Algumas Questões sobre o Direito à Desconexão dos Trabalhadores

AutorTeresa Coelho Moreira
Páginas62-80
ALGUMAS QUESTÕES SOBRE O DIREITO À
DESCONEXÃO DOS TRABALHADORES
Teresa Coelho Moreira
(1)
(1) Doutora em Direito. Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho. Membro da Direção da APODIT – As-
sociação Portuguesa de Direito do Trabalho. Membro integrado do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação da Escola
de Direito da Universidade do Minho e coordenadora do Grupo de Investigação em Direitos Humanos do mesmo. E-mail:
direito.uminho.pt>.
(2) Ver o esquema com diferentes fases de evolução apresentado em RODES, Jean-Michel ; PIEJUT, Geneviève; PLAS, Emmanuelle.
Memory of tthe information society. Paris: UNESCO, 2003. p. 11.
(3) Há que referir que não existe um conceito unívoco de Inteligência Artificial, principalmente porque tem de se relacionar com
outro conceito que também é difícil de definir e que é o de inteligência humana e que a mesma coloca várias questões que ultrapas-
sam, largamente, o âmbito deste nosso artigo mas, apenas para referir algumas, desde logo a questão da proteção e propriedade dos
dados que constituem a base de trabalho para a Inteligência Artificial; ou questões relativas à responsabilidade por exemplo no caso
dos carros autónomos; ou o direito à privacidade porque todos vamos deixando uma série de pistas digitais que permitem a compara-
ção à entrada de determinados locais de uma cópia digitalizada e a imagem da pessoa em causa e, em especial no caso das relações
de trabalho, o trabalhador encontra-se, por esta via, amplamente radiografado e informações colocadas on-line podem perdurar no
ciberespaço por muito tempo, correndo o risco de ficarem completamente desatualizadas e com a inerente descontextualização dos
dados.
(4) Mediante novas formas de contratação on-line, inter alia, com o recurso a um novo tipo de entrevistas, ou de recurso a plata-
formas digitais de emprego.
(5) Por meio de, inter alia, um novo tipo de formação ao longo da vida, de um novo controlo, o controlo eletrónico/digital, um
novo tempo de trabalho, ou de um novo tipo de Direito Coletivo.
(6) Cf., para maiores desenvolvimentos, inter alia, ILO, Work for a brighter future – Global Commission on the Future of Work,
Genebra, 2019, Instituto de Estrategia Legal en RRHH, Inteligencia artificial y sus impactos en los Recursos Humanos y en el Marco
Regulatorio de las Relaciones Laborales, WoltersKuwer, Espanha, 2018, 4ª Revolución Industrial: Impacto de la Automatización y la
Inteligencia Artificial en la Sociedad y la Economía Digital, Thomson Reuters, Aranzadi, Espanha, 2018, e WEF, The Future of Jobs
Report, 2018.
(7) Projeto que ainda vai ser discutido.
(8) Introducción al Derecho del Trabajo. 4. ed. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1981. p. 100 e ss.
1. O progresso da humanidade está, muitas vezes, as-
sociado ao fascínio perante a ciência e a tecnologia por
originarem inovações que fazem avançar a humanidade:
da roda ao microprocessador, do ábaco ao computador,
da imprensa escrita à Internet e à web, inter alia(2). E,
atualmente, a Inteligência Artificial(3) veio para ficar e in-
cide sobre inúmeros aspetos da vida das pessoas em geral
e dos trabalhadores em especial desde o momento de for-
mação do contrato de trabalho(4), passando pela execução
do mesmo(5) e terminando na sua cessação(6). A própria
União Europeia num Documento de 8 de abril deste ano
sobre Ethic Guidelines for Trustworthy AI estabeleceu que
deveria defender-se sempre o respeito pela autonomia
humana, pela transparência, pela privacidade e pela pro-
teção de dados pessoais das pessoas, assegurando a defesa
da igualdade e a proibição da discriminação, defendendo
sempre a pessoa humana nas suas várias vertentes.
Muito recentemente também, o Projeto de Lei n. 1.217/
XIII, que aprova a Carta dos Direitos Fundamentais na
Era Digital(7), apresentado no dia 15 de maio deste ano,
aborda a questão da inteligência artificial, desde logo no
art. 7º, assim como o direito à privacidade digital e alguns
direitos específicos relativamente aos trabalhadores nos
artigos 15 a 18, alguns que podem considerar-se novos, e
outros que são uma especificação do Código do Trabalho
de Portugal.
