração em diversas
constituições, o que fez com que houvesse a sedimentação da teoria
de Montesquieu.(72)
Destaque-se, por estar intimamente ligado ao presente estudo, a refe-
rência expressa de Madison à importância de haver um corpo de servidores
públicos independente, altamente qualicados e especializados, que perce-
bessem remuneração adequada por seus empregos.(73) Veja-se que, já naquela
época, percebia-se a importância de se assegurar a autonomia de um corpo
técnico que apoiaria a consecução dos objetivos de cada um dos Poderes, o
que, futuramente, daria origem ao chamado Estado Burocrático.(74) O que se
destaca neste momento é a percepção de Madison da imprescindibilidade da
especialização dos servidores públicos:
(71)  Constituição da Filadéla, de 1787, que entrou em vigor em 1789.
(72)  BADAWI, Karina Bonei. Separação dos poderes no Brasil e a teoria de Bruce Ackerman. Tese
de doutorado apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direito
Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2014. p. 27-28. Dis-
ponível em: . Acesso em: 21.8.2018.
(73)  HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. Tradução de Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 318.
(74)  No próximo tópico analisar-se-á com mais detalhe o Estado Burocrático, dentro do estudo
da proposta de nova separação de Poderes de Ackerman.
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É igualmente evidente que os funcionários públicos, encarregados
do exercício de cada um dos poderes, devem ser tão independentes,
como seja possível, dos que exercitam os outros, quanto aos emolu-
mentos dos seus empregos. Se o magistrado executivo ou os juízes
cassem nesse artigo dependentes da legislatura, claro está que
a sua independência a qualquer outro respeito seria inteiramente
ilusória.(75)
Após analisar a teoria clássica de Montesquieu, a sua implementação nos
Estados Unidos e a implementação do modelo de check and balances, frutos do
estudo de Madison, pode-se chegar à conclusão de que o princípio de separação
de Poderes vem sofrendo adequações ao longo de sua existência. De um lado,
para aprofundar a sua própria conceituação, promovendo o preenchimento de
lacunas sobre as funções e as responsabilidades de cada um dos Poderes do
Estado, buscando minimizar as possíveis usurpações de um Poder em outro
e, até mesmo, a consciência de que não deve haver uma visão hermética e iso-
lada de cada um dos Poderes, pois todos eles são originários e destinatários
do Estado e do próprio povo.
Mais do que isso, não se pode deixar de ter em mente que o objetivo
principal de se estabelecer a separação de Poderes reside na busca incessante
de se evitar o surgimento de tiranias, de concentrações exacerbadas que sobre-
ponham os interesses de indivíduos ou grupos em detrimento às garantias e
às liberdades individuais. Ainda, há de se ter claro que o importante não é, ne-
cessariamente, quantas serão as divisões, ou mesmo como elas se darão, muito
menos qual o local em que cada função do Estado venha a ser desenvolvida,
mas sim assegurar que as diferentes funções sejam executadas de maneira
harmônica e sempre em prol do Estado, e, por conseguinte, do povo do qual
todo o seu poder emana e para quem todo o seu poder deve ser destinatário.
Dessa forma, superada a análise dos modelos clássicos, há de se promover
um estudo crítico sobre seus três séculos de implementação, propor ajustes,
viabilizar uma verdadeira releitura de seus princípios. É nesse sentido que
se analisará a proposta de Bruce Ackerman, sobre a nova divisão de Poderes.
1.1.2.3. Bruce Ackerman e a nova divisão de Poderes
Como se pôde analisar até este ponto do presente estudo, a teoria da sepa-
ração de poderes reina, praticamente uníssona, desde o século XVIII até os dias
atuais. Praticamente houve somente uma maior explicitação e experimentação
(75)  HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. Tradução de Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 318.
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da teoria inicial de Montesquieu, sem se apresentarem maiores inovações acerca
do tema. Dentro desse cenário que se passa a estudar a proposta de nova divisão
de poderes, elaborada por Bruce Ackerman, professor da Yale Law School.(76)
Em seu livro A nova separação de poderes(77), Ackerman fez uma profunda
análise da implementação do modelo da separação de Poderes em diversos
ordenamentos jurídicos constitucionais, com ênfase crítica aos modelos dos
Estados Unidos da América e da Grã-Bretanha. Os comentários ácidos e pro-
fundos sobre as diferenças entre a tão desejada convivência harmônica entre
os Poderes e a realidade político-constitucional de cada um dos Estados, apre-
senta-se como destaque, que se passa a estudar.
Karina Badawi(78), ao escrever sobre o mesmo tema, acrescenta considera-
ções sobre o que ela chamou de “simetria no bicameralismo” e “burocracia”.
Aprofundando-se um pouco mais na análise dos estudos de Ackerman, ela
asseverou a crítica à existência de uma segunda casa legislativa forte, que
serviria apenas para proteger as classes superiores.(79) Realmente, Ackerman,
ao analisar o modelo bicameral existente na maioria dos Estados, faz duras
críticas à necessidade de existirem duas câmaras com idênticos poderes legis-
lativos, o que entende totalmente dispensável nos dias atuais e que signica
tão somente maiores gastos e maior complexidade para se conseguir uma
composição de apoio no Parlamento. O autor chega a propor o modelo “câmara
e meia” que será objeto de estudo nas linhas vindouras. Neste modelo buscar-
-se-ia, no lugar de dividir o poder entre a câmara, o senado e o presidente, o
poder seria partilhado entre o Parlamento e o povo, no qual a Câmara seria a
responsável pelas decisões governamentais de rotina, ligada mais para o dia
a dia da Administração Pública e para as questões prementes de Governo, e
o Senado expressaria a sua vontade por meio de um processo de referendos
e plebiscitos em série.(80)
(76)  Bruce Ackerman é professor de Direito Constitucional e Ciência Política na Universidade
de Yale, autor de dezoito livros que lhe proporcionaram inuência internacional em política,
losoa, direito constitucional e políticas públicas. Suas principais obras incluem Social Justice in
the Liberal State e sua coletânea sobre História Constitucional, Nós o Povo. Disponível em:
law.yale.edu/bruce-ackerman>. Acesso em: 20.8.2018.
(77)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007.
(78)  BADAWI, Karina Bonei. Separação dos poderes no Brasil e a teoria de Bruce Ackerman. Tese
de doutorado apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direito
Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2014. p. 33-39. Dis-
ponível em: . Acesso em: 21.8.2018.
(79)  BADAWI, Karina Bonei. Separação dos poderes no Brasil e a teoria de Bruce Ackerman. Tese
de doutorado apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direito
Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2014. p. 36. Disponível
em: . Acesso em: 21.8.2018.
(80)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar. Mé-
xico: FCE, 2007. p. 49-53.
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37
Já no que se refere à “burocracia”, destaca-se a importância de se analisar
a necessidade de existir uma especialização funcional, o que se considera a
“quarta instância do Estado”, fazendo surgir o que se denomina de “prossio-
nalismo politizado”.(81) Este corpo burocrático altamente capacitado amenizaria
a transferência de responsabilidades entre os Poderes, deixando de existir a
imputação a quem motivou a não solução do problema, para buscar-se resolver
de maneira denitiva a situação. Não se importaria com o local para trata-
mento da questão, ou mesmo em saber quem efetivamente trabalhou para a
solução, o que interessaria é a consecução dos objetivos da Administração e o
atendimento às necessidades dos cidadãos. Mais do que isso, o autor destaca
a necessidade de se evitar os que chama de lacaios inexperientes e dispostos
a servir elmente a seus chefes.(82)
Nessa linha, após estudar com profundidade os sistemas burocráticos dos
Estados Unidos da América e do Reino Unido, Ackerman destaca o poder que
a estrutura de apoio ao Executivo desempenha nas democracias modernas.
Os órgãos da Administração Pública podem representar um grande trunfo
para que se consiga executar os programas de Governo ou, de outro lado,
um grande empecilho. As estruturas administrativas de poder, embora não
devidamente estudadas pelos constitucionalistas ou pelos administrativistas,
desempenham papel importante na vida política dos Estados. Muitos somente
se preocupam com a nomeação dos cargos de alta direção, mas de nada importa
alterar o comando de uma agência reguladora, ou mesmo de um determinado
órgão da Administração Pública, pois a máquina e a cultura do serviço público
têm vida e desejos próprios. Quantas boas ideias e projetos inovadores foram
propostos e acabaram por serem impedidos pela cultura obsoleta e arraigada
da Administração Pública?
Os servidores públicos, analisando o caso brasileiro, possuem caracterís-
ticas e prerrogativas próprias, desde a forma de ingresso, obrigatoriamente
por meio de concurso público, passando pela existência de carreiras próprias,
estruturadas de forma a garantir a progressão funcional e promoções, são dota-
dos de estabilidade no cargo, após a aprovação no estágio probatório, modelos
de seguridade e assistência pessoal próprios. Tais prerrogativas asseguram a
possibilidade de o servidor público desenvolver carreira na Administração ao
longo de uma vida, sendo comum, vários deles, permanecerem como servi-
dores até a sua aposentadoria.(83) Essas características reforçam a tese de que a
(81)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 36-38.
(82)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 78.
(83)  Arts. 37 a 41 da Constituição Federal do Brasil de 1988, Lei n. 8.112, de 11 de dezembro
de 1990.
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burocracia é dotada de contornos próprios, independentemente de quem esteja
à frente do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário. Destaque-se, ainda,
que este mesmo corpo burocrático perpassa todos os poderes, pois ao se falar
aqui em servidores públicos, conforme previsto constitucionalmente, refere-
-se a todos os cargos e empregos da Administração Pública, que suportam as
atividades dos Poderes do Estado brasileiro.
Ao estudar os modelos dos Estados Unidos da América e da Europa,
Ackerman faz duras críticas ao modelo americano, por sua extrema politização,
e elogios ao sistema britânico por conta da prossionalização e lealdade de
suas instituições. Considerando a importância da discussão para o presente
estudo, os próximos parágrafos aprofundar-se-ão sobre essas análises.
No caso dos Estados Unidos da América, que adota o sistema de
governo presidencialista, o Chefe do Executivo personica a gura do
mandatário maior da máquina administrativa. Importante destacar que o
presidente está investido como a autoridade máxima do poder Executivo;
que a Constituição americana adota a divisão clássica de três poderes:
Executivo, Legislativo e Judiciário; que, assim, a autoridade sob o poder
burocrático estaria totalmente sob a égide do Chefe do Executivo.(84) Dessa
forma, caso se considere a burocracia como um quarto ramo na divisão de
poderes, ela estaria subordinada ao Poder Executivo, fato que foi ignorado
quando da concepção clássica de Montesquieu. Não poderia ser diferente,
pois seria pouco provável, àquela época, imaginar-se que os Estados seriam
um dia transformados em Estados Burocráticos, suportados por centenas
de milhares de servidores públicos, divididos em uma complexa rede de
órgãos e entidades da Administração.
Como forma de deixar ainda mais claro o poder do Presidente americano
frente à burocracia, Ackerman explica:
Pero los académicos estadounidenses tienen más dicultades para identicar
otras amenazas al estado de derecho. Aunque una llamada telefónica del
presidente a un juez acerca de un caso pendiente se trata como un crimen
en contra de la Constitución, una llamada similar a un burócrata de nivel
medio se trata de modo más condescendiente. Los constitucionalistas tienen
dicultad para reconocer que el presidente, siendo el político más poderoso
en el país, sea una amenaza principal a la división de poderes cuando se
considera como una doctrina de la especialización funcional.(85)
(84)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 80.
(85)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 79.
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Ainda, no caso americano, percebe-se que os burocratas de alto nível têm
de relacionar-se fortemente com as forças políticas representadas no Congresso,
sendo constantemente acossados por políticos inuentes da oposição e da situa-
ção. Nesse momento depara-se com o dilema de que hoje determinado partido
está no poder e apoia o presidente eleito, mas amanhã, não necessariamente,
haverá a permanência do mesmo grupo político. Como então sobreviver a esses
ciclos de alternância de poder? A resposta encontrada é que a maior prioridade
de quem se encontra em cargos de alta administração será a sua manutenção
na sua função. Como consequência, o burocrata terá de promover permanen-
te articulação entre as diferentes forças representadas no mundo político, de
forma a auferir respaldo daqueles que tomam as decisões legislativas e que
direcionam os recursos orçamentários.(86) Ainda, nessa mesma linha de racio-
cínio, não só há de se assegurar a manutenção da posição, mas também há de
se garantir o respaldo para os projetos de governo que haja implementado, o
que faz surgir uma intensa preocupação com o processo sucessório dentro da
Administração Pública. Dessa forma, além de assegurar sua própria posição,
o membro do alto escalão deve preocupar-se em selecionar um grupo de pos-
síveis sucessores que defendam a mesma ideologia.(87)
Observa-se que a burocracia, antes relevada a segundo plano pelas obras
clássicas de separação de Poderes, mostra agora as suas garras ncadas nas
estruturas basilares do Estado. Ao conciliar as características da longevida-
de da prestação de serviço para a Administração, principalmente no que
diz respeito aos que se situam nos níveis operacionais e de média gerência,
junto com a visão de médio e longo prazo daqueles que exercem os cargos
de alta gerência, que além de desenvolverem estratégias de manutenção
de seu posto, dedicam energia constante para a formação de uma linha de
sucessão adequada a seus interesses, percebe-se o surgimento de mais um
poder do Estado, autônomo em relação aos demais poderes e de amplitude
de atuação antes inimaginável.
Como forma de oposição a este “novo poder”, o Executivo americano,
apoiado pelo Legislativo, tem, ano a ano, ampliado a possibilidade de indicação
e de nomeação de cargos de alto e médio escalão na Administração. Somente
para se ter claro o que isso signica, hoje esse número de indicações alcança
mais de 400 cargos(88), recaindo, essencialmente, sobre nomes que lhe oferecem
lealdade, pessoal e ao programa de governo do Presidente. Este é o requisito
(86)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 91.
(87)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 92.
(88)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 97.
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essencial para a indicação: comprometimento com os objetivos do Chefe do
Executivo, mesmo que isso signique relegar critérios técnico-gerenciais. Tal
posição é tão gritante, a transformação do servidor público em uma pessoa
com indicação política, que 28% dos servidores públicos acreditam que os
indicados possuem capacidade administrativa para estarem nos cargos. Pior
ainda, 55% dos indicados, segundo análise deles mesmos, não se consideram
aptos a desempenharem uma boa administração.(89)
Outra forma de tentar amenizar a resistência do Poder Burocrático dá-se
com a criação de agências executivas especiais, geralmente dotadas de super-
poderes e controladas exclusivamente por partidários de extrema conança
do Presidente. Dentre as responsabilidades dessas Agências encontram-se os
poderes de revisão e de scalização de todas as decisões tomadas pela máquina
administrativa, tenta-se justicar esses poderes pela busca da eciência adminis-
trativa, da transparência e da coordenação central da Administração Pública.(90)
O poder da burocracia cresce a cada dia na Administração Pública.
Deixar de estudá-lo, ou mesmo de dar-lhe a devida importância é um erro,
mais do que isso, não se pode deixar de ter clara a dinâmica de atuação e de
relacionamento desse Poder com os demais, principalmente o Executivo e o
Legislativo. Dessa forma, além de se buscar uma coalisão que garanta maioria
no Congresso, há de se desenvolver esforços para assumir o papel de liderança
dos servidores públicos, quer da administração direta, quer da administração
indireta. Por vezes, pode-se ter o poder de nomear os cargos de alta gerência,
mas eles, embora dotados de legalidade, não possuem legitimidade para con-
seguir o verdadeiro apoio e comprometimento necessários para se desenvolver
e implantar um projeto de Governo. O resultado, como se pode depreender
da análise do modelo americano, seria a existência de uma relação conituosa
que, certamente emperrará o andamento dos projetos de Governo, transfor-
mando-se o “Poder Burocrático” em verdadeiro campo de batalha ideológico
e altamente partidarizado.(91)
Assim, além de se considerar a possibilidade de “impasse” entre os
Poderes Executivo e Legislativo, que, como se viu até o momento, poderá tra-
zer problemas para a estrutura de Poderes norte-americana, tais como: culto à
(89)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 101.
(90)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar. Mé-
xico: FCE, 2007. p. 92-93.
(91)  Nesse sentido: “Cuando el poder legislativo está dividido entre el presidente y el congreso,
la administración pública se convierte en un campo de batalla entre burócratas atrincherados
ideológicamente y partidarios del presidente que luchan incesantemente por respaldo político”.
(ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar. México:
FCE, 2007. p. 95.)
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personalidade, crise de governabilidade e falta de autoridade plena, há se de
considerar o “impasse” entre o Executivo, o Legislativo e os Burocratas. Mais
do que isso, há de se acompanhar a relação dos burocratas com os demais
poderes, com os partidos e, até mesmo, com as forças sociais que inuenciam
as relações de poder.
De outro lado, ao se analisar a estrutura burocrática do Reino Unido,
encontra-se um modelo voltado para a prossionalização(92), culto à reputação
e a busca da chamada “eciência neutra”.(93) No sistema de governo parlamen-
tarista, a relação do Primeiro Ministro com o seu Gabinete e com a estrutura
burocrática tem outro horizonte temporal, voltada para a consecução de objeti-
vos de médio e de longo prazos, dissociadas das questões político-partidárias,
mais ainda da relação com a pessoa do Primeiro Ministro, deixando claro que
servirão ao Chefe de Governo e as suas metas, com a mesma dedicação e ener-
gia, como o zeram com o gestor que o antecedeu.(94) É certo que a neutralidade
política é uma utopia, mas, de outro lado, ao tempo em que os servidores de-
dicam-se a prossionalizar-se, tornando-se verdadeiros especialistas em sua
área de atuação, não podem deixar-se seduzir pelos encantos de uma ou outra
corrente política, eles sabem que a sua permanência na Administração Pública
será mais longeva do que a do Primeiro Ministro, e que, somente mantendo a
reputação técnica ilibada e garantindo uma distância dos meandres da políti-
ca, poderão consolidar-se na burocracia. Como consequência explícita desse
modelo de relacionamento entre o Poder Executivo e o Poder Burocrático, sob
o primado da especialização funcional(95), não se identica a necessidade de
indicação de grande quantidade de cargos de alta gerência; assim, ao contrário
do modelo americano que o Presidente nomeia mais de 400 cargos, o Primeiro
Ministro designa menos de uma centena.(96)
Todos ganharão com a especialização funcional daqueles que prestam
serviços para a Administração Pública, como ocorre no Reino Unido. A cria-
ção de um corpo de servidores públicos em que o conhecimento cientíco e
(92)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 89.
(93)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 90.
(94)  “Le serviré a usted y a sus metas, señor ministro, con la misma energía y devoción la cual
he tratado de cumplir con los objetivos de sus antecessores.” (ACKERMAN, Bruce. La nueva
división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar. México: FCE, 2007. p. 90.)
(95)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar. Mé-
xico: FCE, 2007. p. 75-79.
(96)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 97.
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a experiência funcional(97) transforma-se em característica fundamental para
assegurar a independência da Administração Pública, que deixará de ser in-
uenciada pelas articulações políticas do Executivo e do Legislativo. Ainda,
de se ressaltar que o Poder Burocrático perpassa a estrutura de todos os demais
Poderes do Estado, representando verdadeiro quarto ramo da “Santíssima
Trindade”(98) tradicional de separação de Poderes.
