Abandono afetivo inverso

Páginas207-222
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ABANDONO AFETIVO INVERSO
11.1 NOÇÕES INICIAIS
Por força do preceito estabelecido no art. 229 da CR/88, da mesma forma que os
pais têm o dever de assistir, criar e educar os lhos menores, também competirá aos
lhos maiores o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
Este dispositivo, como sabido, consagra o princípio da solidariedade e da reciprocidade
em questões familiares, conferindo relevo aos aspectos existenciais dos seus membros.
Anal, falar em família também é falar de afeto, não é mesmo?
Para além disso, a prática acima referida ampara-se no dever ao cuidado de
crianças e adolescentes e no dever de assistência a ascendentes idosos, carentes e
enfermos.
Trata-se, sem dúvida, de um reexo da ecácia horizontal dos direitos fundamen-
tais, que espraiam seus efeitos para as relações entre os indivíduos. Aliás, a literatura
constitucionalista aponta, ainda, que, dentro da classicação dos direitos fundamentais,
o art. 229 da CR/88 se insere nos denominados direitos a prestação material, sendo um
direito social por excelência.1 Esses direitos podem ou não demandar a edição de uma
lei infraconstitucional para regulamentá-los. Sendo necessária tal normatização legal,
serão denominados de direitos derivados a prestações.
Por outro lado, alguns direitos a prestações já possuem uma alta densidade con-
ceitual, independendo de qualquer norma infraconstitucional para serem exigíveis.
São considerados, portanto, autoaplicáveis, hipótese em que serão classicados e deno-
minados de direitos originários a prestações. Nas palavras de Gilmar Mendes Ferreira,
algumas “normas constitucionais que veiculam direitos a prestação material possuem
alta densidade normativa, no sentido de que estão enunciadas de modo a dar a perceber
o seu conteúdo com a nitidez necessária para que produzam os seus principais efeitos.
Não necessitam da interposição do legislador para lograr aplicação sobre as relações
jurídicas. Tais normas, que permitem imediata exigência pelo indivíduo da satisfação
do que comandam, veiculam os chamados direitos originários a prestação”.2
1. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2015, p. 161.
2. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2015, p. 161.
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DIREITO DAS FAMÍLIAS E DA PESSOA IDOSA • Patricia Novais calmoN
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Essa última hipótese é justamente o caso do direito/dever que se extrai a partir da
leitura do art. 229 da CR/88. E, deveras, não é necessário que o legislador infraconstitucio-
nal edite lei para regulamentar a forma pela qual esse direito/dever deve ser desenvolvido.
É o que sustenta o doutrinador mineiro Dimas Messias de Carvalho, ao armar
que a “ausência da legislação especíca de dano moral por abandono inverso não exclui
o ato ilícito praticado pelos lhos que violaram o dever de cuidar”.3
É claro que em cada relação familiar haverá peculiaridades e, por isso, tal direito/
dever de assistência será distinto a partir da análise de cada caso concreto. Contudo, é
essencial destacar que o preceito constitucional não é tão subjetivo assim, possuindo
um viés objetivo identicável para o seu cumprimento. Esse caráter objetivo seria justa-
mente o dever de cuidado, consistente na obrigação dos pais de criar, educar e ter em sua
companhia em relação aos seus lhos e no dever dos lhos em assistir as necessidades
dos seus pais na velhice, carência ou enfermidade (dever de assistência).
Abandonar materialmente os lhos ou os pais na velhice pode acarretar, inclusive,
o ilícito penal de abandono material. Tal crime se verica quando alguém deixar, sem
justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, de lho menor de idade ou inapto ao
trabalho, ou de ascendente inválido ou idoso, não lhes proporcionando os recursos
necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada,
xada ou majorada e, ainda, deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascen-
dente, gravemente enfermo (art. 244, Código Penal).
Mas, não só. No especíco contexto da pessoa idosa, será crime abandoná-la
em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres, ou
não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado (art. 98,
EPI), e, expor a perigo a sua integridade e saúde, física ou psíquica, submetendo-o
a condições desumanas ou degradantes ou privando-o de alimentos e cuidados
indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-o a trabalho excessivo ou
inadequado (art. 99, EPI).
Para além de responsabilização criminal, o STJ já deniu que o abandono material
também pode viabilizar a responsabilização civil.4
3. CARVALHO, Dimas Messias de. Abandono afetivo do idoso e responsabilidade civil. Anais do XIII Congresso
Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões do IBDFAM: Prospecções sobre o presente e o futuro, 2021.
4. Recurso especial. Família. Abandono material. Menor. Descumprimento do dever de prestar assistência
material ao lho. Ato ilícito (CC/2002, arts. 186, 1.566, IV, 1.568, 1.579, 1.632 e 1.634, I; ECA, arts. 18-A, 18-B
e 22). Reparação. Danos morais. Possibilidade. Recurso improvido. 1. O descumprimento da obrigação pelo
pai, que, apesar de dispor de recursos, deixa de prestar assistência material ao lho, não proporcionando a este
condições dignas de sobrevivência e causando danos à sua integridade física, moral, intelectual e psicológica,
congura ilícito civil, nos termos do art. 186 do Código Civil de 2002. 2. Estabelecida a correlação entre a
omissão voluntária e injusticada do pai quanto ao amparo material e os danos morais ao lho dali decorren-
tes, é possível a condenação ao pagamento de reparação por danos morais, com fulcro também no princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana. 3. Recurso especial improvido. (STJ, REsp: 1087561/RS, Rel.
Min. Raul Araújo, T4, DJe de 18.08.2017).
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