Teoria geral do plano de custeio da seguridade social

AutorMiguel Horvath Júnior - Rafael Vasconcelos Porto
Páginas177-192

Page 177

Miguel Horvath Júnior 1

Rafael Vasconcelos Porto 2

Introdução

O presente artigo tem o propósito de oferecer ao leitor uma introdução teórica ao custeio da seguridade social desenvolvendo as bases fundamentais do plano de custeio, sem, contudo, adentrar em detalhes mais específicos de caráter tributário, atuarial ou mesmo da conformação mais precisa das contribuições em espécie.

Nesse diapasão, a proposta de trabalho é partir dos princípios constitucionais atinentes ao ramo – quais sejam, o da diversidade da base de financiamento, o da equidade na forma de participação no custeio e o da contrapartida direta3 – e deles se valer como ferramenta para analisar a relação existente entre os planos de custeio e de benefícios (num cotejo, de ir e vir), numa análise de sobrevoo da regra-matriz das contribuições destinadas à Seguridade Social, com enfoque especial nas previdenciárias em sentido estrito.

Princípios constitucionais aplicáveis ao custeio

Dentre os princípios previstos expressamente na Constituição Federal no âmbito da Seguridade Social, podemos apontar dois que são direcionados especificamente ao custeio: o da diversidade da base de financiamento e o da equidade na forma de participação no custeio. O terceiro princípio com o qual pretendemos trabalhar é o da contrapartida direta, que não está – na concepção que adotamos – expresso na CRFB, ao menos não de forma evidente, decorrendo de uma construção interpretativa a partir de outras normas constitucionais – o que delinearemos melhor adiante, mas é importante deixar desde já consignado, destacando-se, inclusive, que não se confunde com o que a doutrina costuma denominar “regra da contrapartida”.

Iniciaremos nossa análise pelo princípio da diver-sidade da base de financiamento – o mais simples dos três, por despertar menos controvérsias –, que nos permitirá efetuar um breve desenvolvimento histórico do custeio e, a partir daí, construir o raciocínio teórico que o presente artigo objetiva atingir.

Em seguida, abordaremos o princípio da equidade na forma de participação no custeio, que cumpre papel mais relevante na estruturação conceitual e especial-mente teleológica das contribuições para a seguridade social, especialmente as previdenciárias (em sentido estrito), para, depois, adentrarmos na lógica da teoria geral do seguro, para identificação (ou não) do elo entre a relação de custeio e a de benefício. Por fim, analisaremos o princípio da contrapartida direta, que desempenha uma função de conexão ainda mais íntima entre custeio e cobertura.

2.1. Diversidade da base de financiamento

Em brevíssimo escorço histórico4, podemos apontar que a Seguridade Social consiste num momento culminante de evolução, no qual Previdência e Assistência

Page 178

[sociais] são acopladas para constituir um todo unitário de proteção social – embora numa relação de subsidiariedade/complementariedade, na qual os subsistemas ainda possuem plena autonomia, tanto prática quanto teórica. Anteriormente a tal conjugação, cabe analisar, portanto, a evolução, até então paralela, de cada um dos ramos, também de modo bastante resumido.

A assistência social evoluiu da assistência privada (caritativa) para a pública (financiada e administrada pelo Estado), havendo um estágio intermediário em que o Estado se pôs primeiramente como incentivador (inclusive por meio da legislação posta) e, posteriormente, como organizador/administrador das verbas destinadas voluntariamente (ou por vezes até compulsoriamente) por particulares.

Já a previdência social tem sua origem no mutualismo, sendo que, num primeiro momento, os próprios trabalhadores se reuniram voluntariamente para organizar ou contratar um seguro contra riscos sociais (especialmente laborativos); num segundo momento, passou a ser imposta ao empregador a contratação de um seguro junto à iniciativa privada e, num terceiro momento, ocorreu a assunção pelo Estado da administração do seguro social, geralmente acompanhada de expansão da cobertura para outras categorias além dos empregados e, por não se pretender imputar a empregadores o financiamento de um seguro para outros trabalhadores que não os [seus] empregados, de aporte de recursos por parte do próprio Estado a partir de fontes distintas. Destarte, podemos perceber que o financiamento evolui progressivamente em termos de número de fontes: inicialmente, só os próprios trabalhadores; depois, agregam-se os empregadores; e, a seguir, o Estado. Em tal momento, tinha-se o que se denomina “custeio tripartite” (ou “tríplice”): trabalhadores (que usufruem da cobertura), empregadores (que se beneficiam do trabalho prestado5) e Estado. Nos anos vindouros, surgem outras fontes mais de custeio, pelo que já não se pode mais, na atualidade, falar estritamente em “custeio tripartite”, embora a expressão carregue um significado ainda importante para delinear a ideia contemporânea de seguro social6.