No estudo sobre o Poder Burocrático do Reino Unido, Ackerman, ao
mesmo tempo que elogia o modelo, faz duras críticas ao fato de a Europa estar
abandonando o modelo dos tribunais administrativos:
... Y uno de los grandes triunfos de la legalidad durante el siglo pasado
há sido el esfuerzo relativamente exitoso del Conseil d’État en Francia (y
después de la catástrofe nazi, por el Bundesverwaltungsgericht alemán tam-
bién) para proteger a los ciudadanos de los abusos del Estado. Cuando A. V.
Dicey advirtió anglosajón que se alejara del ejemplo europeo de tribunales
administrativos especiales en la década de 1880, tal vez no estaba muy claro
qué tan constructivamente responderían estos tribunales al problema del
poder burocrático. Un siglo después no hay excusa para que los abogados
estadounidenses sigan ignorando estos logros franco-alemanes. A pesar
de las ansiedades de Dicey, es el mundo anglosajón el que sigue sometido
a ideas monárquicas como la de “inmunidad soberana”, mientras que el
Conseil d’État francês hace mucho tiempo que se liberó de tales nociones
primitivas.(99)
Há a necessidade de se reconhecer que o Poder Burocrático não foi devida-
mente analisado quando da criação e da implementação da Teoria da Separação
de Poderes de Montesquieu. Certamente, como visto anteriormente, por não
se poder imaginar, àquela época, que um dia haveria um Estado Burocrático,
composto por centenas de milhares de membros. Mais do que isso, que se
torna premente construir uma nova doutrina de divisão de poderes para o
Estado Burocrático.(100) Nesse contexto, a possibilidade de se dotar o Poder
Burocrático de competência jurisdicional, por meio de um tribunal adminis-
trativo, apresenta-se como solução recomendável para institucionalizar-se a
(97)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 87.
(98)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 85.
(99)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 82.
(100)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 83.
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capacidade e a amplitude do poder daqueles que servem à Administração
Pública, mais ainda, para proteger os direitos do cidadão ante o poder do
Estado, assegurando uma decisão técnica especializada e minimizando as
interferências políticas e eleitorais.
Conclui-se que a solução seria unir as melhores práticas do modelo ame-
ricano, sistema de governo presidencialista, que possibilita a revisão judicial
dos atos da Administração Pública no que diz respeito à legalidade e à proces-
sualidade administrativas, e do modelo do Reino Unido, sistema de governo
parlamentarista, que reduz o poder da interferência dos aspectos políticos do
Executivo e do Legislativo sobre as decisões administrativas. Com esse mo-
delo que privilegie a formação de um corpo técnico especializado, dotado de
principiologia e de organicidade próprios, evitar-se-ia a politização do Poder
Burocrático e, por conseguinte a erosão do próprio Estado de Direito.(101) No
entanto, tal desiderato somente seria possível se houvesse uma releitura da
separação de Poderes, que deveria ser fruto de estudos pormenorizados dos
constitucionalistas e dos administrativistas. Mais importante ainda, a necessi-
dade de se rever o sistema de jurisdição, de forma a possibilitar a harmônica
convivência de órgãos de julgamento Judicial e Administrativo, ambos com a
nalidade de assegurar os direitos do cidadão ante o poder do Estado.
Superadas essas considerações, Ackerman propõe uma releitura da
separação de Poderes, em que alguns órgãos são responsáveis pelas funções
estatais e outros funcionam como controladores dos poderes do Estado(102),
o que chama de “Parlamentarismo Limitado”(103), fundado em uma Câmara
Democrática(104), no sistema de referendos sucessivos, na Corte Constitucional,
Tribunais Independentes, Poder Supervisor de Integridade e Poder Supervisor
de Regulação(105), que propõe as adaptações que se passa a analisar.
No Poder Legislativo, deixar-se-ia de contar com a gura de duas câ-
maras legislativas autônomas e simétricas para se adotar a solução “Câmara
e Meia”. Nesta solução haveria uma Câmara Federalista, similar aos mode-
los de câmara de representantes do povo existente em praticamente todas
as democracias modernas. Essa casa legislativa teria seus membros eleitos
(101)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 110.
(102)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 49-50 e 124-128.
(103)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 49-50 e 124-128.
(104)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 124.
(105)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 125.
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democraticamente pelo povo, a proposta não entra no mérito do modelo elei-
toral, mas tão somente da garantia de haver a efetiva representação popular,
e com mandato xo. Dentre suas competências estaria o poder de escolha
e de destituição do Chefe de Governo e do Gabinete, o processo legislativo
ordinário, diretamente relacionado com as questões do dia a dia necessárias
para governar. De outro lado, o Senado seria apenas uma Casa Consultiva(106),
cujos membros seriam eleitos sem a participação popular, dentre os membros
da Câmara Federalista ou indicados pelos governos estaduais. Os poderes
do legislativo seriam limitados por uma Constituição escrita e uma Corte
Constitucional. Ainda em relação ao Poder Legislativo, a proposta indica a
realização de referendos sucessivos, possibilitando a manifestação da po-
pulação de maneira direta e sequenciada sobre temas de maior relevância e
com perspectivas de médio e longo prazos.
No Poder Judiciário, haveria de apartar-se a Corte Constitucional(107), ór-
gão de ponta, cuja principal função congurar-se-ia no papel de guardião dos
direitos fundamentais e no poder de revisão judicial. Considerando, como se
verá mais à frente, a existência de um sistema de jurisdição dúplice, judicial e
administrativa, há a necessidade de uma Corte Superior, apartada dessas duas
estruturas, para promover a revisão das decisões dos tribunais administrativos
e dos tribunais judiciais, mais do que isso, para rever toda e qualquer decisão
dos demais poderes e órgãos de controle e de integridade que possam afetar
os direitos dos indivíduos. Destaque-se que essa Corte não estaria dentro da
estrutura de cada um dos demais poderes, portanto não há de se falar em uma
instância ou em mais uma possibilidade de recurso processual, mas estando
bem mais próximo do modelo da judicial review americano.
Talvez a diferença crucial do modelo proposto por Ackerman seja a cria-
ção das Instâncias de Controle, quais sejam: Democrática, de Integridade e
Regulatória.(108) A Instância de Controle seria o modelo proposto para fazer
frente ao nascimento e ao recrudescimento do Estado Burocrático, privilegiando
a especialização funcional e dando a real importância ao organismo vivo que é
a Administração Pública, antes considerada somente como o suporte funcional
do Poder Executivo. Esse novo ramo, da mesma forma que os demais poderes,
(106)  “...un senado federal débil...”. (ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução
de José Manuel Salazar. México: FCE, 2007. p. 59.)
(107)  BADAWI, Karina Bonei. Separação dos poderes no Brasil e a teoria de Bruce Ackerman. Tese
de doutorado apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direito
Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2014. p. 119. Dispo-
nível em: . Acesso em: 21.8.2018.
(108)  BADAWI, Karina Bonei. Separação dos poderes no Brasil e a teoria de Bruce Ackerman. Tese
de doutorado apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direito
Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2014. p. 43-45. Dis-
ponível em: . Acesso em: 21.8.2018.
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teria autonomia orçamentária e funcional. A Instância de Controle Democrático
teria por responsabilidade preparar, acompanhar e desenvolver o processo de
referendo/plebiscitos sucessivos, assegurando a legitimidade e a lisura dos plei-
tos.(109) A Instância de Controle de Integridade(110) estaria diretamente relacionada
ao combate incessante à corrupção e abusos perpetrados pela administração e por
seus membros, independentemente do ramo de Poder ao qual esteja vinculado.
Já no que diz respeito à Instância de Controle Regulatória, seria encarregada
de produzir as normas suplementares à legislação ordinária, que, por sua vez,
aumentaria a área de competência para normatizar as diversas situações do
cotidiano, deixando o Poder Legislativo voltado para questões mais complexas
e de médio e longo prazos. Além do poder de regulamentar as situações do
cotidiano, a Instância de Controle Regulatório teria por competência a scali-
zação do cumprimento de suas determinações, inclusive dotada de poder de
polícia, revelando a dimensão do juízo burocrático e disciplinar.(111) O modelo
assemelha-se à gura das Agências Reguladoras, só que as dotando de maior
legitimidade de atuação. Conclui Badawi, ao analisar o tema:
Aqui formar-se-ia um organismo técnico que prepararia a legisla-
ção emanada do órgão legislativo à execução. Seria uma espécie de
Direito Administrativo oriundo de um órgão eminentemente técnico
para a execução da lei.(112)
A proposta da criação da Instância de Controle oficializa o Poder
Burocrático que, na realidade, em vários países, inclusive no Brasil, tem se
mostrado por meio da criação de Órgãos e Entidades dotadas de grandes
poderes administrativos, principalmente no que diz respeito às competências
normativas e regulatórias, sem falar no poder de polícia. Ao alçar a burocracia
ao status de poder, Ackerman intenta reduzir as crises de governabilidade, a
politização da Administração Pública, dotando o Poder Burocrático de auto-
nomia e independência. Mais do que isso, privilegia a criação de um corpo
técnico, altamente qualicado, dotado de conhecimento cientíco, experiên-
cia prossional e, principalmente, desvinculado dos demais Poderes, o que
lhe garantiria independência no trato das questões públicas, dentro de uma
(109)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 115.
(110)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 84 e 125.
(111)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 87.
(112)  BADAWI, Karina Bonei. Separação dos poderes no Brasil e a teoria de Bruce Ackerman. Tese
de doutorado apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direito
Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2014. p. 44. Disponível
em: . Acesso em: 21.8.2018.
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visão de médio e longo prazos, não se preocupando com as próximas eleições.
Ressalvas à parte, o modelo assemelha-se às tentativas de criar-se, no Brasil, as
chamadas Carreiras de Estado, altamente qualicadas, submetidas a critérios
de acesso rigorosos e com boa remuneração, como é o caso das carreiras do
Tesouro Nacional, dos Tribunais de Contas, das Agências Reguladoras, sem
falar das carreiras técnicas do Judiciário, do Ministério Público e da Advocacia
Pública. O ponto fulcral que diferencia uma proposta da outra é o fato de essas
carreiras estarem dispersas em seus órgãos e em suas entidades, na proposta
de Ackerman todas elas estariam sob o mesmo ramo de Poder, dotadas de
autonomia administrativa, nanceira e principiológica.
Trazendo o debate para o cerne do presente estudo acerca da utilização
da esfera administrativa e extrajudicial para solução célere de conitos previ-
denciários, uma das resistências para se utilizar um Tribunal Administrativo
como foro para solução dos conitos previdenciários, repousa na garantia de
independência dos julgadores. Como garantir que uma estrutura dentro do
Executivo possa ter a liberdade de “julgar contra o seu patrão”? Não se irá tra-
tar do tema nesse momento do estudo, mas, certamente, a estratégia proposta
por Ackerman traria, caso implementada, efeitos estruturais importantes para
proporcionar a imparcialidade dos julgamentos.
Como se pôde analisar até o presente momento, o Parlamentarismo
Limitado propõe, em síntese, abandonar o modelo clássico de separação de
poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, para adotar um sistema com-
posto do Parlamento, da Corte Constitucional, da Justiça Distributiva e das
Instâncias de Controle: de integridade, de regulação e democrática, tudo isso
perpassado pela participação direta da população por meio de referendos
sucessivos(113). Nesta feita, o Executivo teria suas funções precípuas mantidas,
sendo que haveria a institucionalização do Poder Burocrático, representado
pelas Instâncias de Controle; o Legislativo teria parte de suas funções também
divididas com a Instância de Controle de Regulação; o Judiciário teria apartada
a Corte Constitucional e conviveria com o sistema de jurisdição dúplice, pois,
dentro das Instâncias de Controle, principalmente no que diz respeito às de
Integridade e de Regulação, haveria a jurisdição administrativa; outro ponto
que também merece destaque, no que diz respeito à situação brasileira, seria
o fato de o ramo Eleitoral do Poder Judiciário, passar a integrar a Instância de
Controle Democrática.
Badawi, ao elaborar uma proposta de Emenda Constitucional para imple-
mentar o modelo do Parlamentarismo Limitado ao Brasil, assim estabeleceu a
estrutura de Poderes da União:
(113)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007. p. 124-125.
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Conflitos Previdenciários: Medidas Extrajudicias e Administrativas
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Art. __ Integra a estrutura de Poderes da União, o Parlamento, o Referendo, a
Corte Constitucional, os Centros de Integridade, de Regulação e Democrático.
I — O Parlamento, composto por uma Câmara Federal e um Conselho Federal;
II — O Referendo, como expressão da vontade popular;
III — A Corte Constitucional, para guarda desta Constituição;
IV — Os Centros de Integridade, de Regulação e Democrático, como órgãos de
controle.(114)
Ao Parlamento caberia o exercício das funções hoje destinadas ao
Executivo e ao Legislativo; a democracia direta estaria representada pela colo-
cação do Referendo como um próprio Poder do Estado, a Corte Constitucional
estaria claramente apartada como Poder autônomo e independente, a Instância
de Controle seria representada pelos Centros de Integridade, de Regulação e
Democrático. No artigo transcrito, que estabelece a estrutura de Poderes da
União, não se apresenta clara a permanência ou não dos Poderes Executivo e
Judiciário, mas ao longo da proposta a autora esclarece o papel, as competências
e as responsabilidades do Governo Central(115), e da Organização Judiciária(116),
em que inclui os tribunais e os juízes administrativos, que se poderia considerar
como Executivo e Judiciário, respectivamente.
1.1.3. O equilíbrio dos Poderes do Estado
Viram-se os conceitos clássicos(117)(118) do princípio da separação de Poderes,
passando pela aplicação do modelo ao sistema de governo presidencialista
(114)  BADAWI, Karina Bonei. Separação dos poderes no Brasil e a teoria de Bruce Ackerman. Tese
de doutorado apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direito
Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2014. p. 123. Dispo-
nível em: . Acesso em: 21.8.2018.
(115)  BADAWI, Karina Bonei. Separação dos poderes no Brasil e a teoria de Bruce Ackerman. Tese
de doutorado apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direito
Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2014. p. 126-128.
Disponível em: . Acesso em: 21.8.2018, 2007.
(116)  BADAWI, Karina Bonei. Separação dos poderes no Brasil e a teoria de Bruce Ackerman. Tese
de doutorado apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direito
Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2014. p. 131-132.
Disponível em: . Acesso em: 21.8.2018.
(117)  ARISTÓTELES. A política. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
(118)  MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Apre-
sentação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina Muruchco. São Paulo: Martins Fontes,
1996 (Paideia).
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americano(119), até se chegar à revisão do princípio com a proposta de inclusão de
outros Poderes, com a alteração da dinâmica de funcionamento e de interação
entre eles.(120) O ponto comum nesses estudos diz respeito aos problemas de
suas implementações, que mostram, na prática, a ausência de equilíbrio entre
cada um dos poderes. Nesse sentido:
Entretanto, como é ressabido, nunca houve uma separação absoluta,
ainda que tivesse havido, nos primórdios, tal pretensão. Portanto, a
ideia do equilíbrio dos poderes e as motivações que lhe deram causa
também são pontos preliminares importantes a serem apresentados.
No Brasil, a prática da separação de poderes nunca teve muito espaço
para a sua plena concretização. E, na atual fase histórica, em especial
no Brasil, mas, igualmente, no mundo todo, há sempre diculdade de
atuação dos poderes, quando ocorre a invasão recíproca das esferas
de competência.(121)
É uníssono, em todos os pontos estudados até o presente momento, que
a separação de Poderes é essencial para o Estado Democrático de Direito,
principalmente no que diz respeito à garantia dos direitos fundamentais. Além
disso, a doutrina ressalta a necessidade de uma convivência harmônica e in-
dependentemente dos poderes e o sistema de check and balances como formas
de evitar as usurpações recíprocas. Mas, o que se tem visto, na prática, é que
as interferências de um Poder em outro têm sido cada vez mais constantes.
Analisando o caso brasileiro, a situação é ainda mais gritante. A cada dia
mais o Parlamento ca à mercê das pautas ditadas pelo Executivo, quer por
meio da edição de medidas provisórias, quer por projetos de lei; o Presidente
sempre refém da compra de apoio para construir uma base congressual para
fugir de processos que poderiam redundar em seu impeachment; o Judiciário
vem sendo instado a cobrir as lacunas legislativas, dando margem a um ati-
vismo(122) preocupante, sem falar no fato de alguns membros do Parlamento
que têm judicializado questões internas do processo legislativo e na própria
judicialização do processo eleitoral dos últimos tempos.
(119) HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. Tradução de Hilto-
mar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003.
(120)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007.
(121)  RIBEIRO, Diógenes V. Hassan. A revisão do princípio da separação de poderes: por uma
teoria da comunicação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 49.
(122)  Nesse sentido “Ao se fazer menção ao ativismos judicial, o que se está a referir é a ultra-
passagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional, em detrimento principalmente da
função legislativa, mas também da função administrativa e, até mesmo, da função de governo”.
(RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2015. p. 119.)
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Nesse cenário conturbado, acaba-se por paralisar o pleno funcionamento
de cada um dos Poderes, que têm suas competências primárias abandonadas
para ter de lidar com a necessidade de regularem-se uns aos outros. O Executivo
e o Legislativo absorvidos por disputas inndáveis de Poder Político e o
Judiciário abarrotado de processos tendo de modicar suas pautas por conta
da judicialização das questões políticas. Quem perde com isso? Somente o povo
brasileiro que assiste apático ao desintegrar de suas instituições fundamentais,
que vê o Estado parado, que tem suas garantias individuais esvaindo-se no
meio da burocracia.
Os modelos clássicos de separação de Poderes carecem de força para re-
solver as questões atuais, de outro lado, uma revisão estrutural como proposta
por Ackerman(123), demandaria alterações constitucionais profundas, pratica-
mente a criação de um novo Estado. Talvez a virtude esteja no meio, na busca
de mecanismos que permitam o realinhamento dos Poderes, quem sabe por
meio da releitura do princípio da separação de Poderes e da inafastabilidade de
acesso à jurisdição, de adequação do sistema de jurisdição e da legitimação de
outras formas de prevenção e de pacicação de conitos, poder-se-ia alcançar
o almejado equilíbrio entre os Poderes.
1.2. A função jurisdicional
Após a análise dos modelos de aplicação do princípio da separação de
Poderes, faz-se necessário entender como se dá o processo de prestação ju-
risdicional, como se deve conceituar a jurisdição, assim como vericar como
essa função do Estado mostrou-se ao longo da história. Por jurisdição há de
se entender a função do Estado de armar e de garantir a vontade da lei, de
forma a torná-la efetiva e ecaz, de aplicá-la ao caso concreto, essa função será
exercida por meio da atividade de um órgão público do Estado. Nesse sentido:
A jurisdição é considerada como poder, no plano da soberania
estatal, como função nos limites das atribuições que lhe cabem aos
órgãos estatais encarregados de promover o direito objetivo, e como
atividade, no âmbito do processo.(124)
Veja-se que não se atribui exclusividade à prestação jurisdicional, classi-
cando-a como uma função do Estado e não de um Poder especíco. Como
se verá adiante, a construção de exclusividade da prestação jurisdicional pelo
(123)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007.
(124)  KAZUO, Watanabe. Controle jurisdicional: princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional no sistema jurídico brasileiro e mandado de segurança contra atos judiciais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 22.
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Poder Judiciário será um conceito desenvolvido ao longo da história, não es-
tando presente nos modelos clássicos da teoria da separação de Poderes nem
da conceituação de jurisdição.
