A tutela dos hipervulneráveis em sede de contratos de consumo: um estudo analítico dos contratos consumeristas como reagentes de uma sociedade de consumidores

AutorMaria Cristina Paiva Santiago
Páginas43-80
43
Capítulo 2
A TUTELA DOS HIPERVULNERÁVEIS EM SEDE DE
CONTRATOS DE CONSUMO: UM ESTUDO
ANALÍTICO DOS CONTRATOS CONSUMERISTAS
COMO REAGENTES DE UMA SOCIEDADE DE
CONSUMIDORES
Sumário: 2.1 A sociedade de consumidores e a relação com a
hipervulnerabilidade nas relações de consumo; 2.2 O direito do
consumidor: ponto de partida na busca da justiça contratual no direito
privado; 2.3 O surgimento do Código de Defesa do Consumidor e a
mudança de paradigma no direito contratual brasileiro; 2.4 A tutela do
consumo como princípio da ordem econômica na carta política de 1988;
2.5 A proteção da vulnerabilidade como nova base teleológica das
relações contratuais no direito privado.
“A mais homicida e terrível das paixões que se pode infundir às massas é a
paixão do impossível
(Alphonse de Lamartine).
Esta tese se propõe responder à indagação sobre a existência da
tutela satisfatória para a categoria dos hipervulneráveis, à luz dos novos
paradigmas introduzidos pela humanização do direito civil-
constitucional. Para tanto, será considerada a amplitude temática, com
foco nos dois pontos cruciais para a referida abordagem (os contratos
de consumo e os contratos civis) conforme explanado nas linhas
introdutórias. Demonstrar-se-á, no presente capítulo, como o contrato
de consumo se inter-relaciona com a sociedade de consumidores. Por
44
esse motivo, legalmente, o consumidor é enquadrado na condição de
vulnerável, de acordo com o que determina a Política Nacional de
Relações de Consumo. Verificar-se-á, também, de que forma a
hipervulnerabilidade se faz presente nas contratações de caráter civil
nos dias atuais, temática que será aprofundada em capítulo próprio.
A cultura voltada para a proteção dos direitos humanos
proporciona, dentre outras consequências, o resgate da valorização da
pessoa humana em sua dimensão existencial. Em outras palavras,
protege-se a pessoa pela sua simples condição humana. Após os
horrores vivenciados na Segunda Grande Guerra, ocorreu o
esvaziamento do direito anterior, consagrado em 1919, na República de
Weimar. A partir daí, os juízes deixaram de ficar subjugados aos
imperativos da norma, decidindo de acordo com os princípios ditados
pelo racismo e pelo nazismo. O eixo fundamental do Estado de direito
passa, então, a ser ditado pela vontade de uma só pessoa, no caso da
Alemanha social-nacionalista, a vontade do füher e de seu partido único
(LOSANO, 2010, p. 186). Desse modo, caem por terra as formas
parlamentares e, com elas, as garantias dos cidadãos. Ressalte-se, ainda,
que o fortalecimento de movimentos de extrema direita não ocorreu
apenas na Alemanha, mas em toda a Europa2 (BRANDÃO;
SANTIAGO, 2015).
Com o êxito da revolução nacional-socialista, entra em declínio,
e depois em colapso a ciência jurídica alemã do século XIX. É
necessário enfatizar, também, que a revolução nacional-socialista
“destruiu o direito herdado pelo Império alemão e pela República de
Weimar” (LOSANO, 2010, p. 186), sendo, por essa razão, considerado
antipositivista e antissistemático. Nesse contexto, os magistrados se
desvinculam da lei e passam a ser subjugados pela ideologia política do
partido único. Pode-se afirmar, então, que, entre os anos de 1918 e
1948, a Alemanha foi palco de mudanças marcantes no direito
considerado como ciência jurídica. De fato, pode ser constatado, ao
longo da história, que o direito alemão sempre foi locus fecundo para a
consagração de importantes institutos jurídicos. Foi assim, seguindo a
2 Cita-se a tomada do poder na Itália, em 1922, com Mussolini; em Portugal, em 1933, com Salazar e
na Espanha em 1936, com Franco.
45
tradição, que a ciência jurídica germânica do pós-guerra, com a Lei
Fundamental de Bonn e a jurisprudência do Tribunal Constitucional
Federal, resgata historicamente a primazia da condição humana,
desenvolvendo a teoria dos direitos subjetivos imanentes à pessoa
(ALEXY, 2011). Aliados ao primado normativo do valor jurídico da
dignidade humana (SARLET, 2011, p. 89-99), constituem o núcleo
duro do ordenamento jurídico forjado nos Estados liberais.
Em uma perspectiva histórica, os novos ares da valorização da
pessoa humana, como eixo central do sistema normativo, também
alcançam o Brasil, após vinte e um anos de ditadura militar (1964-
1985). Assim, em plena decadência desse regime, deu-se início ao
movimento que culminaria com a convocação da assembleia nacional
constituinte em outubro de 1986. A Carta Política da República
Federativa do Brasil foi promulgada em 05 de outubro de 1988, sob a
inspiração da cultura constitucional alemã. Como resultado, em seus
primeiros capítulos, consagra um extenso rol de direitos e garantias
fundamentais (BONAVIDES, 2015).
No entanto, embora exista um grande apreço por parte da
doutrina na discussão dos direitos fundamentais, prescinde de consenso
sobre a relação existente entre direitos fundamentais e os denominados
direitos humanos, causando, de certo modo, dissenso sobre o assunto.
Paulo Bonavides, a respeito do tema, inicia o estudo da teoria dos
direitos fundamentais propondo o seguinte questionamento: “Podem as
expressões direitos humanos, direitos do homem e direitos
fundamentais ser usadas indiferentemente?” (BONAVIDES, 2015, p.
578).
Refletindo sobre a pergunta o próprio autor conclui que, na
verdade, a distinção terminológica varia no espaço e no tempo, tendo,
deste modo, coerência com a tradição e a história de determinados
povos. Na literatura jurídica, os termos “direitos humanos” e “direitos
do homem” são, frequentemente, empregados entre autores anglo-
americanos e latinos, enquanto a expressão “direitos fundamentais”
parece ser mais utilizada pelos publicistas alemães. O rol de direitos

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT