Uber: da ficção à realidade. Considerações iniciais sobre a natureza de suas atividades e da relação jurídica que mantém com passageiros e motoristas

AutorAna Paula Silva Campos Miskulin
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho do TRT da 15ª Região, Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Federal de Goiás
Páginas55-66
Uber: da Ficção à Realidade 55
UBER: DA FICÇÃO À REALIDADE. CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A
NATUREZA DE SUAS ATIVIDADES E DA RELAÇÃO JURÍDICA QUE MANTÉM
COM PASSAGEIROS E MOTORISTAS
Ana Paula Silva Campos Miskulin(1)
Introdução
O sistema capitalista vigente passou por diversas fases e a disseminação da internet certamente exerceu
grande impacto no seu modus operandi atual. Manuel Castells compara a internet à rede elétrica na época
da industrialização, “em razão de sua capacidade de distribuir a força da informação por todo o domínio da
atividade humana” (CASTELLS, 2003, p. 7).
A internet permite a transmissão de informação de forma instantânea e em escala global, fomentando
um comportamento humano que não tolera “o esperar” e, muitas vezes, provoca uma reação não precedida
de reflexão. As decisões são tomadas rapidamente, de modo que o tempo passa a ser ainda mais valioso e
a pressão psicológica existente sobre as pessoas se intensifica, na medida em que situações definitivas são
concretizadas abruptamente com apenas um clique.
Por outro lado, em razão da internet, há a comodidade de acessar atividades essenciais sem sair de casa,
a qualquer momento, o que despertou em muitos uma demanda por atividades flexíveis, assim entendidas
aquelas que podem ser realizadas em um momento inespecífico do dia e de acordo com as particularidades
da rotina de cada um.
Foi nesse contexto de uma verdadeira revolução tecnológica em todas as áreas que surgiu a empresa
Uber, a qual inaugurou um modelo de deslocamento inédito, além de ser barato, rápido e eficaz. Ao chamar
um Uber, ele chegará em poucos minutos(2), e, no mesmo momento em que faz a solicitação de um veículo,
o usuário já toma conhecimento do tempo que despenderá até o destino e do valor que será cobrado pelo
serviço. E tudo isso é feito apenas com alguns toques na tela do aparelho celular.
A inovação criada pela empresa Uber foi tão grande, que se disseminou para vários segmentos, de modo
que hoje há centenas de aplicativos que permitem contratar serviços como de faxineiras (Diaríssima), peque-
nos reparos (Rede Prajá) e até mesmo médicos (Docway).
No âmbito das relações de trabalho, o fenômeno alastrou-se de tal modo que passou a ser conhecido
como uberização, que, de acordo com Ludmila Abílio [...], “refere-se a um novo estágio da exploração do tra-
balho, que traz mudanças qualitativas ao estatuto do trabalhador, à configuração das empresas, assim como
às formas de controle, gerenciamento e expropriação do trabalho”.
Neste trabalho, pretende-se demonstrar como funciona o serviço prestado pela empresa Uber e identifi-
car sua natureza. Em seguida, será feita a explanação sobre a natureza da relação jurídica formada entre Uber
e usuário do serviço e também sobre a empresa e o motorista que executa o serviço.
(1) Juíza do Trabalho do TRT da 15ª Região, Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Federal de Goiás. Mestran-
da em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo e integrante do Núcleo de Estudos “O trabalho além do direito do trabalho:
dimensões da clandestinidade jurídico-laboral” da Faculdade de Direito da USP; email: .
(2) O Decreto-lei n. 4/2019, da Espanha, determinou que a corrida por meio de transporte por aplicativo só pode ser iniciada após 15
minutos da contratação do serviço, o que fez com que as empresas Uber e Cabify suspendessem seu serviço em Barcelona, conforme
notícia veiculada pelo jornal Folha de São Paulo. (
co-em-barcelona-apos-novas- restricoes-do-governo-local.shtml>. Acesso em: 15 fev. 2019).
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Por se tratar de um trabalho desenvolvido no âmbito de um grupo de pesquisas (NTADT)(3), voltado ao
Direito do Trabalho, será dada ênfase à questão da natureza jurídica da relação entre o motorista e a empresa
Uber e, nesse contexto, serão mencionadas algumas decisões judiciais proferidas no Brasil e em outros países,
para demonstrar que o tratamento dado à questão não tem sido unânime e tem desafiado a capacidade do Di-
reito do Trabalho e de seus operadores em lidar com as novas modalidades de trabalho na Era da Informação.
Utilizou-se o método de abordagem indutivo, “por intermédio do qual, partindo de dados particulares,
suficientemente constatados, infere-se uma verdade geral ou universal (LAKATOS e MARCONI, 2017, p. 82). Ade-
mais, foi empregada como técnica de pesquisa a documentação indireta, tanto documental como bibliográfica.
1. Como funciona o serviço prestado pela Uber
Para ter acesso aos serviços prestados pela empresa Uber, inicialmente o usuário precisa baixar o aplicativo
no seu aparelho celular. Neste momento fornece seus dados pessoais e tem a opção de cadastrar um cartão
de crédito, por meio do qual será feito, automaticamente, o pagamento da corrida. Quando a empresa iniciou
suas atividades no Brasil, em maio de 2014, o pagamento era feito apenas mediante cartão de crédito, mas,
desde julho de 2016(4), passou a ser permitido o pagamento em dinheiro, devendo o usuário marcar tal opção
no ato de acionar um motorista.
Ao abrir o aplicativo, imediatamente é feito o rastreamento do local em que o usuário se encontra e,
neste momento, ele lança o endereço do destino para onde pretende deslocar-se. Em poucos segundos, o
aplicativo localiza um motorista que se encontra nas proximidades do passageiro e o aciona e, concomitante-
mente, também aparecem na tela do celular do usuário o valor da corrida e o tempo estimado para a chegada
até o destino. Neste momento, surge também tanto no perfil do usuário quanto no do motorista uma pontu-
ação que corresponde à reputação de ambos no aplicativo, bem como a quantidade de viagens já realizadas
pelo motorista, o que permite ao passageiro constatar se este é uma pessoa que está cadastrada no site
bastante tempo ou não.
Já o motorista, ao ser acionado, desconhece qual será o destino do passageiro e quanto receberá pela
corrida, antes de fazer a aceitação do trabalho, pois esses dados somente lhe são revelados quando o passa-
geiro adentra o veículo e a corrida é iniciada.
Tanto o motorista como o passageiro podem cancelar a corrida: para o primeiro, há um limite de quan-
tidade de cancelamentos tolerado pela empresa; e, para o segundo, há um limite de tempo para que assim
proceda sem custos, após o qual é exigida uma taxa pelo cancelamento.
O valor auferido pelo motorista dependerá da distância percorrida e do tempo gasto no percurso, con-
forme previsão da cláusula 4.1 do contrato que a Uber formaliza com o motorista, por ela denominado
“Termos e Condições Gerais dos Serviços de Intermediação Digital”, que foi extraído dos autos do Inquérito Civil
001417.2016.01.000/6 — 10(5), a saber: [...] “tal preço é calculado com base em um preço básico acrescido da
distância (conforme determinado pela Uber com o uso de serviços baseados em localização ativados por meio
do Dispositivo) e/ou quantidade de tempo” (Inquérito Civil, 2016, p. 105).
O valor a ser pago pelo passageiro é fixado de forma unilateral pela empresa e varia conforme a deman-
da. A empresa retém 25% do valor e 75% são repassados ao motorista, mediante crédito em conta-corrente,
semanalmente.
Nos autos do Inquérito Civil n. 001417.2016.01.000/6-10, instaurado pelo Ministério Público do Trabalho,
a Uber esclareceu que, [...] “em contraprestação aos serviços digitais prestados pela Uber, os Motoristas Par-
(3) O Núcleo de Pesquisas “O trabalho além do direito do trabalho” é desenvolvido no âmbito do Departamento de Direito do Traba-
lho, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob a coordenação do professor doutor Guilherme Guimarães Feliciano.
(4) Conforme noticiou o site Techtudo,
ma-corrida-no-uber.html>.
(5) Em 26 de março de 2018, a Exma. Procuradora do Trabalho, doutora Isabela Maul Miranda de Mendonça, retirou o sigilo do pro-
cedimento investigatório do qual foram extraídos esses dados. E, em 1º de abril de 2019, também deferiu vistas dos autos à autora
deste artigo para consulta (ID 118878.2019).
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ceiros pagam o valor correspondente a 20% ou 25% de cada viagem (dependendo do produto — UberBlack
20% ou UberX 25%)” (Inquérito Civil, 2016, p. 71).
Existe ainda a possibilidade de o passageiro dar um valor extra ao motorista, como se fosse uma gorjeta.
Após o término da corrida, tanto o motorista quanto o usuário avaliam um ao outro, atribuindo uma nota,
sem critérios específicos, que varia de uma a cinco estrelas e fica registrada no aplicativo da Uber. O motorista
não tem conhecimento das avaliações e comentários que são feitos pelos passageiros, nem possui direito à
portabilidade desses dados, caso queira apresentá-los a outro aplicativo, e a empresa se reserva o direito
de adverti-lo e até mesmo excluí-lo do aplicativo caso a nota seja inferior a 4,6 e não seja recuperada num
determinado período de tempo. Em consequência, pode ser que um motorista que não pretendia utilizar o
aplicativo em um determinado dia se veja obrigado a fazê-lo para recuperar sua nota.
Todas as exigências feitas pela empresa constam no contrato por ela celebrado com o motorista, “Termos
e Condições Gerais dos Serviços de Intermediação Digital”, cuja leitura demonstra que as palavras ali constan-
tes foram selecionadas zelosamente, de modo que a empresa tenha total domínio das atividades e operações
realizadas, mas que não tenha responsabilidade nenhuma por eventual falha no serviço prestado, devendo ser
ressaltado que nem sequer há o reconhecimento pela Uber da existência da prestação de um serviço, o que
tem sido alvo de críticas e acirradas disputas judiciais em vários países, conforme se verá a seguir.
2. A Uber e a economia do compartilhamento
A Uber não admite que presta serviços de transporte, e sim de tecnologia.
Em sua manifestação nos autos do Inquérito Civil n. 001417.2016.01.000/6-10, instaurado pelo Ministé-
rio Público do Trabalho, a empresa esclareceu, no item 11, que:
Em consonância com o seu objeto social e CNAE, a Uber não realiza qualquer serviço de transporte,
seja de pessoas ou de carga. A Uber é uma empresa que detém o direito de uso da Plataforma, isto
é, de um programa de computador (“software” ou aplicativo) que conecta o Usuário em busca do
serviço de transporte individual privado e o Motorista Parceiro interessado em prestar os serviços
de transporte e/ou logística. Desta forma, é importante esclarecer que a Uber não é detentora de
nenhuma frota de veículos e não emprega nenhum motorista. Tanto que a atividade de transporte
sequer está mencionada no seu objeto social ou CNAE (Inquérito Civil, 2016, p. 70).
O Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (p. 139 do IC) descreve a sua atividade econômica principal como
“Desenvolvimento e licenciamento de programas de computador customizáveis, código 62.02-3-00”.
Na manifestação feita pela Uber nos autos do Inquérito Civil mencionado, a empresa também sustenta,
no item 13, que sua atividade se encaixa no modelo de negócios conhecido como economia compartilhada. E
assim fundamenta:
A economia de compartilhamento supera a lógica de consumo de massa e acúmulo de bens e se
volta para iniciativas de sustentabilidade e uso racional dos bens, com a utilização da tecnologia da
informação para a redistribuição, compartilhamento e aproveitamento das capacidades excedentes
de bens e serviços. Neste sentido, o intuito é de que a pessoa física que tenha um veículo disponível
possa utilizar a plataforma digital oferecida pela Uber para prospecção e angariamento de clientes.
A economia do compartilhamento tem gerado um verdadeiro efeito transformador na sociedade,
permitindo que qualquer pessoa possa obter recursos de bens subutilizados, além de fornecer no-
vas oportunidades de atuação empreendedora (Inquérito Civil, 2016, p. 71).
Ocorre que a definição da natureza da atividade econômica desempenhada por uma empresa não se
resolve simplesmente pelo que dispõem as cláusulas de seus “Termos e Condições Gerais dos Serviços de Inter-
mediação Digital”, mas perpassa o modo como as atividades da Uber se desenvolvem na prática, nos exatos
moldes das lições ensinadas por Américo Plá Rodriguez, ao falar sobre o Princípio da Primazia da Realidade,
pois ele diz que este [...] “significa que, em caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge
de documentos ou acordo, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos”
(2015, p. 341).
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Nesse contexto, o Tribunal de Justiça da União Europeia, que já enfrentou esse questionamento mais
de uma vez, decidiu, no bojo do Processo C-434/15, que o serviço de intermediação prestado pela Uber se
classifica como um serviço de transporte, e não da sociedade da informação, conforme ela quer fazer crer. O
item 34 da decisão desse processo assim fundamenta:
A este respeito, resulta das informações de que dispõe o Tribunal de Justiça que o serviço de inter-
mediação da Uber assenta na seleção de motoristas não profissionais que utilizam o seu próprio veí-
culo, aos quais esta sociedade fornece uma aplicação sem a qual, por um lado, esses motoristas não
seriam levados a prestar serviços de transporte e, por outro, as pessoas que pretendessem efetuar
uma deslocação urbana não teriam acesso aos serviços dos referidos motoristas. Além disso, a Uber
exerce uma influência decisiva nas condições da prestação desses motoristas. Quanto a este último
ponto, verifica-se, designadamente, que a Uber fixa, através da aplicação com o mesmo nome, pelo
menos, o preço máximo da corrida, cobra esse preço ao cliente antes de entregar uma parte ao
motorista não profissional do veículo e exerce um certo controle sobre a qualidade dos veículos e
dos respectivos motoristas assim como sobre o comportamento destes últimos, que pode implicar,
sendo caso disso, a sua exclusão.
No julgamento proferido pelo London Employment Tribunals no Reino Unido (CASE n. 2202550Q/2015,
Mr. Y Aslam; Mr. J Farrar v. Uber B. V; Uber London Ltd.; Uber Britannia Ltd.), o qual analisou a natureza ju-
rídica da relação entre motoristas e a empresa Uber, a decisão faz severa crítica à postura da empresa Uber,
afirmando que, em se tratando de uma organização cuja atividade principal é transportar pessoas de um
local para outro, mas exigindo que motoristas e passageiros concordem, por meio de um contrato, que ela
não exerce atividade de transporte, “recorrendo à sua documentação para ficções, linguagem distorcida e até
mesmo nova terminologia, merece, pensamos, um grau de ceticismo(6) (2016, p. 27).
A referida decisão é assaz esclarecedora e, no item 89, afirma que [...] “em nossa opinião, é irreal negar
que a Uber esteja no negócio como fornecedora de serviços de transporte. O bom senso simples argumenta
o contrário(7)”. E ressalta, no item 90, que [...] “os termos escritos nos quais se baseiam não correspondem à
realidade prática(8) (2016, p. 27).
Em relação ao enquadramento do modelo de negócio da Uber na chamada “economia compartilhada”,
é importante destacar que o termo foi empregado inicialmente “para designar aquelas plataformas digitais
que tinham como finalidade facilitar o intercâmbio de bens ou serviços entre particulares, atuando como
mera intermediadora do serviço(9)”, mas atualmente com o ingresso de empresas que não têm finalidade
colaborativa nem agem como meras intermediadoras, almejando benefícios econômicos, passaram a surgir
nomenclaturas mais adequadas, como “economia digital”, “on demand economy”, ou “trabalho 3.0” (OLIVA-
RES, 2017, p. 19).
É importante, portanto, esclarecer que a economia compartilhada pressupõe uma forma de dispor do
uso de um bem que se encontra subutilizado, em favor de outrem, com finalidade lucrativa ou não, o que não
condiz com a realidade dos motoristas cadastrados na Uber, pois estes, muitas vezes, nem sequer possuem car-
ros, alugando-os para prestar um serviço sob as diretrizes da plataforma, com a finalidade de aumentarem sua
renda ou simplesmente como forma de garantirem sua subsistência. Já o passageiro contrata um serviço de
transporte, confiando na estrutura organizacional da multinacional Uber, que é quem comanda a atividade e
aufere, em consequência dela, vultosos lucros.
Katz afima que [...] “o modelo de negócio na economia compartilhada se define pela existência de (A)
um intermediário online que (B) atua como um mercado para serviços P2P e (C) facilita as trocas reduzindo
os custos de transação(10) (2015, p. 5).
(6) Tradução livre do original: “resorting in its documentation to fictions, twisted language and even brand new terminology, merits, we
think, a degree of scepticism”.
(7) Tradução livre do original: “it is, in our opinion, unreal to deny that Uber is in business as a supplier of transportation services.
Simple common sense argues to the contrary.”.
(8) Tradução livre do original: “the written terms on which they rely do not correspond with ter practical reality”.
(9) Tradução livre do original: “para designar aquellas plataformas digitales que tenían como finalidad ayudar al intercambio de bienes
o servicios entre particulares, actuando aquéllas como meras intermediarias del servicio”.
(10) Tradução livre do original: “This Note defines the sharing business model as (A) an online intermediary that (B) acts as a market
for P2P services and (C) facilitates exchanges by lowering transaction costs”.
Uber: da Ficção à Realidade 59
Arun Sundararajan (2016, p. 26-27) refere-se à economia compartilhada (sharing economy), que ele
também chama de capitalismo baseado na multidão (crowd-based capitalism), da seguinte forma:
[...] são termos que eu uso mais precisamente (de forma intercalada) para descrever um sistema
econômico com as cinco características seguintes: 1) amplamente baseado no mercado: a econo-
mia de compartilhamento cria mercados que permitem a troca de mercadorias e o surgimento de
novos serviços, resultando em níveis potencialmente mais altos de atividade econômica; 2) capital
de alto impacto: a economia compartilhada abre novas oportunidades para tudo, desde ativos e
habilidades até tempo e dinheiro, para serem usados em níveis mais próximos de sua capacidade
total; 3) redes baseadas na multidão, em vez de instituições ou “hierarquias” centralizadas: o for-
necimento de capital e trabalho provém de multidões descentralizadas de indivíduos, em vez de
agregados corporativos ou estatais; trocas futuras podem ser mediadas por mercados baseados
em multidões distribuídas em vez de por terceiros centralizados; 4) linha tênue entre o pessoal e
o profissional: o fornecimento de trabalho e serviços frequentemente comercializa e dimensiona
atividades de usuário para usuário, como dar uma carona a alguém ou emprestar dinheiro a alguém,
atividades que costumavam ser consideradas “pessoais”; e 5) linha tênue entre o emprego integral
e o trabalho casual(11). (tradução nossa)
De acordo com Vanessa Katz, “a distinção crítica entre plataformas de compartilhamento e outros
serviços on-line não depende apenas do caráter dos serviços ou das partes envolvidas, mas sim do grau de
controle exercido pela plataforma sobre cada transação(12)” (2015, p. 6).
No caso do negócio desempenhado pela empresa Uber, de partida, destaca-se que não existe uma re-
lação de usuário para usuário (peer-to-peer), e sim uma relação trilateral, por meio da qual a Uber faz bem
mais que a mera ligação entre motorista e passageiro, como ocorre com locador e locatário no site Airbnb,
pois esta, sim, apenas interliga os usuários, deixando-os livres para ajustarem um negócio de locação entre si.
A participação da Uber vai muito além de uma plataforma destinada ao encontro entre motoristas e pas-
sageiros, pois ela tem ingerência direta no negócio e o controla, direcionando o motorista que fará a corrida,
fixando preços, concedendo descontos e proibindo o contato direto entre motoristas e usuários. Não se trata,
portanto, de intercâmbio de um bem subutilizado.
Desse modo, é evidente que a dinâmica adotada pela empresa Uber hoje não se amolda às caracterís-
ticas da economia colaborativa, embora com ela tenha certas semelhanças, restando claro que, embora se
valha de uma plataforma para interligar seus clientes aos seus motoristas, seu objetivo é a prestação direta de
serviços de transporte.
A prática adotada pela empresa assemelha-se ao instituto da terceirização, pois, em vez de contratar
uma empresa ou cooperativa de motoristas para executar os seus serviços, a plataforma terceiriza o trabalho
direto para os condutores de veículos cadastrados.
A importância de definir os fatos como eles realmente são é que, no contexto social em que as relações
se desenvolvem, podem surgir episódios inesperados, falhas ou contratempos que, em diversas situações,
impedem que o negócio jurídico pactuado transcorra nos moldes esperados. A partir daí, advêm os dissabo-
res e, para além destes, os danos, que implicam responsabilidade e, consequentemente, impõem o dever de
indenizar.
(11) Tradução livre do original, p. 26 e 27: “[...] terms I use more precisely (and interchangeably) to describe any economic system
with the following five characteristics 1) largely market-based: the sharing economy creates markets that enable the exchange of
goods and the emergence of new services, resulting in potentially higher levels of economic activity. 2) High-impact capital: the shar-
ing economy opens new opportunities for everything, from assets and skills to time and Money, to be used at levels closer to their
full capacity. 3) Crowd-based “networks” rather than centralized institutions or “hierrchies”: the supply of capital and labor comes
from decentralized crowds of individuals rather than corporate or state aggregates; future exchange may be mediated by distributed
crowd-based marketplaces rather than by centralized third parties. 4) Blurring lines between the personal and the professional: the
supply of labor and services often commercializes and scale peer-to-peer activities like giving someone a ride or lending someone
money, activities which used to be considered “personal”. 5) Blurring lines between fully employed and casual labor”.
(12) Tradução livre do original: “The critical distinction between sharing platforms and other online services does not turn solely on
the characterof the services or parties involved, but rather on the degree of control the platform exercises over each transaction”.
60 Ana Paula Silva Campos Miskulin
Ao que tudo indica, a intenção da Uber, ao tentar se desvencilhar do enquadramento como prestadora
de serviços de transportes e defender que é uma empresa da era da informação, é conseguir desempenhar suas
atividades sob o mínimo de regulação possível, pois ainda paira uma nuvem cinzenta a respeito da legislação
que incide nesse tipo de negócio desenvolvido pela internet, com auxílio de algoritmos.
É por isso que Katz afirma que “os negócios na economia compartilhada causaram confusão a respeito
da regulamentação aplicável em relação a seguros, impostos, emprego e direitos civis(13)” (KATZ, 2015, p. 3).
De forma tímida, vão surgindo as primeiras leis que passaram a regulamentar os serviços de transporte
privado de passageiros, como ocorreu em Portugal, com a Lei n. 45/201/8, na Espanha, com o Decreto-lei n.
4/2019(14), e, no Brasil, com a Lei n. 13.640/18.
Entretanto, ainda assim, a Uber se respalda num conjunto de fórmulas que a distanciam no máximo de
qualquer obrigação de reparar, não só em relação ao motorista, mas também em relação ao passageiro, tudo
como uma forma de diminuir os custos do negócio e, ao mesmo tempo, por via inversa, ampliar seus lucros.
Neste momento, percebe-se a força com que a internet aplaca a vida das pessoas, com modelos de negó-
cios e uma forma de trabalhar até agora inimagináveis, exigindo a intervenção estatal para regulamentar as
relações jurídicas concebidas sob tais modalidades inovadoras, para definir o papel e as responsabilidades de
cada um.
Enquanto isso não acontece de forma satisfatória, as decisões judiciais seguem tentando solucionar os
conflitos já surgidos, os quais, em razão de entendimentos divergentes emanados dos órgãos jurisdicionais,
têm suscitado mais polêmicas do que soluções, distanciando-se do fim precípuo da prestação jurisdicional, que
é alcançar a almejada pacificação social.
Este trabalho se limitará à abordagem da controvérsia em relação à natureza jurídica da relação entre a
Uber e os motoristas cadastrados no aplicativo, pois, como se trata de estudo desenvolvido no âmbito do Nú-
cleo de Pesquisas “O Trabalho Além do Direito do Trabalho”(15), o objetivo é pensar na capacidade do Direito
do Trabalho de açambarcar o trabalho prestado sob a intermediação de plataformas virtuais e, no caso espe-
cífico, da plataforma da Uber.
Não é demais ressaltar, porém, que as atividades desempenhadas pela Uber têm sido objeto de judi-
cialização nas cortes de muitos países, envolvendo discussões em várias searas, como em relação ao direito
comercial, no que diz respeito à concorrência desleal, na Itália(16), ou por “prática comercial enganosa ou de-
sonesta”, como se deu na França e Bruxelas e inclusive gerou a suspensão das atividades da Uber em vários
países, como Alemanha, Suécia, Amsterdã e Holanda (GALLEGO, 2017, p. 343).
3. Natureza da relação jurídica entre a Uber e seus usuários
3.1. Natureza da relação jurídica entre a Uber e passageiro
Pode-se dizer que a tese da Uber no que concerne ao vínculo jurídico entre ela e os passageiros cadastra-
dos em seu aplicativo não tem vingado nas cortes de justiça brasileiras. Isso porque a empresa que denomina os
seus motoristas de “clientes” e os passageiros de “usuários” no documento intitulado “Termos e Condições Ge-
(13) Tradução livre do original: “Businesses in the sharing economy have caused confusion under insurance, tax, employment, and
civil rights statutes”.
(14) Trata-se de normativa da Presidência da Catalunha, que entrou em vigor em 1º.02.2019, a qual dispôs, entre outras coisas, que
o motorista só pode recolher o passageiro 15 minutos depois do momento em que o pedido é solicitado no aplicativo (Disponível
em:
-alquiler-vehiculos-conductor-26167822>).
(15) Núcleo de pesquisa vinculado ao Departamento de Direito do Trabalho da faculdade de Direito da USP, sob a coordenação do
professor Guilherme Guimarães Feliciano.
(16) O Tribunal de Milão considerou a atividade da Uber como concorrência desleal, no processo cautelar n. 16612/2015 (Disponível
em: ).
Uber: da Ficção à Realidade 61
rais dos Serviços de Intermediação Digital(17)” faz constar, em negrito, que [...] “O (A) cliente reconhece que
a Uber fornece serviços de tecnologia, não fornece Serviços de Transporte, não atua como uma em-
presa de transporte e nem opera como um agente para o transporte de passageiros”. Ademais afirma:
O (a) cliente reconhece e concorda que a prestação de serviços de transporte do (a) cliente e aos
usuários (as) cria uma relação jurídica e comercial direta entre o (a) cliente e o (a) usuário (a), da
qual a Uber não participa. A Uber não é responsável pelas ações ou omissões de um (a) usuário
em razão de condutas do (a) cliente, de um (a) motorista ou em relação a qualquer veículo. O (a)
cliente será o (a) único responsável por quaisquer obrigações ou responsabilidades em relação aos
(às) usuários (as) ou terceiros (as) decorrentes de sua prestação de serviços de transporte.
No entanto, diversas decisões judiciais entenderam de modo contrário, afirmando que a sua relação com
o passageiro é consumeirista, enquadrando-se no art. 14 do CDC e, consequentemente, a Uber responde
solidariamente por ações ou omissões do motorista.
Adotada essa premissa, a Uber foi condenada ao pagamento de indenização por erro de rota praticado
pelo motorista, ao conduzir o passageiro ao aeroporto (Decisão da Primeira Turma Recursal dos Juizados Espe-
ciais do Distrito Federal. Processo N. Recurso Inominado 0736066-25.2017.8.07.0016, da Lavra do MM. Juiz
Fabrício Fontoura Bezerra).
No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na decisão proferida na Terceira Turma Recursal Cível (Recur-
so Inominado 71007990971), a relação também foi considerada de consumo e a empresa foi condenada ao
pagamento de indenização ao passageiro que sofreu danos corporais por manobra feita pelo motorista. Na
fundamentação, o Exmo. Relator Cleber Augusto Tonial ressaltou que [...] “o fato do motorista ser ou não em-
pregado do UBER não é questão decisiva. O art. 34 do CDC prevê a responsabilidade solidária do fornecedor
de serviços por atos de seus representantes autônomos”. E também afirmou que “[...] na pior das hipóteses
o UBER também poderia ser chamado a responder na condição de mandante”, conforme art. 656 do Código
Civil (p. 3).
Denota-se, portanto, que, no caso da relação cível entre a empresa e o passageiro, a Uber não logrou
êxito em se isentar do dever de indenizar que decorre da responsabilidade civil que emana dos negócios jurídi-
cos realizados. Prevaleceu, neste particular, o entendimento de que a legislação brasileira existente é suficiente
para imputar à empresa o dever de indenizar nas hipóteses de incidência previstas no Código Civil, apesar de a
empresa tentar expungir essa responsabilidade das suas cláusulas contratuais por ela impostas unilateralmente.
3.2. Natureza da relação jurídica entre a Uber e motorista
Por outro lado, em relação à natureza jurídica da relação entre a Uber e os motoristas, a celeuma que se
instalou tem se perpetuado porque, embora a versão da Uber de que os motoristas sejam autônomos tenha
tido grande aceitação nos tribunais brasileiros, seja no âmbito da Justiça Comum(18), seja no âmbito da Justiça
do Trabalho(19), há também várias decisões(20) de primeiro e segundo graus que refutaram a tese da empresa e
reconheceram que a relação é subordinada e, portanto, regulada pelo direito do trabalho.
O ponto sensível dessa discussão, no caso brasileiro, reside no fato de que, pela legislação vigente, se a
relação existente entre o motorista e a empresa for considerada de natureza autônoma, não incidirá nenhuma
(17) Extraído dos autos do Inquérito Civil 001417.2016.01.000/6-10.
(18) Nos autos números 5008316.39.2017.8.09.0051 (1ª Vara do Juizado Especial Cível — Goiânia), 0710546-77.2018.8.07.0000 (6ª
Turma Cível do TJDF), 1007115-80.2018.8.26.0016 (1ª Vara do Juizado Especial Cível — Vergueiro), por exemplo, os motoristas questio-
naram promessas de prêmios ou a rescisão do contrato diretamente na Justiça Estadual, e todos os magistrados adentraram o mérito
sem refutar a competência material para tanto, demonstrando que entendem que a relação é de natureza cível.
(19) Exemplos de decisões que negaram o reconhecimento de vínculo empregatício dos motoristas com a empresa Uber: Processo n.
1001574-25.2016.5.02.0026 (TRT 2) — julgado improcedente em 1ª e 2ª instâncias; Processo n. 0010947- 93.2017.5.15.0093 (TRT15)
— julgado improcedente em 1ª e 2ª instâncias — e Processo n. 0010570-88.2017.5.03.0180 (TRT 3) — julgado procedente em 1ª ins-
tância, sentença reformada em 2ª instância, afastando o vínculo.
(20) Decisões que acolheram o pedido de reconhecimento de vínculo empregatício entre motoristas e a Uber: Processo n. 0100351-
05.2017.5.01.0075 (TRT 1); Processo n. 1000123-89.5.02.0038 (TRT 2) — vínculo julgado improcedente em 1ª instância, sentença
reformada em 2ª instância, concedendo o vínculo e Processo n. 0010635-18.2017.5.03.0137 (TRT 3).
62 Ana Paula Silva Campos Miskulin
regra do Direito do Trabalho, o qual só pode ser invocado nos casos em que a natureza da relação de trabalho
é de caráter subordinado.
Isso impede, por exemplo, que motoristas de aplicativos se agremiem num sindicato e entabulem um
acordo coletivo entre este e a empresa, pois, no Brasil, as negociações coletivas somente são possíveis median-
te a participação do sindicato representativo da categoria profissional dos empregados, conforme arts. 511 e
Para Arun Sundararajan, a questão entre empregado subordinado e autônomos não é nova, nem se
trata de um novo desafio posto pelas gigantes da economia de compartilhamento (2016, p. 178-179).
O autor prossegue afirmando que a determinação desse enquadramento não é algorítmica e que exis-
tem diversas diretrizes para definir esse status do prestador de serviços e diz que, […] “ na verdade, as
questões discutidas são sempre sobre o quanto o contratado é independente e quanto controle o potencial
empregador exerce sobre o potencial contratado/empregado(21)” (2016, p. 179).
Nesse aspecto, é importante ressaltar que, embora a definição da condição de empregado, bem como e,
mais ainda, os direitos e obrigações daí advindos possam variar de um país para o outro, os elementos utiliza-
dos para apresentar esse enquadramento costumam ser bem semelhantes.
No caso americano, por exemplo, Arun Sundararajan cita as questões que devem ser respondidas, por
meio do formulário SS-8, do Internal Revenue Service (2016, p. 179), para definir a condição de empregado
do trabalhador, apontando os seguintes fatores:
A) comportamental: A companhia controla ou tem o direito de controlar o que o trabalhador faz e como
o (a) trabalhador (a) faz seu trabalho? b) Financeiro: os aspectos comerciais do trabalho prestado são
controlados pelo pagante? Isso inclui questões sobre como o trabalhador é pago, se as despesas são
reembolsadas e quem fornece as ferramentas/suprimentos; c) Tipo de relação: há contratos escritos ou
benefícios típicos de empregados (como plano de pensão, seguros ou pagamento de férias)? A relação
é contínua e o trabalho desempenhado é um aspecto chave do negócio?(22)” (tradução nossa)
No caso do Brasil, os requisitos exigíveis para o reconhecimento da relação de emprego são muito pró-
ximos a esses citados, conforme se extrai do art. 3º da CLT, quais sejam, subordinação, onerosidade e não
eventualidade, acrescentando-se também a pessoalidade.
No entanto, é interessante notar que as duas primeiras sentenças brasileiras que apreciaram o caso se ba-
searam numa realidade fática bem semelhante, para atingirem decisões em sentidos completamente opostos.
A primeira(23) decisão proferida no Brasil a esse respeito, por exemplo, entendeu que não houve o requisi-
to da subordinação, porque não havia “verdadeiras ordens e determinações” por parte da empresa, mas
apenas recomendações quanto ao modo de o autor se portar, e acolheu a tese de que a Uber é uma empresa
de fornecimento de serviços de tecnologia, e não de transporte de passageiro.
A segunda(24) decisão brasileira, por sua vez e de modo contrário, reconheceu o vínculo empregatício
em razão da configuração no caso de todos os requisitos da relação de emprego, acolhendo a caracterização
da subordinação, pois havia controle do trabalho por parte da reclamada, que também fornecia treinamento
e aplicava penalidades.
(21) Tradução livre do original: “True, the issues discussed are always about how independent the contractor is, and how much control
the potential employer exerts on the potential contractor/employee”.
(22) Tradução livre do original: “A) Behavioral: Does the company controlo or have the right to control what the worker does and
how the worker does his or her job? B) Financial: Are the business aspects of the worker’s job controlled by the payer? These include
things such how the worker is paid, whether expenses are reimbursed, and who provides tool/supplies. c) Tip of relationship: Are there
written contracts or employee-type benefits (like a pension plan, insurance, or vacation pay)? Will the relationship continue, and is the
work performed a key aspecto of the business?”
(23) MINAS GERAIS, 2017. Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Processo n. 0011863-62.2016.5.03.0137. Autor: Artur Soares
Neto. Réu: Uber do Brasil Tecnologia Ltda. 31.01.2017.
(24) MINAS GERAIS, 2017. Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Processo n. 0011359-34.2016.5.03.0112. Autor: Rodrigo Leo-
nardo Silva Ferreira. Réu: Uber do Brasil Tecnologia Ltda. 13.02.2017.
Uber: da Ficção à Realidade 63
Denota-se, portanto, que a distinção não se apresenta na realidade fática da relação entre o motorista e
a Uber, e sim na visão que cada magistrado tem dessa nova forma de trabalhar.
O que fica claro, porém, é que, muitas vezes, a subsunção do fato à norma é feita como se as relações
de trabalho ainda se amoldassem à lógica fordista, quando o trabalho era prestado necessariamente nas de-
pendências do empregador e o comando exercido pelo empregador era feito de modo presencial e direto e
quando, na verdade, hoje há inúmeras atividades profissionais que podem ser desenvolvidas pelo empregado,
sem que o empregado sequer tenha contato pessoal ou telefônico com seu empregador.
Um exemplo disso é o trabalho dos moderadores de jogos online, mais voltados para o público infantoju-
venil, o qual exige que haja a presença de um moderador no aplicativo durante 24 horas por dia.
Gauthier (2016, p. 122) ressalta que os indícios de subordinação presentes nas relações em que também há
características de trabalho independente [...] “revelam a insuficiência do enfoque tradicional para resolver novas
realidades que se distanciam bastante daquelas que deram origem ao Direito do Trabalho(25)” (tradução nossa).
Nesse contexto, ao fazer a análise técnica dos requisitos da relação de emprego, não parece razoável re-
futar a subordinação jurídica sob o fundamento de que o trabalhador não tem uma carga horária de trabalho
predeterminada ou de que tem a possibilidade de eleger os dias em que vai trabalhar. Esse raciocínio parece
não acompanhar a tendência legislativa brasileira, cuja tônica tem sido alargar a flexibilidade dos vínculos de
emprego, exatamente para contemplar as necessidades de empregados e empregadores.
Há um clamor dos empregadores no sentido de que possam contratar trabalhadores somente por algu-
mas horas ou em dias em que haja maior demanda de serviços, assim como, supostamente, há o interesse do
empregado de conciliar atividades pessoais com as horas de trabalho, tendo maior flexibilidade em relação
à sua jornada. Foi assim que o ordenamento jurídico brasileiro justificou(26) a adoção do contrato de trabalho
intermitente, introduzindo na Consolidação das Leis do Trabalho os arts. 443, parágrafo terceiro(27), e 452-A
da CLT, por meio da Lei n. 13.467/2017. Essa nova modalidade de contrato faculta ao empregado a opção
de aceitar, ou não, o chamado do empregador e não exige que o empregador propicie ao trabalhador um
número mínimo de dias de trabalho, aliás, nem sequer estipula o prazo máximo que o contrato pode perdurar
sem que haja trabalho.
Diante disso, a partir da possibilidade de se firmar um contrato de trabalho sem a necessidade do requisito
“não habitualidade”, não faz sentido deixar de reconhecer a natureza empregatícia entre motoristas e a Uber.
Do mesmo modo, não encontra respaldo na realidade o entendimento de que o motorista de Uber é
autônomo, pois o trabalhador autônomo dirige o próprio trabalho e tem conhecimento de como desempenhá-
-lo com independência e sem necessidade de treinamento.
De Plácido e Silva ensina que autônomo [...] “é uma palavra que serve de qualificativo a tudo que possui
autonomia ou independência, isto é, de tudo quanto possa funcionar ou manter-se independentemente de
outro fato ou ato”. Dificilmente o motorista de Uber poderia desempenhar a atividade de recolher passageiros
se não estivesse cadastrado e vinculado à plataforma Uber, por meio da qual o passageiro contrata a corrida.
A rede de clientes pertence à plataforma da Uber, que é quem faz o cadastro do passageiro; o motorista
não tem como se conectar aos clientes para acertar detalhes do serviço (por exemplo, a questão de despesas
com pedágio ou preço); o motorista nem sequer sabe o destino do passageiro, do qual só toma conhecimen-
to depois que aceita o trabalho; a empresa estipula um percentual máximo de cancelamento de corridas; a
(25) Tradução livre do original: “resultan reveladores de la insuficiencia del enfoque tradicional para resolver nuevas realidades que
distan bastante de las que originaron el surgimento de la disciplina del Derecho del trabajo”.
(26) De acordo com o parecer elaborado pela comissão especial, ao apreciar o Projeto de Lei n. 6.787/2017, que culminou na Lei n.
13.467/2017, o contrato de trabalho intermitente permitiria “atender a demandas específicas de determinados setores, a exemplo dos
setores de bares e restaurantes ou de turismo”. Além de impactar a geração de empregos, fomentaria a contratação de estudantes
que poderiam “adequar as respectivas jornadas de trabalho e de estudo da forma que lhes for mais favorável” (Parecer Comissão
Especial da Reforma Trabalhista, 2017).
(27) Art. 443, § 3º: “Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não
é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses,
independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria”.
64 Ana Paula Silva Campos Miskulin
empresa estipula o preço da corrida e fornece ao passageiro desconto sem a participação do motorista; o
motorista não pode recolher um passageiro fora da área de atuação da empresa; o motorista que prestará o
serviço é escolhido pela Uber, e não pelo passageiro, e a empresa pode suspender e desligar o motorista do
aplicativo.
Foi nessa linha que a decisão judicial proferida pelo Employment Tribunal of London decidiu que [...] “a
Uber administra uma empresa de transporte. Os motoristas fornecem a mão de obra qualificada através da
qual a organização empresarial presta seus serviços e aufere lucros(28)” (2016, p. 29).
Essa decisão retratou muito bem a realidade dos motoristas em relação à empresa Uber, ao dizer no item
100 (2016, p. 32):
[...] É essencial para os negócios da Uber manter um conjunto de motoristas que podem ser chama-
dos como e quando surgir uma demanda por serviços de motoristas. A excelente experiência que a
organização procura oferecer depende de sua capacidade de levar os motoristas aos passageiros o
mais rápido possível. Para estar confiante em satisfazer a demanda, deve, a qualquer momento, ter
alguns de seus motoristas transportando passageiros e alguns esperando a oportunidade de fazê-
-lo. Estar disponível é uma parte essencial do serviço prestado pelo motorista da Uber(29).
O desafio que remanesce, portanto, é fazer com que o Direito do Trabalho possa também regulamentar
as relações de trabalho prestadas por meio das plataformas virtuais, adequando-se à nova realidade fática
que se instalou, e não simplesmente deixar de aplicá-lo, numa lógica que privilegia o capital em detrimento da
pessoa humana do trabalhador.
Considerações f‌i nais
Com base na premissa de que a empresa Uber é uma empresa que se vale da tecnologia para prestar
um serviço moderno e eficaz de transporte, para o qual é indispensável a participação dos motoristas que
arregimenta, defende-se que a análise sobre a configuração do vínculo empregatício seja feita caso a caso.
Espera-se também que a mesma preocupação externada pelas cortes de justiça, no sentido de proteger
o consumidor, ocorra também quando a relação for analisada sob a ótica do motorista trabalhador, e que
as autoridades legislativas se apressem em regulamentar essas relações nos aspectos não contemplados pela
legislação em vigor.
Nesse sentido, cita-se a iniciativa do legislador português, ao promulgar a Lei n. 45/2018, que, além de
prever em seu art. 10 a possibilidade de aplicação do art. 12 do Código do Trabalho de Portugal, que trata da
presunção do contrato de trabalho, cuidou também de limitar a jornada praticada pelo motorista em dez horas
diárias.
A realidade é que cada vez mais os trabalhadores têm preferência por uma atividade que não lhes de-
mande tempo integral, o que já se faz presente em muitas funções cuja exigência técnica é maior. É por isso
que o legislador acrescentou(30) a presunção de que o trabalho prestado longe dos olhos do empregador não
possibilita o controle de horário ou de horas extras.
Até mesmo o legislador brasileiro, que nunca lançou nenhuma regulação sobre a tipificação ou direitos no
contexto de contratos formados na economia colaborativa, avançou ao introduzir o parágrafo único no art. 6º
(28) Tradução livre do original: “Uber runs a transportation business. The drivers provide the skilled labour through which the organ-
isation delivers its services and earns its profits”.
(29) Tradução livre do original: “It is essentia to Uber’s business to maintain a pool of drivers who cab be called upon as and when
a demand for driving services arises. The excellen ‘rider experience’ which the organisation seeks to provide depends on its ability to
get drivers to passengers as quickly as possible. To be confidente of satisfying demand, it must, at any one time, have some of its
drivers carrying passengers and some waiting for the opportunity to do so. Being available is an essential part of the service which
the driver renders to Uber”.
(30) De acordo com o art. 62, III da Consolidação das Leis do Trabalho, não são abrangidos pelo regime previsto no capítulo que trata
da duração da jornada os trabalhadores em regime de teletrabalho.
Uber: da Ficção à Realidade 65
da CLT, para dizer que, para fins de subordinação jurídica, não faz diferença se os meios de controle, comando e
supervisão do trabalho são telemáticos (ou informatizados) ou são exercidos de forma pessoal e direta.
Conforme ensinam Gomes e Gottschalk, não se pode olvidar dos motivos pelos quais o direito do trabalho
se deslocou do Direito Civil, fazendo com que o princípio da autonomia da vontade passasse a sofrer a inge-
rência do Estado, na medida em que [...] “a desigualdade real entre os homens, resultante da diversidade da
situação econômica, era sancionada pelo Direito, que permitia, assim, a opressão do fraco pelo forte (2007,
p. 119).
É preciso, assim, pensar no futuro das relações de trabalho, mas jamais se apoiar em soluções que dei-
xem o trabalhador desamparado, pois o que se nota é que, enquanto em outros países, como a Dinamarca,
foi adotada a flexissegurança(31) “como uma modalidade socialmente legítima de flexibilização” (FELICIANO,
2013, 140), mas que também buscou outros mecanismos para compensar essa mobilidade do trabalhador,
no direito brasileiro a preocupação se volta única e exclusivamente ao mercado, não se importando com a
pessoa humana do trabalhador nem com as suas condições sociais. Defende-se uma total desregulamentação
das relações de emprego, permitindo às pessoas trabalhar sem proteção alguma, no âmbito tanto trabalhista
quanto previdenciário, usando o argumento fictício de que o trabalhador é autônomo, ou um microempreen-
dedor, o que é inadmissível.
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(31) De acordo com Guilherme Guimarães Feliciano, o conceito combina [...] “flexibilidade nos mercados de trabalho, seguridade
social apropriada (com a estipulação de novos direitos e obrigações para os desempregados) e políticas proativas naqueles mesmos
mercados (para geração de postos de trabalho e facilitação do respectivo acesso)”.
66 Ana Paula Silva Campos Miskulin
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