Watanabe, em seu estudo sobre os sistemas de jurisdição, ao referir-se
ao sistema de jurisdição dúplice, remonta aos ensinamentos de Duguit sobre
Montesquieu e a separação de poderes:
Tal concepção está inspirada “particularmente na doutrina de
Montesquieu, a qual segundo a justa observação de Duguit, não
tinha em vista o Judiciário como poder com função exclusiva ao
julgamento das controvérsias em que a Administração fosse inte-
ressada. O sábio publicista francês tratava do Poder Judiciário como
‘o poder executivo das coisas dependentes do direito civil”, e pelo
qual o “príncipe pune os crimes ou julga as questões entre os parti-
culares”, donde é de inferir que não antevira a utilidade de fazê-lo
órgão de equilíbrio de toda a vida jurídica, ainda quando turbada
pelos próprios elementos do Estado ou achara inconveniente dar-lhe
tal amplitude de atribuições.(125)
Veja-se que a possibilidade de o Poder Judiciário analisar, alterar e julgar
os atos de outro Poder seria encarada como uma usurpação de competência,
signicando verdadeira interferência de um Poder em outro, o que não se
poderia permitir, sob pena de se atribuir ascendência do Judiciário sobre os
demais Poderes. Essa é a base da construção do sistema de jurisdição dúplice,
ou contencioso administrativo, modelo típico francês. Tal modelo organiza
estrutura de jurisdição administrativa, os contenciosos administrativos, que
seria responsável por solucionar as controvérsias decorrentes do exercício das
atividades administrativas, típicas do Poder Executivo. Sem falar que o sistema
de jurisdição dúplice valoriza a independência entre os Poderes e alça o Poder
Burocrático a seu real papel de especialização funcional.(126) Em sentido inverso
ao sistema francês, o sistema anglo-americano atribui toda a função jurisdicional,
independentemente da natureza da lide, ao Poder Judiciário, o chamado sistema
de jurisdição una, no qual o Judiciário desempenha o papel de tutor dos direitos
e garantias fundamentais.(127) Este é o sistema atualmente utilizado pelo Brasil.
Assim, em uma senda existe o chamado sistema da jurisdição dúplice, em
que convivem, lado a lado, a jurisdição comum, exercida pelo Poder Judiciário,
(125)  KAZUO, Watanabe. Controle jurisdicional: princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional no sistema jurídico brasileiro e mandado de segurança contra atos judiciais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 24.
(126)  Nesse sentido, atente-se para a proposta de nova divisão de Poderes, de Ackerman,
analisado no item 1.1.2.3 deste estudo.
(127)  Nesse sentido, atente-se para a proposta de nova divisão de Poderes, de Ackerman,
analisado no item 1.1.2.3 deste estudo.
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e a jurisdição administrativa, contencioso administrativo, em que são resolvidas
as controvérsias originadas por atos da atividade da Administração, em regra,
atos do Poder Executivo. Tal sistema de jurisdição assenta-se na interpretação
rígida do princípio da separação de Poderes, que entende como inadmissível
que o Poder Judiciário possa se imiscuir nos atos de outros Poderes, sem violar
frontalmente a independência de cada um deles.
O Brasil, durante a Colônia e o Império utilizou o sistema de jurisdição dú-
plice, em que o Conselho de Estado, previsto constitucionalmente para apoiar
o Poder Moderador, congurava-se em verdadeiro tribunal administrativo
para resolver as questões ligadas diretamente aos atos do Poder Executivo,
permanecendo assim até o advento da Constituição Republicana de 1891, na
qual se adotou o sistema oposto da jurisdição una, embora o princípio da
apreciação judiciária não estivesse explicitado na Carta.
Somente na Constituição de 1946 que o princípio da inafastabilidade da
jurisdição alcançou perl constitucional. As formulações doutrinárias iniciais
sobre o tema detiveram-se, principalmente, em explicitar o alcance do pre-
ceito constitucional. A expressão lesão de direito individual, presente no
parágrafo quarto do art. 141 da Constituição de 1946, colocou em pauta uma
possível limitação dos temas que seriam inafastáveis à apreciação do Poder
Judiciário. Não obstante, a posição majoritária estabeleceu-se no sentido de
que a intenção do legislador constituinte foi a de considerar a lesão de direito
em sentido lato e que a expressão ‘individual’ deveria ser interpretada como
indivíduo, como a pessoa.(128)(129)
(128)  Seabra Fagundes: “Advirta-se que o texto constitucional alude a ‘lesão de direito
individual’, porém não no sentido estrito de direitos do indivíduo contra o Estado (direitos
individuais, liberdades públicas, da terminologia usual), ou seja, de direitos públicos subjetivos
do indivíduo. O que nele se teve em mira, foi a lesão do direito em sentido lato, e a palavra
individual signica, no texto, do indivíduo, da pessoa, de qualquer indivíduo ou pessoa’. E
acrescenta: ‘É o que se infere dos debates, na fase de comissão, quando reunida a Assembleia
Constituinte (apud DUARTE, José. A Constituição Brasileira de 1946. 1947. v. III, p. 16-21). Do
contrário, o dispositivo ao invés de garantia, se havia de traduzir em restrição, pois somente
os direitos em que o Estado gurasse como sujeito passivo estariam a salvo da supressão do
controle jurisdicional. Os demais, os direitos em que sujeitos ativo e passivo fossem pessoas
privadas, esses, sempre que o Poder Legislativo Federal o quisesse, passariam a ser objeto, em
casos de controvérsia, de soluções meramente administrativas’ (RF 173/109, trab. cit. n. 8). Ada
Pellegrini Grinover, acolhendo essa interpretação, anota: ‘É por isso que os constitucionalistas
apontam o art. 105 da Constituição de Weimar (‘Ninguém poderá ser subtraído do seu juízo
legal’) como antecedente do dispositivo pátrio’ (op. cit., § 50 e nota n. 65, p. 154). No mesmo
sentido COSTA, Moacyr Lobo da. A reforma do mandado de segurança, 1968, Associação Comercial
de S. Paulo, Conselho Jurídico, p. 23 e 24. Cf. Também, MARQUES, Frederico. A reforma do poder
judiciário. São Paulo: Saraiva, 1979. v. 1º, § 224, p. 413 e 414”. (Apud KAZUO, Watanabe. Controle
jurisdicional: princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional no sistema jurídico brasileiro
e mandado de segurança contra atos judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 38.)
(129)  “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de di-
reito individual” art. 141, § 4º, da Constituição Federal do Brasil de 1946. Disponível em:
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Neste momento, inicia-se a sistematização dos princípios constitucionais
que erigirão o Poder Judiciário ao papel de detentor exclusivo do poder da
prestação jurisdicional. A associação de princípios como o Direito de Ação, o
Devido Processo Legal, o Contraditório e Ampla Defesa, o Juiz Natural e os
remédios constitucionais como o Mandado de Segurança e o Habeas Corpus,
todos previstos no Capítulo II: Dos Direitos e das Garantias Individuais, da
Constituição Federal de 1946, começaram a ser analisados de maneira inte-
grada e superposta como que para construir os alicerces principiológicos do
Poder Judiciário.
1.3. A aplicação do princípio da inafastabilidade e a jurisdição compartilhada
no direito brasileiro
Como se viu, durante o curso do presente estudo, o princípio da separação
de Poderes tornou-se um verdadeiro dogma mundial, tendo dentre os poucos
dissidentes o professor da Yale, Bruce Ackerman(130), que merece uma atuali-
zação do modelo clássico aos tempos modernos. Ao lado disso, o monopólio
da jurisdição una, no qual somente o Judiciário é o responsável pela prestação
jurisdicional, também domina a doutrina mundial, salvo alguns raros exemplos
europeus, como é o caso da França. Especicamente no caso brasileiro, alia-se a
essas duas teses dominantes o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que
garante levar ao Judiciário qualquer ameaça ou lesão do direito. A proposta
deste tópico é analisar se esse princípio também merece uma releitura, de
forma a melhor acoplar-se à realidade nacional e a combater o que se chama
de “judicialização do cotidiano”.(131)
Para o ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da inafastabilidade
da jurisdição nem sempre foi uma tese pacíca. Ao longo de sua história,
principalmente durante a Colônia, o Império e a Ditadura Militar, o postulado
oscilou entre a dúplice jurisdição e a limitação do direito de ação para matérias
especícas.
Nesse sentido:
a) Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926, que alterou os arts. 59 e 60,
prevendo, no § 5º que: “Nenhum recurso judiciário é permitido, para a justiça
. Acesso em:
17.7.2018.
(130)  ACKERMAN, Bruce. La nueva división de poderes. Tradução de José Manuel Salazar.
México: FCE, 2007.
(131)  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O direito à tutela jurisdicional: o novo enfoque do
art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. In: LEITE, George Salomão; STRECK, Lenio; NERY
JUNIOR, Nelson (coords.). Crise dos poderes da República: judiciário, legislativo e executivo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 73.
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Conflitos Previdenciários: Medidas Extrajudicias e Administrativas
53
federal ou local, contra a intervenção nos Estados, a declaração do estado de sítio
e a vericação de poderes, o reconhecimento, a posse, a legitimidade e a perda de
mandato dos membros do Poder Legislativo ou Executivo, federal ou estadual;
assim como, na vigência do estado de sítio, não poderão os tribunaes conhecer
dos actos praticados em virtude dele pelo Poder Legislativo ou Executivo”;(132)
b) Decreto n. 19.398, de 11 de novembro de 1930, que em seu art. 5º estabeleceu:
“Ficam suspensas as garantias constitucionais e excluída da apreciação judicial
dos atos do Governo Provisório ou dos interventores federais, praticados na
conformidade da presente lei ou de suas modicações ulteriores”;(133)
c) A Constituição de 1934, em seu art. 68, estabeleceu que: “É vedado ao Poder
Judiciário conhecer de questões exclusivamente políticas”, e no art. 18, das
Disposições Transitórias: “Ficam aprovados os atos do Governo Provisório,
dos interventores federais nos Estados e mais delegados do mesmo Governo, e
excluída qualquer apreciação judiciária dos mesmos atos e dos seus efeitos”;(134)
d) A Constituição de 1937, em seu art. 94, estatuiu: “É vedado ao Poder Judiciário
conhecer de questões exclusivamente políticas”, no parágrafo único do art. 96:
“No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do
Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção da
defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República
submetê-la novamente ao exame do Parlamento se este a conrmar por dois terços
de votos em cada uma das Câmaras, cará sem efeito a decisão do Tribunal”,
ainda, no seu art. 170: “Durante o estado de emergência ou o estado de guerra, dos
atos praticados em virtude deles não poderão conhecer os Juízes e Tribunais”;(135)
e) O Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, Decreto-Lei n. 1.713/39,
estabelecia: “Art. 223. O funcionário só poderá recorrer ao Poder Judiciário depois
de esgotados todos os recursos da esfera administrativa, ou após a expiração do
prazo a que se refere o § 1º do art. 221”;(136)
(132)  Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926. Disponível em:
leg.br/legin/fed/emecon_sn/1920-1929/emendaconstitucional-37426-3-setembro-1926-564078-pu-
blicacaooriginal-88097-pl.html>. Acesso em: 18.7.2018.
(133)  Decreto n. 19.393, de 11 de novembro de 1930. Disponível em:
leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19398-11-novembro-1930-517605-publicacaooriginal-
1-pe.html>. Acesso em: 17.7.2018.
(134)  Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934. Dis-
ponível em: . Acesso
em: 18.7.2018.
(135)  Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937. Disponível em:
. Acesso em: 18.7.2018.
(136)  Decreto-Lei n. 1.713, de 28 de outubro de 1939. Disponível em:
leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-1713-28-outubro-1939-411639-publicacaooriginal-
1-pe.html>. Acesso em: 31.8.2018.
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54
Washington Luís Batista Barbosa
f) Durante a Ditadura Militar, por meio dos Atos Institucionais, também houve
limitações ao princípio da inafastabilidade do judiciário. O Ato de n. 1, art. 7º, § 4º,
previu: “Art. 7º Ficam suspensas, por 6 (seis) meses, as garantias constitucionais
ou legais de vitaliciedade e estabilidade. [...] § 4º O controle jurisdicional desses
atos limitar-se-á ao exame de formalidades extrínsecas, vedada a apreciação
dos fatos que o motivaram, bem com a sua conveniência ou oportunidade”.(137)
No Ato Institucional 2, art. 19: “Art. 19. Ficam excluídos da apreciação judicial:
I — os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução e pelo Governo
Federal, com fundamento no Ato Institucional de 9 de abril de 1964, no presen-
te Ato Institucional e nos atos complementares deste; II — as resoluções das
Assembleias Legislativas e Câmara de Vereadores, a partir de 31 de março de
1964, até a promulgação deste Ato”.(138) No Ato Institucional 3, art. 6º: “Art. 6º
Ficam excluídos de apreciação judicial os atos praticados com fundamento no
presente Ato institucional e nos atos complementares dele”(139), nalmente, no
Ato Institucional n. 5, art. 11: “Art. 11. Excluem-se de qualquer apreciação judi-
cial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos
Complementares, bem como os respectivos efeitos”;(140)
g) A Lei n. 5.316/67, que integrou o seguro de acidentes do trabalho na previdência
social, alterada pelo Decreto-Lei n. 893/69, determinava: “Art. 15. O acidentado,
seus beneciários, a empresa ou qualquer outra pessoa poderão, diretamente
ou por intermédio de advogado, depois de esgotada a via recursal da previdên-
cia social, mover ação contra a previdência social, para reclamação de direitos
decorrentes desta Lei”, ainda, para não pairarem dúvidas da necessidade do
exaurimento da via administrativa: “§ 2º A prova da decisão nal da previdência
social é peça essencial para instauração do procedimento judicial de que trata
este artigo”.(141) O tema foi bastante discutido no âmbito judicial, inclusive com
edição do Enunciado n. 552 do STF: “Com a regulamentação do art. 15 da Lei
n. 5.316/67, pelo Decreto n. 71.037/72, tornou-se exequível a exigência da exaustão
da via administrativa antes do início da ação de acidente de trabalho”;(142)
h) A Constituição, por meio da Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de
1969, no Título V, Disposições Gerais e Transitórias, em seu art. 181, estabeleceu:
(137)  Ato Institucional n. 1, de 9 de abril de 1964. Disponível em:
br/ccivil_03/ait/ait-01-64.htm>. Acesso em: 18.7.2018.
(138)  Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965. Disponível em:
gov.br/ccivil_03/ait/ait-02-65.htm>. Acesso em: 18.7.2018.
(139)  Ato Institucional n. 3, de 5 de fevereiro de 1966. Disponível em:
gov.br/ccivil_03/AIT/ait-03-66.htm>. Acesso em: 18.7.2018.
(140)  Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968. Disponível em:
gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm>. Acesso em: 18.7.2018.
(141)  Decreto-Lei n. 893, de 26 de setembro de 1969, que alterou a Lei n. 5.319, de 14 de
setembro de 1967. Disponível em:
decreto-lei-893-69>. Acesso em: 31.8.2018.
(142)  Súmula n. 552 do Supremo Tribunal Federal. Disponível em:
portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=1610>. Acesso em: 31.8.2018.
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Conflitos Previdenciários: Medidas Extrajudicias e Administrativas
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Art. 181. Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticados
pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como:
I — os atos do Governo Federal, com base nos Atos Institucionais e nos Atos
Complementares e seus efeitos, bem como todos os atos dos Ministros Militares
e seus efeitos, quando no exercício temporário da Presidência da República,
com base no Ato Institucional n. 12, de 31 de agosto de 1969; II — as resolu-
ções, fundadas em Atos Institucionais, das Assembleias Legislativas e Câmaras
Municipais que hajam cassado mandatos eletivos ou declarado o impedimento
de governadores, deputados, prefeitos e vereadores quando no exercício dos
referidos cargos; e III — os atos de natureza legislativa expedidos com base nos
Atos Institucionais e Complementares indicados no item I”;
i) A Emenda Constitucional n. 7, de 13 de abril de 1977, reinstituiu a possibilidade
de soluções de controvérsias pela via administrativa no Brasil, quando, no art. 111
estabeleceu: “Art. 111. A lei poderá criar contencioso administrativo e atribuir-lhe
competência para o julgamento das causas mencionadas no artigo anterior (art.
153, § 4º)”. O § 4º deste artigo previa: “§ 4º A lei não poderá excluir da apreciação
do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. O ingresso em juízo
poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas,
desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento
e oitenta dias para a decisão sobre o pedido”. Finalmente, no art. 203: “Art. 203.
Poderão ser criados contenciosos administrativos, federais e estaduais, sem po-
der jurisdicional, para a decisão de questões scais e previdenciárias, inclusive
relativas a acidentes de trabalho (art. 153, § 4º)”;(143)(144) e
j) A Constituição de 1988, no art. 5º, prevê: “XXXV — a lei não excluirá da apre-
ciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.(145)
O retrospecto histórico fez-se importante para claricar que o tema, ao
contrário de outros aspectos da história nacional, passou por várias alterações
ao longo do tempo, oscilando entre posições mais rígidas no sentindo de se
exigir o exaurimento da instância administrativa, ou, até mesmo, de atribuir o
poder para a instância administrativa de dar a palavra nal no assunto; para
se chegar à Constituição de 1988 que somente colocou ressalva expressa de
acesso ao Poder Judiciário para o ajuizamento de dissídio coletivo perante
(143)  Emenda Constitucional n. 7, de 13 de abril de 1977. Disponível em:
gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc_anterior1988/emc07-77.htm>. Acesso em: 18.7.2018.
(144)  Observa Elyesley Silva que a EC n. 7/1977 introduziu no sistema jurídico pátrio algumas
regras do contencioso administrativo que, no entanto, nunca chegaram a ser aplicadas. SILVA,
Elyesley. Curso de direito administrativo. Niterói: Impetus, 2017. p. 21.
(145)  Constituição Federal de 1988, art. 5º, inciso XXXV. Disponível em:
gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 18.7.2018.
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Washington Luís Batista Barbosa
a Justiça do Trabalho(146) e para ações relativas à disciplina e às competições
desportivas.(147) Nesse sentido:
A consequência da mudança do texto na passagem de uma ordem
constitucional para outra, bem como do momento político de rea-
rmação e maximização dos valores democráticos, foi a gradual
difusão do entendimento de que seria absolutamente prescindível
obter uma negativa da Administração para caracterização do inte-
resse processual.(148)
De fato, a Constituição Federal de 1988 marca o nal da transição do re-
gime ditatorial militar para a denitiva implantação do regime democrático
no Estado Brasileiro. Mais do que normal a busca de assegurar a maior am-
plitude possível de direitos fundamentais, onde, o acesso ao Poder Judiciário
transformou-se em verdadeira panaceia de proteção contra os desmandos do
Estado. Ao sair de um regime no qual as liberdades individuais foram cercea-
das drasticamente, foi mais do que compreensível o direcionamento de retirar
do texto constitucional toda e qualquer condição de acesso que pudesse vir a
ser interpretada como uma restrição ao poder do indivíduo, ao mesmo tem-
po, foram garantidos remédios constitucionais para salvaguardar os direitos
fundamentais.(149)
No que diz respeito às controvérsias previdenciárias, objeto do presente
estudo, existe decisão do Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão
geral, acerca da necessidade de prévio requerimento administrativo para
a Autarquia Previdenciária como pressuposto processual para acesso ao
Judiciário.(150) Na ocasião do julgamento, que estabeleceu obrigatoriedade
(146)  Art. 114, § 2º, da Constituição de 1998: “Art. 114. [...] § 2º Recusando-se qualquer das
partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar
dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conito, res-
peitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas
anteriormente.
(147)  Art. 217, § 1º, da Constituição de 1988: “Art. 217. [...] § 1º O Poder Judiciário só admitirá
ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da
justiça desportiva, regulada em lei.
(148)  FORTI, Iorio Siqueira D’Alessandri. Acesso desnecessário ao poder judiciário como óbice ao
acesso à justiça: a (im)prescindibilidade do prévio requerimento em face da administração para
caracterização do interesse processual de agir na visão dos tribunais superiores. Dissertação
de Mestrado, disponível na biblioteca da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2011. p. 102.
(149)  Nesse sentido o mandado de segurança, o mandado de injunção, o habeas data, o habeas
corpus, a ação civil pública e a ação popular, sem falar nos princípios ao devido processo legal
e ao amplo contraditório e o próprio princípio da inafastabilidade do Judiciário.
(150)  Recurso Extraordinário n. 631.240-MG, julgado em 3.9.2014, divulgado no DJE 7.11.2014,
publicado em 10.11.2014. Disponível em: -
docTP=TP&docID=7168938>. Acesso em: 1º.9.2018.
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Conflitos Previdenciários: Medidas Extrajudicias e Administrativas
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da apreciação prévia, pelo INSS, do requerimento do interessado, o debate
centrou-se na possibilidade de a legislação infraconstitucional estabelecer
condições de acesso ao Poder Judiciário, assim como acerca da necessidade
de exaurimento da via administrativa antes do ajuizamento da ação. A Corte
Constitucional perdeu a oportunidade de promover interpretação conforme
ao art. 5º, XXXV, de forma a abandonar a interpretação exacerbada que se
imputa ao dispositivo, na linha de se permitir a utilização do Judiciário como
primeiro recurso para a solução de controvérsia, ao contrário de considerá-lo
como o last resource, como sugere Mancuso.(151)
Durante a votação, o Ministro Luiz Fux defendeu a releitura do art.
5º, XXV, da CF/88, indicando que o melhor lugar para se resolver os litígios
em matéria previdenciária seria o próprio INSS, que a atuação jurisdicional
deveria ser considerada como medida excepcional e não a regra, que em
outras situações, como no caso do mandado de segurança, a legislação in-
fraconstitucional exige o preenchimento de pressupostos para o ajuizamento
da ação e que isso não se conguraria violação ao princípio da inafastabili-
dade de jurisdição(152); o Ministro Teori Zawascki reforçou o entendimento
(151)  “... (iv) a (equivocada), ou ao menos exagerada visualização do acesso à Justiça como
manifestação da cidadania, quando, antes e superiormente, como tal caberia qualicar-se a
postura de prevenir ou resolver conitos entre os próprios interessados, por outros meios e
modos, fora e além da estrutura judiciária estatal, ncando esta última realocada como um last
resource.” (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O direito à tutela jurisdicional: o novo enfoque
do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. In: LEITE, George Salomão; STRECK, Lenio; NERY
JUNIOR, Nelson (coords.). Crise dos poderes da República: judiciário, legislativo e executivo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 73.)
(152)  “Porque o acesso à Justiça não é o melhor meio de composição dos litígios, o melhor
meio de composição dos litígios é resolver lá no INSS, porque isso otimiza o relacionamento
social. Eu não sei, depende da visão de cada um. Mas eu acho mais difícil contratar um advo-
gado, ingressar em juízo, do que se dirigir ao INSS e obter essa providência” (...) “Por outro
lado, exigir a atuação administrativa enquanto ela pende, não permitir o acesso em juízo, já
era uma tese defendida há muito pelo professor Celso Agrícola Barbi, ao responder à constitu-
cionalidade daquela regra do mandado de segurança, que não cabia o ingresso judiciário se o
mandado de segurança fosse dirigido contra um ato passível de recurso sem efeito suspensivo
e sem exigência de caução. Ou seja, qual é o interesse de ingressar em juízo se não tem prejuízo
nenhum? O efeito do ato administrativo cava suspenso, poderia recorrer administrativamente,
sem prestar nenhuma caução. Então, isso já é um problema antigo em que não há nenhuma
violação, no meu modo de ver, ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Como, aqui, foram
utilizados argumentos também interdisciplinares, no meu modo de ver, essa tese, pelo menos
ad futurum, ela esvazia sobremodo o volume de ações no Judiciário, e isso acaba favorecendo
o jurisdicionado, porque, hoje, quando a Constituição estipula como direito fundamental a
duração razoável dos processos, ela também quer que haja espaço para outros processos po-
derem ingressar em juízo. Então, aqui, eu peguei um dado, por exemplo, estatístico, que é um
dado convincente, no sentido, basicamente — não vou nem ler números —, nós, que zemos
direito, fugimos dessa matemática”. Trechos da manifestação do Ministro Luiz Fux, durante o
julgamento do RE 631.240-MG, julgado em 3.9.2014, divulgado no DJE 7.11.2014, publicado em
10.11.2014. Disponível em: -
cID=7168938>. Acesso em: 1º.9.2018.
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Washington Luís Batista Barbosa
de que o estabelecimento de condições da ação, entre as quais o interesse de
agir, não viola a Constituição, congurando-se, ao contrário, como requisito
natural e próprio da garantia constitucional de acesso ao Judiciário(153); o
Ministro Gilmar Mendes sustentou a necessidade de releitura do princípio
da inafastabilidade da jurisdição, sob pena de a lei infraconstitucional vir
a ser impedida de disciplinar as condições para o ajuizamento de ações, o
que poderia redundar com a declaração de inconstitucionalidade do Código
de Processo Civil, que as estabelece.(154) Muito embora o debate tenha sido
intenso para promover uma adequação na carga de signicação do princípio
da inafastabilidade do Judiciário, a decisão nal do STF acabou por se limitar
a armar a necessidade de prévio requerimento ao INSS para o acionamen-
to do Judiciário, sem, contudo, isso se confundir com a obrigatoriedade do
exaurimento da via administrativa.
Em uma linha de argumentação semelhante, em agosto de 2018, o Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária(155), deferiu parcialmente a cautelar para
dar interpretação conforme a Constituição Federal, relativamente ao art. 625-D
da CLT, para afastar a obrigatoriedade de submissão da demanda trabalhista
à comissão de conciliação prévia.
Durante a sessão de julgamento, o debate centrou-se na avaliação da
garantia do direito de acesso à justiça, art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.
(153)  “Nesse sentido, jamais se duvidou da constitucionalidade da submissão do demandante
ao atendimento de certas ‘condições de ação’, previstas no Código de Processo Civil, entre as
quais a do ‘interesse de agir’ (art. 267, VI). Consiste essa condição em demonstrar que a de-
manda judicial é providência necessária, útil e adequada à obtenção de provimento tendente
a reparar a lesão ou a afastar a ameaça a direito. Portanto, antes de antagonizar-se com ela, o
interesse de agir, na verdade, é requisito natural e próprio da garantia constitucional de acesso
ao Judiciário. Realmente, se a ação judicial é assegurada e reservada para casos de ‘lesão ou
ameaça a direito’ (CF, art. 5º, XXXV), não seria apropriado aceitá-la em hipóteses em que, nem
em tese, se verica lesão ou ameaça dessa natureza.” (Trechos da manifestação do Ministro
Teori Zawascki, durante o julgamento do RE 631.240-MG, julgado em 3.9.2014, divulgado no
DJE de 7.11.2014, publicado em 10.11.2014. Disponível em:
paginador.jsp?docTP=TP&docID=7168938>. Acesso em: 1º.9.2018.)
(154)  “Quando o texto constitucional fala que nenhuma lei excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito, usa uma fórmula de retórica para dizer que não pode haver
disposições legais que obstaculizem o exercício de direito, mas não signica que a lei não possa
disciplinar a matéria. Até porque, do contrário, nós chegaríamos a um resultado estrambótico,
nós teríamos que declarar a inconstitucionalidade do Código de Processo Civil, que estabelece
todas as condições da ação, prazo para propor recurso... Porque nós estamos diante, é impor-
tante que se perceba, daquilo que se chama na doutrina dos direitos fundamentais de garantia
institucional.” (Trechos da manifestação do Ministro Teori Zawascki, durante o julgamento do
RE 631.240-MG, julgado em 3.9.2014, divulgado no DJE 7.11.2014, publicado em 10.11.2014.)
(155)  Notícia sobre o julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs)
ns. 2.139, 2.160 e 2.237, ajuizadas por quatro partidos políticos (PCdoB, PSB, PT e PDT) e pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores do Comércio (CNTC). Disponível em:
stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=385353>. Acesso em: 3.10.2018.
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A tese vencedora sustenta que exigir a submissão da pretensão à Comissão de
Conciliação Prévia como requisito obrigatório para ajuizamento de reclamação
trabalhista revelaria óbice ao imediato acesso ao Poder Judiciário.(156)
O entendimento de que o acesso ao Poder Judiciário se dá de forma irres-
trita e açodada continua em pauta, tanto nas discussões doutrinárias, quanto
perante os tribunais superiores.
Do ponto de vista doutrinário, destaque-se o estudo de Mancuso(157),
onde, ao falar da Crise dos Poderes da República, sob o enfoque do direito à
tutela jurisdicional, propõe uma releitura do princípio da inafastabilidade e do
acesso à justiça.(158) No artigo, o professor defende a ressignicação de acesso
ao Poder Judiciário para acesso à justiça, desvinculando-se do conceito de
justiça associado à estrutura orgânica da magistratura e dos tribunais, mais do
que isso, propondo o que ele chama de jurisdição compartilhada, opondo-se
“à judicialização do cotidiano” e para fugir da “açodada ligação direta entre
a controvérsia e o Fórum”.(159)
Limitando-se ao escopo deste estudo, faz-se importante destacar a
análise do autor acerca da “Jurisdição Compartilhada, anada à tendência
de desjudicialização dos conitos”.(160) Nesta parte do artigo, apresenta uma
série de práticas que se caracterizam pela criação de um ambiente propício
para a solução de conitos por meio de instituições públicas ou privadas e, até
mesmo, de maneira direta entre as partes, todas instaladas fora da estrutura
orgânica do Poder Judiciário. Além das situações autorizadas pela própria
Constituição Federal(161), Mancuso traz à discussão uma lista de medidas para
(156)  Até o momento da nalização do presente estudo, não havia sido publicado o acórdão.
Última consulta ao acompanhamento processual em 5.2.2019.
(157)  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O direito à tutela jurisdicional: o novo enfoque do
art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. In: LEITE, George Salomão; STRECK, Lenio; NERY
JUNIOR, Nelson (coords.). Crise dos poderes da República: judiciário, legislativo e executivo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 69-104.
(158)  Art. 5º, XXXV, da Constituição de 1988: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Ju-
diciário lesão ou ameaça de direito”.
(159)  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O direito à tutela jurisdicional: o novo enfoque do
art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. In: LEITE, George Salomão; STRECK, Lenio; NERY
JUNIOR, Nelson (coords.). Crise dos poderes da República: judiciário, legislativo e executivo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 73.
(160)  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O direito à tutela jurisdicional: o novo enfoque do
art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. In: LEITE, George Salomão; STRECK, Lenio; NERY
JUNIOR, Nelson (coords.). Crise dos poderes da República: judiciário, legislativo e executivo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 87-100.
(161)  Arts. 71, § 3º, 114, § 2º, e 217, § 1º, todos da Constituição de 1988, o primeiro trata dos
poderes do Tribunal de Contas da União, o segundo da necessidade de recusa das partes à
negociação coletiva ou arbitragem como condição para o ajuizamento do dissídio coletivo
de natureza econômica; o terceiro, que trata do exaurimento da jurisdição desportiva como
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solução alternativa de conitos, permitidas pela legislação infraconstitucional,
tais como: consignação em pagamento realizáveis nos bancos ociais (CPC,
§ 1º do art. 539), o compromisso do ajustamento de condutas (Lei n. 7.347/85,
§ do art. 5º, c/c CPC, art. 515, III), a convenção de arbitragem (CC, art.
853, CPC art. 485, VII), plano de recuperação extrajudicial de empresas (Lei
n. 11.101/05, art. 161), inventários, partilhas, divórcios, extinção de união
estável, consensuais realizáveis nos tabeliães (CPC, § 1º do art. 610, art. 733 e
parágrafos), dispensa do ajuizamento de ações e de recursos com parca ou ne-
nhuma possibilidade de êxito, pela AGU (Lei n. 9.469/97, art. 1º, cabeça, redação
dada pela Lei n. 13.140/15, art. 1º-C, inserido pela Lei n. 11.941/09, arts. 4º, XII e
43 da Lei Complementar n. 73/93, Lei n. 10.259/01, parágrafo único do art. 10,
art. 8º da Lei n. 12.153/09 e Lei n. 13.140/15), regularização fundiária urbana,
feita diretamente no Registro de Imóveis (Lei n. 10.257/01 e Lei n. 13.465/17),
CADE como entidade judicante (art. 4º da Lei n. 12.529/11).(162)
O ponto central da discussão cinge-se à possibilidade da solução de
conitos fora do Poder Judiciário, mais do que isto, a atribuição, em muitos
casos, de título executivo extrajudicial, ou mesmo, de título executivo judicial
mediante a simples homologação pelo Judiciário. Os exemplos mostram o
movimento de implementar a chamada “Jurisdição Compartilhada” no Brasil,
possibilitando que outros órgãos, públicos e privados, ou mesmo as próprias
partes envolvidas na lide, possam pacicar suas questões sem a necessária
interveniência do poder jurisdicional estatal. Tais medidas estão alinhadas
às diretrizes do Conselho Nacional de Justiça estabelecidas na Resolução
CNJ n. 125, de 29 de novembro de 2010, que dispôs sobre a Política Judiciária
Nacional de tratamento adequado dos conitos de interesses no âmbito do
Poder Judiciário.(163)
A Resolução do CNJ, em seus considerandos, estabeleceu que o princípio
da inafastabilidade da jurisdição e do direito de acesso à justiça não signicam
somente o acesso formal aos órgãos do Poder Judiciário, mas o acesso à ordem
jurídica justa. Mais do que isso, declarou, ainda, que o tratamento adequado dos
conitos pressupõe a utilização de outros mecanismos de solução, em especial
os consensuais, tais como a mediação e a conciliação. Nesse sentido, estatuiu:
pré-condição para o acesso ao Poder Judiciário, no que diz respeito à disciplina e às competi-
ções. Destaque-se que o estudo de Mancuso não se refere expressamente ao dissídio coletivo
da jurisdição trabalhista.
(162)  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O direito à tutela jurisdicional: o novo enfoque do
art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. In: LEITE, George Salomão; STRECK, Lenio; NERY
JUNIOR, Nelson (coords.). Crise dos poderes da República: judiciário, legislativo e executivo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 87.
(163)  Resolução CNJ n. 125, de 29 de novembro de 2010. Disponível em:
br/images/stories/docs_cnj/resolucao/arquivo_integral_republicacao_resolucao_n_125.pdf>.
Acesso em: 1º.9.2018.
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Conflitos Previdenciários: Medidas Extrajudicias e Administrativas
61
Art. 1º Fica instituída a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conitos
de interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conitos por
meios adequados à sua natureza e peculiaridade.
Parágrafo único. Aos órgãos judiciários incumbe, além da solução adjudicada
mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias,
em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação,
bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão.
A principiologia proposta pelo Conselho Nacional de Justiça busca
implementar nova lógica para a solução de conitos, de forma a priorizar a
composição consensual e amigável. A proposta traz em seu bojo uma mudança
na ótica de análise, verdadeiro realinhamento de modo a contrapor-se à política
da judicialização do cotidiano e ao demandismo o que levará à redução do
número de processos novos, sem falar na melhoria da qualidade dos serviços
prestados pelo Poder Judiciário. Ao lado da Política Judiciária Nacional, pode-
-se perceber o crescimento da oferta de serviços de mediação e arbitragem por
instituições privadas, organismos não governamentais e pelo próprio Estado,
que tem buscado a instalação de câmaras de prevenção e resolução adminis-
trativa de conitos.(164)
Para Mancuso(165), essa política funda-se em três premissas: de ordem
sociológica, que intenta a pacicação social; de caráter técnico-jurídico, que
entende nem sempre ser o Judiciário o ambiente propício para se chegar à
solução tecnicamente mais adequada, ninguém melhor para proferir a decisão
do que um especialista na área de conhecimento que estude o tema em dis-
cussão(166); e atinente ao custeio da Justiça estatal, que trata da crise numérica
(164)  Nesse sentido merece destaque a Lei n. 13.140, de 26 de junho de 2015, que dispôs sobre
a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposi-
ção de conitos no âmbito da Administração Pública, que, no art. 32, estabeleceu: “A União,
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão criar câmaras de prevenção e resolução
administrativa de conitos, no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública, onde houver,
com competência para: I — dirimir conitos entre órgãos e entidades da administração pública;
II — avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conitos, por meio de composição,
no caso de controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público; III — promover,
quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta”.
(165)  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O direito à tutela jurisdicional: o novo enfoque do
art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. In: LEITE, George Salomão; STRECK, Lenio; NERY
JUNIOR, Nelson (coords.). Crise dos poderes da República: judiciário, legislativo e executivo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 83-85.
(166)  Nesse sentido: “Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais
habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos
técnicos ou cientícos de grande complexidade podem não ter o juiz de direito o árbitro mais
qualicado, por falta de informação ou de conhecimento especíco”. (BARROSO, Luís Roberto.
Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Atualidades Jurídicas — Revista
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Washington Luís Batista Barbosa
dos processos e a cultura demandista, frutos da leitura exacerbada do acesso
à justiça estatal, e conclui:
O jurisdicionado, assim estimulado ao demandismo, não se dá conta
de que com isso estão em algum modo terceirizando a resolução
da pendência, não raro antes que ela tenha alcançado o desejável
grau de maturação, estágio a que, de outro modo, se chegaria na-
turalmente, se os interessados buscassem num primeiro momento
a solução por algum dos meios auto ou heterocompositivos fora
da estrutura estatal. Opera como insumo dessa cultura judiciarista
(equivocada) percepção de que a norma legal é um paradigma de
caráter estritamente técnico, que deve ser deixada ao exclusivo ma-
nejo dos operadores do Direito.(167)
O que se viu neste tópico deixa claro que o dogma do amplo e irrestrito
acesso ao Judiciário passa por sérios questionamentos. Em princípio, a pró-
pria história mostra que nem sempre existiu o escancarar das portas do Poder
Judiciário para a solução de toda e qualquer controvérsia, em várias situações
houve a necessidade de se cumprirem requisitos antes de ajuizar uma ação, o
exaurimento das vias administrativas, por exemplo. No mesmo sentido, mes-
mo após a exclusão da previsão expressa da necessidade do preenchimento
de pressupostos processuais antes do acesso ao Judiciário, a legislação infra-
constitucional estabeleceu, para áreas e temas especícos, condições prévias,
ainda, há crescente movimentação no sentido de se privilegiar as soluções
alternativas de conitos, com ênfase para medidas que se utilizam de organi-
zações privadas e não governamentais.
Eletrônica do Conselho Federal da OAB, n. 4, p. 16, jan./fev. 2009. Disponível em:
oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf>. Acesso em: 24.7.2018.)
(167)  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O direito à tutela jurisdicional: o novo enfoque do
art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. In: LEITE, George Salomão; STRECK, Lenio; NERY
JUNIOR, Nelson (coords.). Crise dos poderes da República: judiciário, legislativo e executivo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 85.
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