Destarte, a CRFB traz um desenho em que, ao lado da expressa referência ao princípio ora em exame, resta estabelecido que o financiamento da seguridade social será (art. 195, caput) direto (o que se dará por meio das contribuições sociais) e indireto (o que se dará por meio de aporte direto a partir dos orçamentos dos entes públicos). Ademais, dentro das contribuições que enumera (há a possibilidade de a União estabelecer contribuições residuais por meio de lei complementar, respeitados os limites previstos no art. 154, I), há aquelas devidas pelo empregador/contratante (art. 195, I) e a devida pelos segurados (art. 195, II), mas há também a devida pelo “importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar” (art. 195, IV) e a incidente “sobre a receita de concursos de prognósticos” (art. 195, III). Em síntese, a CRFB prevê a contribuição estatal (o que denomina “financiamento indireto”), por parte de empregadores/contratantes, por parte dos próprios segurados e outras duas espécies distintas.

Anota Balera que: “em perspectiva genérica, a dire-triz da diversidade das bases de financiamento funciona como premissa para que seja mensurada a carga tributária que cada categoria social deve suportar. Considerado dentro do contexto em que se insere, o princípio pretendeu ampliar, de imediato, as bases de financiamento da seguridade social. Na tradição do nosso Direito Positivo (...) recaía exclusivamente sobre a folha de pagamento de salários a contribuição previdenciária. (...) O constituinte, ao pôr remédio a essa situação assaz crítica, tratou de diversificar desde logo as bases de financiamento do sistema.”7

Por um lado, a diversidade da base de financiamento é um princípio visto pela doutrina como expressão da solidariedade. Senão, vejamos: “O financiamento da seguridade social é de responsabilidade de toda a comunidade, na forma do art. 195 da CF. Trata-se da aplicação do princípio da solidariedade, que impõe a todos os segmentos sociais — Poder Público, empresas e trabalhadores — a contribuição na medida de suas possibilidades. A proteção social é encargo de todos porque a desigualdade social incomoda a sociedade como um todo.”8 Destarte, chama-se toda a sociedade,

Page 179

por meio da criação de fontes diversificadas, para aportar recursos à seguridade social, espraiando o ônus e, outra face da moeda, sem sobrecarregar demasiadamente um único setor, embora se deva onerar mais, por uma razão lógica, aqueles que usufruem, direta (segurados) ou indiretamente (empresários), da cobertura previdenciária9.

Por outro lado, contudo, aponta a doutrina que há também uma utilidade prática – pragmática, financista – na existência de variadas fontes de custeio, como bem ressalta Fábio Zambitte Ibrahim: “Enfim, a ideia da diversidade da base de financiamento é apontar para um custeio da seguridade social o mais variado possível, de modo que oscilações setoriais não venham a comprometer a arrecadação de contribuições. Da mesma forma, com amplo leque de contribuições, a seguridade social tem maior possibilidade de atingir sua principal meta, que é a universalidade de cobertura e atendimento.”10 Em suma, é aquela arraigada ideia de não investir tudo numa única fonte, senão diversificar os investimentos de modo a amainar o risco, o que é salutar em se tratando de um sistema que necessita de solidez e atende continuamente milhões de pessoas em situação de necessidade social. Aponta Peter L. Bernstein que: “Em 1952, o ganhador do prêmio Nobel Harry Markowitz (...) demonstrou matematicamente por que colocar todos os ovos na mesma cesta é uma estratégia incrivelmente arriscada, e por que a diversificação é o melhor negócio para um investidor ou gerente de empresa. Essa revelação desencadeou o movimento intelectual que revolucionou Wall Street, as finanças corporativas e as decisões empresariais em todo o mundo; seus efeitos até hoje se fazem sentir.”11 É nessa linha de pensamento, portanto, que laborou nosso Constituinte.

2.2. Equidade na forma de participação no custeio

Esse princípio é um desdobramento do princípio da igualdade. A participação do trabalhador não pode ser a mesma da empresa, assim como a contribuição da empresa não se confunde com a participação do Estado.

Trata-se de um princípio que tem o objetivo de justiça na delimitação da forma de participação de todos aqueles que devem contribuir para o sistema. Todos os membros da sociedade contribuem para a manutenção do sistema de acordo com...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT