Teoria geral da extinção dos contratos e a proteção da hipervulnerabilidade: o surgimento de um novo paradigma na pós-modernidade

AutorMaria Cristina Paiva Santiago
Páginas205-321
205
Capítulo 5
TEORIA GERAL DA EXTINÇÃO DOS CONTRATOS E A
PROTEÇÃO DA HIPERVULNERABILIDADE:
O SURGIMENTO DE UM NOVO PARADIGMA
NA PÓS-MODERNIDADE
Sumário: 5.1 A proteção da vulnerabilidade no CC e no CDC:
ponderações em torno da unidade e coerência do sistema normativo
colmatada pela teoria do diálogo das fontes na jurisprudência pátria; 5.2
A complexidade normativa do direito privado brasileiro e a adoção da
teoria do diálogo das fontes como resposta à pós-modernidade; 5.3
Modelo brasileiro do direito privado: desigualdade entre as pessoas
como ponto de convergência entre CDC e CC-02; 5.4 A lesão no CC-
02 e o rompimento da utópica relação entre iguais em contratos civis
como dogma absoluto; 5.5 O direito de arrependimento como direito
extintivo do contrato na tutela da hipervulnerabilidade; 5.5.1 Breves
considerações históricas do direito de arrependimento e sua inserção no
ordenamento jurídico brasileiro; 5.5.2 A dimensão protetiva do direito
de arrependimento nas relações contratuais; 5.5.3 Direito de
arrependimento na legislação estrangeira; 5.5.4 Direito de
arrependimento na internet: a dimensão virtual do contrato
ressignificando o paradigma do espaço; 5.5.5 Direito de
arrependimento e sua incidência para além dos contratos de consumo a
distância; 5.6 Abordagem do direito de arrependimento como forma de
resilição contratual aplicável aos contratos civis em situação de
hipervulnerabilidade na prática jurisprudencial.
Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia,
mas nosso dever é edificar como se fora pedr a a areia
(Jorge Luís Borges).
206
Pretende-se neste capítulo estabelecer a base filosófica e teórica
da proteção dos hipervulneráveis traçando seus fundamentos éticos e
jurídicos à concretização do projeto de tutela da parte mais fraca no
direito privado da atualidade.
O direito se fundamenta na ética e, por essa razão, tem-se o
entendimento de que o que é jurídico tende, também, a ser ético.
Contudo, descortina-se na atualidade uma profunda crise nos valores
morais e éticos em todas as relações humanas (contratuais e pessoais).
Sobre a imprescindibilidade de renovação e atualização de
alguns institutos do direito contratual, é interessante anotar o
pensamento de Cláudia Lima Marques, que reconhece como
características da pós-modernidade elementos como fragmentação,
catividade, distância, desconstrução e aproximação do espaço-tempo,
pelo avanço tecnológico, de modo a impor necessária revisão
dogmática da privatística pátria (MARQUES, 2016, p. 23).
Dentro da noção de pós-modernidade197 trabalha-se o
paradigma do pluralismo, relacionando-o à multiplicidade de métodos,
de fontes, de sentimentos e de agentes econômicos que caracterizam e,
ao mesmo tempo, desafiam o direito privado da atualidade
(MARQUES; MIRAGEM, 2014, p. 108).
Nesse cenário multifacetário, surgem novos sujeitos de direitos
que reclamam a incidência de diversos ordenamentos normativos,
escolhidos a partir das características subjetivas da pessoa ou do agente
econômico envolvido (civil, empresário ou consumidor).
O problema suscitado na presente tese doutoral consiste na
verificação da possibilidade de aplicar o direito de arrependimento
direito de extinção contratual cabível à parte vulnerável, previsto no
CDC aos contratos regulados pelo CC.
Para tanto, como forma de sustentação da tese, serão tratados
especialmente três pontos: a) a unidade do sistema normativo à luz da
constitucionalização do direito permite a aplicação do direito de
arrependimento aos contratos civis; b) essa aplicação se daria pela
197 Sobre pós-modernidade: Segundo Erik Jayme, o pluralismo é a grande característica do direito pós-
moderno, de modo a justificar a aplicação concomitante dos variados ordenamentos jurídicos que
compõem o hipercomplexo normativo do sistema do direito privado (JAYME, 1995).
207
incidência da teoria do diálogo das fontes; e c) na hermenêutica da
humanização do direito civil constitucional que possibilita se tratar de
forma diferente situações distintas para se alcançar a justiça no caso
concreto.
A dimensão econômica e a segurança jurídica das relações
contratuais seriam suportadas pela assunção do risco da própria
atividade negocial no direito pós-moderno e se sustentaria
economicamente pela redução do seu campo de atuação, apenas para as
situações de hipervulnerabilidade.
A crescente substituição dos contratos paritários pelos contratos
estandardizados, visivelmente acirrada pela crise econômica de 1920,
fere de morte a concepção clássica do contrato, plasmada no ideário
liberal burguês sob o imperativo da autonomia da vontade e da
intangível liberdade contratual, sendo imprescindível uma profunda
modificação no paradigma contratual (RIBEIRO, 2018, p. 132).
As grandes desigualdades ostentadas entre as partes de uma
relação contratual, acarretando verdadeiro estado de subjugação da
parte mais vulnerável aos interesses econômicos da outra, ensejou a
imprescindibilidade de uma nova matriz contratual, marcada por um
sistema de freios e contenção à liberdade contratual.
Desse modo, caberia ao Estado o papel mediador das relações
contratuais, atuando como escudo de proteção à parte mais fraca da
relação contratual, de maneira a compensar-lhe as vulnerabilidades,
fazendo com que se restabelecesse o equilíbrio material do contrato198.
Após as longas crises econômicas e políticas corridas com a
quebra da bolsa de Nova York, o capitalismo ocidental, em resposta,
estrutura-se em torno do New deal e do Plano Marshall, consolidando
a tendência crescente de regulação da ordem econômica, através das
constituições dirigentes e do fortalecimento Well Fare State199.
198 O princípio do equilíbrio material dos contratos na visão de Rodrigo Toscando de Brito se traduz
em: “Princípio da equivalência material ou do equilíbrio contratual é aquele pelo qual se deve buscar
e manter a justiça contratual, objetivamente considerada, em todas as fases da contratação,
independentemente da natureza do contrato, e sempre com base na eticidade, lealdade, socialidade,
confiança, proporcionalidade e razoabilidade nas prestações” (BRITO, 2007, p. 29).
199 Sobre as constituições dirigentes, anota Alfredo Rangel Ribeiro: “o pioneirismo desse movimento
se deu com a Constituição Mexicana de 1917. Logo depois e com maior repercussão na teoria

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT