Teoria do contrato e a tutela jurídica dos hipervulneráveis

AutorMaria Cristina Paiva Santiago
Páginas81-142
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Capítulo 3
TEORIA DO CONTRATO E A TUTELA JURÍDICA DOS
HIPERVULNERÁVEIS
Sumário: 3.1 Contrato - do Estado liberal ao Estado social: uma visão
à luz da sua perspectiva histórica; 3.2 Reflexos da nova teoria contratual
sob o dogma da autonomia da vontade em sua dimensão histórica; 3.3
Contratos à luz da ideologia solidária em busca da justiça contratual;
3.4 Princípios sociais do contrato: o descortinar de um novo paradigma;
3.5 Boa-fé objetiva como imperativo moral e ético das relações
jurídicas; 3.6 Princípio da equivalência material: base fundamental para
o equilíbrio contratual; 3.7 Da constitucionalização do direito civil à
humanização: abertura do sistema para tutelar o direito à diferença
como consectário da dignidade humana
Talvez não exista pior privaçã o, pior carência, que dos perdedor es na luta
simbólica por reconhecimento, por acesso a uma existência socialmente
reconhecida, em suma, por humanidade
(Pierr e Bourdeau).
A ideia do contrato como instrumento de encontro de direitos
fundamentais constitui-se na base nuclear do direito contratual
contemporâneo. As teorias econômicas do século XVIII modificaram e
impulsionaram o desenvolvimento do contrato como instrumento de
concretização do ideal libertário da classe burguesa. Esse ideal passou
a ser considerado como paradigma da liberdade contratual do
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afastamento da intervenção estatal das relações particulares,
representando a força motriz do Estado liberal36.
A concepção que norteou as codificações oitocentistas entendia
que o contrato traduziria o justo e o equitativo. Portanto, impregnava a
própria essência do instituto, exteriorizado pela fórmula preconizada
por Fouillée: Qui dit contractuel dit juste37. Àquela época, fazia eco
com os ideais libertários da revolução a crença de que a justiça
contratual se daria de forma automática. Seria concretizada a partir do
exercício da vontade negocial das partes que, de forma “igualitária”,
estipulariam o conteúdo do contrato.
Com o passar do tempo, porém, constatou-se a insuficiência da
liberdade formal e, paulatinamente, o Estado voltou a assumir sua
postura intervencionista. Em consequência, novas nuances foram
agregadas ao contrato, impregnando-o com um matiz solidarista. Como
resultado, surgiu o Estado social, agregando-se aos contratos os
princípios sociais aos contratos. Foi retomada a discussão filosófica e
metafísica do contrato vigente na teoria clássica, adotando-se, no
contrato, uma visão mais social ou funcional. Posteriormente, a
Revolução Industrial fulminou de vez, a antiga concepção do contrato,
a massificação do consumo passou a ocupar o centro do debate
acadêmico.
No século XXI acentuam-se as mudanças sociais e se reclama
forte renovação da dogmática contratual voltada à proteção do
contratante vulnerável.
Losano (2010)38 explica que as teorias jurídicas, espécie de
ciência social, não são imutáveis, alegando que “uma teoria não é uma
crença”. Fundamenta seu pensamento na ideia da mutação dos fatos
36 Nesse sentido, precisas são as palavras de Caio Mário da Silva Pereira (2001, p. 49), ao afirmar:
“Inspirado pelo princípio da igualdade de todos, obsedado pelo cânon da liberdade do indivíduo dentro
da coletividade, o legislador da revolução entendeu de afrontar toda ideia de intervenção do Estado das
transações civis, considerando-a uma ofensa à concepção abstrata da liberdade absoluta”.
37 “Quem diz contratual diz justo” (Tradução livre).
38 Em seu estudo, anota Losano (2010): “Uma teoria científica, na minha opinião, vive e sobrevive por
ajustes e correções sucessivas. Não oferece um sistema de certezas ineludíveis, mas um conjunto de
explicações plausíveis e historicamente condicionadas. O mundo das ciências sociais e das ciências
naturais está repleto de teorias que passam de um estudioso a outro ou de uma geração a outra com
acréscimos e mutilações, num trabalho com lima que faz com que, depois de séculos, da doutrina
originária reste pouco mais que a lembrança”.
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sociais. Nessa mesma perspectiva, também se reveste o pensamento de
Savigny, fundador da Escola Histórica. Em sua concepção, sendo uma
norma de conduta, o direito não pode ficar engessado no conteúdo
normativo, devendo ser interpretado a partir do contexto histórico-
cultural que o envolve. Assim, à luz das transformações ocorridas no
direito e na sociedade atual, impõe-se uma revisão na teoria dos
contratos. Nesse novo contexto, entende-se ser admissível a incidência
do direito de arrependimento como forma de resilição contratual para
outros contratos, não se limitando apenas aos de consumo, na forma
disposta no art. 49, do CDC.
O direito privado brasileiro tem clara vinculação com o
princípio vetor da ordem social democrática da República Federativa
do Brasil: a dignidade humana. Dessa forma, abre espaço para uma
nova hermenêutica interpretativa, propiciando o surgimento de um
direito privado mais solidário, consentâneo com os direitos humanos.
Essa nova visão se traduz em estímulo a pensar um direito contratual
mais humanizado, na medida em que não aplica a lei sem enxergar as
circunstâncias que permeiam cada relação. Assim, embora a regra seja
a manutenção do contrato, nos moldes do pacta sunt servanda, permite-
se sua revisão. É admissível, até mesmo, sua extinção em casos
especiais, a exemplo da rescisão lesionária ou da extinção por
onerosidade excessiva, descritas nos arts. 157 e 478 do Código Civil.
3.1 Contrato Do Estado Liberal ao Estado Social: Uma Visão
à Luz da sua Perspectiva Histórica
Tomando-se por base metodológica uma vertente puramente
histórica, pode-se afirmar que o contrato, em sua concepção clássica,
foi forte aliado da doutrina do laissez-faire, servindo à ideologia vigente
na época do Estado liberal e do livre mercado. Este, por sua vez, guiava-
se por suas próprias leis, sem qualquer intervenção estatal. Assim, na
formalização do contrato predominava o paradigma do voluntarismo e
da autonomia da vontade privada como cânones imutáveis da relação
contratual. No contexto da ideologia política oitocentista, o Estado se

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