2. Secundando Alonso Olea(8), já desde a Revolução In-
dustrial, há uma “simbiose” entre a ciência e a tecnologia
que se repercute no Direito do Trabalho e que permitiu “a
passagem para a indústria, para as máquinas e, consequen-
temente, para o trabalho, das ideias do sábio”. E o Direito do
Trabalho é um dos sectores do ordenamento jurídico que,
pela sua própria natureza, é mais exposto à influência das
Algumas Questões sobre o Direito à Desconexão dos Trabalhadores 63
mudanças tecnológicas(9). Os sistemas produtivos têm-se ca-
racterizado pela sua contínua modernização e melhoria das
técnicas utilizadas de tal forma que o emprego do termo no-
vas tecnologias poderia se entender como uma característica
permanente deste ramo do Direito, perfeitamente aplicável
a cada uma das suas fases ou etapas cronológicas ou, até
mesmo, uma redundância. Desde que Adam Smith conso-
lidou a ideia da organização do trabalho, socorrendo-se do
exemplo da fábrica de alfinetes(10), a história da industriali-
zação está estreitamente ligada às transformações e mudan-
ças nos métodos de organização do trabalho(11).
3. E o setor das TIC tem revolucionado imenso o Direi-
to do Trabalho, mas não só. O surgimento das plataformas
digitais é enorme e em menos de uma década foram cria-
das cerca de 10.000 companhias ou plataformas e muitos
empregos foram instituídos(12). Atualmente, há uma app
para tudo ou quase tudo, desde atividades mais simples,
como entrega de comida, até atividades mais complexas,
como prestação de serviços jurídicos, surgindo todos os
dias novas plataformas. Por outro lado, mesmo aquelas
que estão bem sedimentadas no mercado quase que se
reinventam todos os dias ou variam a sua aplicação de
país para país(13).
Nesta nova sociedade digital, existiu uma transforma-
ção radical da economia, na medida em que há uma redução
enorme dos custos de informação e de coordenação, e
surgem as plataformas digitais e uma nova economia, a
economia partilhada ou colaborativa que, na noção apre-
sentada pela Comissão Europeia em 2 de junho de 2016,
no Documento Uma Agenda Europeia para a Economia Co-
laborativa, refere-se a “modelos empresariais no âmbito
dos quais as atividades são facilitadas por plataformas co-
laborativas que criam um mercado aberto para a utilização
temporária de bens ou serviços, muitas vezes prestados
por particulares. São três as categorias de intervenientes na
economia colaborativa: (i) os prestadores de serviços que
partilham os ativos, os recursos, a disponibilidade e/ou
as competências – podem ser particulares que oferecem
(9) Neste sentido, ROYO, Miguel Rodríguez-Piñero. El jurista del trabajo frente a la economía colaborativa. In: ROYO, Miguel
Rodríguez-Piñero; BEJARANO, Macarena Hernández (Coords.). Economía colaborativa y trabajo en plataforma: realidades y desafíos.
Albacete: Editorial Bomarzo, 2017. p. 187-188.
(10) Neste exemplo, Adam Smith escolhe o famoso caso da fabricação de alfinetes para descrever a passagem do artesão até a
fábrica constatando que se um trabalhador isolado conseguia, anteriormente, produzir cerca de 20 alfinetes por dia, a separação de
tarefas e a colaboração entre os trabalhadores permite produzir 48 mil alfinetes, isto é, 2.400 vezes mais.
(11) Iniciava-se, desta forma, a “grande aventura”, desde a visão como uma promessa da divisão do trabalho até uma progressiva
incorporação da força de trabalho numa máquina, primeiro como energia motora, para depois ser energia operadora e, por fim, com
uma função de controlo. Vide CARINCI. Rivoluzione tecnológica e diritto del lavoro: il rapporto individuale. In: GDLRI, n. 25, p. 203,
1986.
(12) GRAHAM, Mark. The risks and rewards of online gig economy. Oxford Internet Institute, 2017.
(13) Vide PRASSL, Jeremias. Humans as a service – the promise and perils of work in the gig economy. Oxford: OUP, 2018. p. 12-13.
(14) Relatório sobre uma Agenda Europeia para a Economia Colaborativa, pontos 38 e 39.
(15) Considera ainda, no Ponto 44, que “muitas plataformas de intermediação em linha são estruturalmente semelhantes a agências
de trabalho temporário (relação contratual triangular entre: trabalhador temporário de uma agência/trabalhador de plataformas; agên-
cia de trabalho temporário/plataforma em linha; utilizador/cliente)”.
serviços numa base esporádica (“pares”) ou prestadores
de serviços que atuam no exercício da sua atividade pro-
fissional (“prestadores de serviços profissionais”); (ii) os
utilizadores desses serviços; e (iii) os intermediários que –
através de uma plataforma em linha – ligam prestadores
de serviços e utilizadores, facilitando as transações recí-
procas (“plataformas colaborativas”). Por via da regra, as
transações de economia colaborativa não implicam uma
transferência de propriedade, podendo ser realizadas com
fins lucrativos ou sem fins lucrativos”.
Esta economia colaborativa gera novas oportunidades,
para todos, podendo dar um importante contributo para a
criação de empregos, de regimes de trabalho flexíveis e de
novas fontes de rendimento, desde que seja devidamente
incentivada e desenvolvida de forma responsável.
Contudo, como também salienta a Comissão Europeia,
há vários problemas. Desde logo, a economia colaborati-
va levanta frequentemente questões no que diz respeito à
aplicação dos quadros jurídicos em vigor, diluindo a tradi-
cional distinção entre consumidor e fornecedor, trabalha-
dor por conta de outrem e trabalhador por conta própria,
prestação de serviços profissionais e não profissionais.
Também o próprio Parlamento Europeu(14) realça a im-
portância fundamental de proteger os direitos dos traba-
lhadores nos serviços colaborativos, chamando a atenção
para o facto de assegurar-se o direito de os trabalhadores
se organizarem e o direito à negociação e ação coletivas,
em conformidade com o direito e a prática de cada Estado-
-membro, salientando que todos os trabalhadores da eco-
nomia colaborativa são quer trabalhadores por conta de
outrem, quer trabalhadores por conta própria, consoante
a primazia dos factos, devendo ser classificados como tal,
devendo todos os Estados-membros garantir condições de
trabalho equitativas e uma proteção jurídica e social ade-
quada para todos os trabalhadores na economia colabora-
tiva, independentemente do seu estatuto(15).
4. Assim, depois de uma revolução agrícola, de uma
revolução industrial e de uma revolução informática onde
64
O MUNDO DO TRABALHO EM DEBATE
Estudos em Homenagem ao Professor Georgenor de Sousa Franco Filho
o papel cimeiro é ocupado pelo computador, hoje esta-
mos perante uma verdadeira revolução digital, associada
à internet, ao cloud computing e a novas formas de prestar
trabalho. Com esta, surge também o denominado trabalho
digital na economia colaborativa, em plataformas digitais,
e um novo tipo de trabalhador o que origina um novo tipo
de subordinação reforçada por “um espaço sem distâncias
e um tempo sem demoras”(16).
As bases para esta última revolução baseiam-se em sis-
temas de TIC’s, numa robótica cada vez mais desenvolvi-
da, em tecnologias de sensores, no cloud computing, numa
enorme recolha e tratamento de dados que, em razão da
Big Data, podem ser utilizados conjuntamente.
Estas novas possibilidades representam a base de uma
nova revolução relacionada com sistemas inteligentes e de
um novo sistema de trabalho com o surgimento da sharing
economy ou economia colaborativa. E, apesar de trazerem
grandes promessas de desenvolvimento, também originam
muitos desafios que requerem uma atuação proactiva de
empresas, governos, indivíduos e trabalhadores.
Estamos perante uma mudança que não é somen-
te estrutural mas, também, e principalmente, funcional,
no sentido de que mudou profundamente a maneira de
efetuar a prestação laboral. Esta situação implica uma
mudança capital e um redimensionamento do Direito do
Trabalho, já não tanto em sentido material de alteração da
sua extensão ou volume, mas um processo de revisão do
seu âmbito ou extensão, da sua intensidade e do nível que
se deve adotar na sua regulamentação, podendo se falar de
uma nova dimensão da sua disciplina.
E o trabalho está a se revelar um fator-chave nesta
transformação e revolução. Fala-se, assim, de trabalho
4.0, do trabalho na gig economy que inclui quer o Crowd-
work, quer o trabalho em plataformas – work-on-demand
via apps, e que, por isso, não se resume apenas à Indústria
4.0(17), já que se está a se referir ao trabalho do futuro(18).
(16) RAY, Jean-Emmanuel. Qualité de vie et travail de demain. In: Droit Social, n. 2, p. 148, 2015.
(17) Este termo provém de um programa comum lançado pelo Governo alemão e pela indústria alemã em 2011. Mais tarde, foi
utilizado no léxico da Comissão Europeia, bem como noutras regiões. O termo preferido no ordenamento jurídico norte-americano é
de smart manufacturing.
Pelo Cyber-physical systems, com um número elevado de robots que substituem o trabalho humano manual e com a utilização da big
data, monitoriza-se toda a produção, existindo uma flexibilização na produção e na personalização do produto final.
Este termo refere-se a uma verdadeira revolução no setor industrial e, no centro desta nova indústria, está uma elevada automatização
e interconexão de produção industrial, bem como processos virtuais e reais que emergem com base em sistemas cyber-physical, o que
permite uma produção mais eficiente, flexível, com uma grande personalização do produto final e com os desejos dos consumidores
a serem atendidos.
(18) E dados recentes estimam que nos EUA e na EU cerca de 1/3 da população adulta já participou na economia colaborativa, e
cerca de 1% a 5% já foi pago por trabalho realizado nas plataformas. Vide The social protection of workers in the platform economy.
União Europeia, 2017. p. 12.
(19) Vide ALOISI. Commoditized Workers: Case Study Research on Labor Law Issues Arising from a Set of On-Demand/Gig Economy
Platforms. In: Comparative Labor Law & Policy Journal, vol. 37, n. 3, p. 662, 2016, assim como BERG, Janine. Income security in the
on-demand economy: findings and policy lessons from a survey of crowdworkers. In: Comparative Labor Law & Policy Journal, v. 37,
n. 3, p. 557 e ss. 2016, e STEFANO, Valerio de. The Rise of the “Just-In-Time Workforce”: On-Demand Work, Crowdwork, and Labor
Protection in the “Gig-Economy”. In: Comparative Labor Law & Policy Journal, v. 37, n. 3, p. 480, 2016.
Claro que não há um conceito homogéneo ou monolíti-
co deste tipo de trabalho, já que são utilizados diferentes
métodos e formas de trabalhar, que podem ir desde tarefas
rotineiras, extremamente parceladas, monótonas, até tare-
fas mais complexas, novas onde o valor acrescido está na
qualificação e na inovação de quem presta.
O Crowdwork, em verdade, pode ser o crowdwork on-
-line, o crowdwork off-line, na medida em que há atividades
que podem ser realizadas completamente on-line e ofere-
cidas globalmente. Nestes casos, a concorrência também
é verdadeiramente global, e pode originar uma race to
the bottom. Estas atividades, normalmente oferecidas pela
cloud, podem incluir tarefas mal pagas, também chamadas
de microtarefas, assim como grandes tarefas a serem divi-
didas em pequenas tarefas para tornar mais simples e mais
barata a mesma. Como exemplos destas plataformas, te-
mos a Amazon Mechanical Turk e a Clickworker. Contudo,
também podem ser tarefas que exigem uma elevada quali-
ficação, mas isto não significa que sejam bem pagas porque
como a concorrência é verdadeiramente global pode não
se receber muito na mesma ou, até, não receber nada, por
causa da cláusula de satisfação do cliente.
Por outro lado, estas tarefas também são muito mal
pagas porque não se tem em atenção o tempo que os tra-
balhadores têm de estar disponíveis on-line, nem o tempo
que têm de estar à procura de uma tarefa.
Acresce ainda um outro problema nesta forma de pres-
tar trabalho e que é a da permanente disponibilidade dos
mesmos em termos temporais porque como trabalham on-
-line com fusos horários diferentes dos utilizadores e têm
prazos muito curtos para cumprir, têm de responder ime-
diatamente. Assim, a aparente flexibilidade destas formas
de prestar trabalho também necessita de ser repensada e há
sim um enorme controlo(19).
Existem, ainda, outras atividades que exigem uma pre-
sença física e, por isso, a concorrência não é global todavia,
Algumas Questões sobre o Direito à Desconexão dos Trabalhadores 65
levantam-se também várias questões e violação de regras
de Direito do Trabalho e de que o exemplo mais conhecido
é o da Uber enquanto plataforma digital relacionada com os
transportes, mas também plataformas digitais associadas a
serviços domésticos, desde limpeza, mudanças, bricolage.
Nestes últimos, o trabalhador da plataforma normalmente
entra em contacto direto com o utilizador.
Claro que esta divisão é importante do ponto de vista
do Direito a aplicar porque estas segundas são mais fáceis
de enquadrar nos meios tradicionais de resolução da lei
aplicável do que as primeiras(20).
As mudanças tecnológicas criam novos produtos, pro-
cessos e serviços, assim como novas necessidades e, nal-
guns casos até, sectores totalmente novos. A globalização
e as novas tecnologias impõem, de certa forma, novas re-
lações de trabalho ou, pelo menos, o repensar de algumas
relações. E o trabalhador atualmente, neste Mundo Novo
do Trabalho, para não ser excluído, tem de ter obrigatoria-
mente um QI digital mínimo que lhe permita conhecer,
sobreviver e conseguir trabalhar na era digital(21).
Em verdade, as TIC modificaram e continuam a
modificar as bases do Direito do Trabalho: um trabalho
muito subordinado, com um perímetro de tempos de tra-
balho bem definido, que agora sofre uma autêntica meta-
morfose, destruidora de emprego e criadora de um novo
conceito de subordinação. Contudo, também parece ser
importante assumir o desconhecimento e não realizar fu-
turologia até porque creio que tem de se atender que, nu-
ma primeira análise, estas mudanças ocorridas parecem
não ser novas já que o mundo assistiu a anteriores revolu-
ções industriais. Porém, numa análise mais aprofundada,
ver-se-á que esta revolução é diferente já que se atravessa
um período de uma evolução sistémica, excecional e ra-
ramente comparada a qualquer outra prévia(22). Não se
trata de crise, mas de uma verdadeira metamorfose; não
de passagem entre dois estados, mas sim de um salto para
o desconhecido.
Não há, assim, um conceito unívoco deste Trabalho
4.0 e a questão que se coloca do ponto de vista do género
é a de saber como aplicar a legislação nesta matéria a estas
novas formas de prestar trabalho.
(20) Veja-se neste sentido SIGNES, Adrián Todoli. Nuevos indícios de laboralidad como resultado de las nuevas empresas digitales.
In: Economía Colaborativa y..., cit., p. 224 e ss., assim como RISAK, Martin. Fair Working Conditions for Platform WorkersPossible
Regulatory Approaches at the EU Level. Friedrich-Ebert-Stiftung, 2017. p. 5-6 .
(21) RAY, Jean-Emmanuel. Les relations individuelles de travail 2016. França: Wolters Kluwer, 2015. p. 114 e ss.
(22) Conseil National du Numerique. Travail emploi numerique – Les nouvelles trajectoires, França, p. 8.
(23) Esta Convenção foi ratificada por Portugal pelo Decreto n. 15.361, de 3 de abril de 1928.
(24) Transformations du travail et devenir du droit du travail en Europe. Bélgica, 1999. p. 38, assim como em Au-delà de l’emploi.
Flammarion, 2016.
(25) BAPTISTA, Albino Mendes. Tempos de trabalho e de não trabalho. In: MOREIRA, António (Coord.). Memórias do V Congresso
Nacional de Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2003. p. 178.
(26) MOREIRA, António. Flexibilidade temporal. In: O direito do trabalho nos grandes espaços – entre a codificação e a flexibili-
dade. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2005. p. 135 e ss.; Flexibilidade temporal. In: FERNANDES, António Monteiro (Coord.).
Estudos de direito do trabalho em homenagem ao professor Manuel Alonso Olea. Coimbra: Almedina, 2004. p. 107.
5. As primeiras leis laborais, surgidas para pôr termo a
uma igualdade meramente formal no seio das relações de
trabalho, têm a sua base e ADN nos tempos de trabalho e
na sua necessária redução e limitação.
Em verdade, de jornadas de trabalho praticamente in-
findáveis – 16 e, até, 18 horas diárias, sem qualquer descan-
so –, foi-se caminhando, aos poucos, para a sua limitação.
E Portugal não foi exceção, com a divisão tripartida do dia
em 8 horas para trabalhar, 8 horas para dormir e 8 horas
para a realização social do trabalhador enquanto pessoa.
Era e é, ainda, a concretização da lenga-lenga britânica, ao
tempo da Revolução Industrial, eight hours to work, eight
hours to play, eight hours to sleep and eight shillings a day.
Esta temática é, pois, como que a marca de origem do
Direito do Trabalho, o seu código genético. Em verdade, a
primeira Convenção da OIT adotada em Washington a 28 de
novembro de 1919, e que entrou em vigor em 13 de junho
de 1921, limitava o tempo de trabalho para 8 horas diárias e
48 horas semanais nos estabelecimentos industriais(23).
Mais tarde, a limitação dos tempos de trabalho associa-
-se à ideia de partilha de emprego.
Hoje é também claro que a limitação dos tempos de traba-
lho visa, ainda, objetivos fundamentais de segurança e saúde
no trabalho. Assim, jornadas de trabalho infindáveis traduzem
uma muito maior propensão para a sinistralidade laboral.
A tutela da saúde do trabalhador pressupõe, igualmen-
te, que exista uma determinação quantitativa dos tempos
de trabalho, ou seja, a fixação de um limite máximo da du-
ração do trabalho.
Alain Supiot(24) vai mais longe e procede à interligação
da saúde e segurança no trabalho aos empregos precários
onde a incerteza do amanhã, a ignorância dos riscos e a
precariedade do emprego têm efeito sinergético incalculá-
vel na sinistralidade laboral.
Há ainda que lembrar que a não contenção dos tempos de
trabalho pode adensar o desemprego. Parece, pois, que a li-
mitação do tempo de trabalho não pode deixar de prosseguir,
também, objetivos de equilíbrio do mercado de emprego.
Em suma: o tempo de trabalho(25) é um dos temas mais
sensíveis da política laboral(26).
66
O MUNDO DO TRABALHO EM DEBATE
Estudos em Homenagem ao Professor Georgenor de Sousa Franco Filho
6. Por outro lado, defende-se que o trabalho dignifica
o homem. Contudo, esta ideia não se compadece com jor-
nadas de trabalho praticamente ilimitadas.
A nossa Constituição consagra, no art. 59, que todos os
trabalhadores têm direito ao repouso e aos lazeres, a um li-
mite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e,
na alínea b, garante-lhes o direito à organização do trabalho
em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar
a realização pessoal e a permitir a conciliação da atividade
profissional com a vida familiar, concretizando-se num dos
deveres do empregador no art. 127, n. 3, do Código do Tra-
balho, segundo o qual “O empregador deve proporcionar ao
trabalhador condições de trabalho que favoreçam a concilia-
ção da atividade profissional com a vida familiar e pessoal”.
Alain Supiot(27) preconiza que os tempos dedicados à
vida privada e familiar não devem significar “uma rutura
na biografia profissional do trabalhador” mas antes “um
momento normal da sua carreira”.
Conclui-se, assim, pelo necessário equilíbrio entre
tempos de trabalho e tempos livres, entre vida profissional
e vida pessoal e familiar.
7. Relativamente a este tema, a lei portuguesa assen-
ta no binómio tempos de trabalho/período de descanso.
O primeiro compreende duas modalidades diferentes: o
tempo de trabalho efetivo nos termos do art. 197, n. 1; e
os períodos de inatividade equiparados a tempo de traba-
lho e que são as interrupções e os intervalos previstos no
art. 197, n. 2.
Há ainda que ter em atenção que o tempo de trabalho
efetivo compreende não apenas o tempo em que o “traba-
lhador exerce a atividade”, isto é, em que desempenha a sua
prestação, mas também o tempo de disponibilidade para o
trabalho (“permanece adstrito à realização da prestação”).
O período de descanso tem uma noção negativa no
sentido de que é “o que não seja tempo de trabalho”.
Convém também atender que a lei nacional depois
entende definir vários conceitos operatórios nesta matéria
como o do período normal de trabalho que nos termos do
art. 198 é “O tempo de trabalho que o trabalhador se obri-
ga a prestar, medido em número de horas por dia e por se-
mana” e o horário de trabalho – art. 200 é a “determinação
das horas de início e termo do período normal de trabalho
diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso
semanal”. Desta forma, o horário de trabalho delimita o
período normal de trabalho diário e semanal.
Por outro lado, o art. 203 do CT estabelece que o pe-
ríodo normal de trabalho diário não pode exceder 8 horas
por dia e 40 horas por semana (com as exceções previstas
no CT, inter alia, IRCT, banco de horas, adaptabilidade,
horário concentrado, trabalho suplementar.
Também o art. 199 do CT entende por período de des-
canso o que não seja período de trabalho.
(27) Transformations du travail..., cit., p. 38 e ss., e Au-delà..., cit., p. 125.
Nos termos do art. 214, o trabalhador tem direito a
um período de descanso de, pelo menos, 11 horas segui-
das entre 2 períodos diários de trabalho consecutivo e no
art. 213, n. 1, o período de trabalho diário deve ser inter-
rompido por um intervalo de descanso, de duração não
inferior a uma hora nem superior a duas, de modo que o
trabalhador não presta mais de 5 horas de trabalho con-
secutivo, ou 6 horas de trabalho consecutivo caso aquele
período de trabalho seja superior a 6 horas.
O art. 232, n. 1, do CT, prescreve que o trabalhador
tem direito a, pelo menos, um dia de descanso por semana,
podendo ser contratualizado, por via de IRCT ou contrato
de trabalho, mais do que um dia por semana e há a consa-
gração de que a violação do direito ao descanso constitui
uma contraordenação grave.
Assim, parece que o direito ao descanso do trabalhador
tem implícita a possibilidade de o trabalhador desligar-se
do ambiente de trabalho – com tudo o que isso implica, até
mesmo permanecer off-line – fora dos limites do seu pe-
ríodo de trabalho como acontece, inter alia, nos períodos
de descanso intercorrentes, nos dias de descanso semanal,
nos períodos de férias.
Desta forma, parece à primeira vista que, do ponto de
vista legal, nada impede o trabalhador de, uma vez findo
o seu período de trabalho, fazer cessar a sua disponibili-
dade para atender ou dar resposta a chamadas telefónicas,
e-mails, sms, whatsapps de índole profissional que, entre-
tanto, lhe cheguem e de manter-se off-line até o termo do
seu período de descanso.
Contudo, a flexibilidade do regime de tempo de traba-
lho, associada às tecnologias digitais elimina, na prática,
as fronteiras entre tempo de trabalho e tempos de não tra-
balho, uma vez que hoje mais do que nunca, as empresas
esperam que o trabalhador esteja contactável em qualquer
lugar e a qualquer momento, simplesmente porque lhe
forneceram um telemóvel ou um computador e porque o
trabalhador não tem um horário fixo.
Por outro lado, no universo empresarial português,
predominam largamente os regimes de tempo de trabalho
flexível, tanto em geral como por sectores de atividade,
observando-se que os modelos de flexibilidade do tempo
de trabalho são variados e têm origem tanto nos instru-
mentos de regulamentação coletiva de trabalho como em
esquemas individuais e empresariais. Neste ponto, o pe-
so relativo dos instrumentos de regulamentação coletiva
de trabalho na determinação de tais regimes tem vindo a
decrescer nos últimos anos e, entre 2010-2016, a relação
entre regimes de trabalho flexível e de trabalho rígido alte-
rou-se, praticamente, em todos os sectores, no sentido do
aumento do peso relativo do trabalho flexível.
No que toca ao tempo de trabalho, foram consagrados
diversos regimes de adaptabilidade mesmo, que assentam
Algumas Questões sobre o Direito à Desconexão dos Trabalhadores 67
na determinação dos limites do período normal de tra-
balho em termos médios e por reporte a um período de
referência muito mais extenso do que a base semanal tra-
dicional. Como é sabido, estes regimes podem ser esta-
belecidos por instrumento de regulamentação coletiva de
trabalho, no âmbito da empresa ou até no contrato de tra-
balho (adaptabilidade por convenção coletiva, individual
e grupal, banco de horas por convenção coletiva, grupal e
individual e horário concentrado – arts. 203 a 209 do CT),
e esbatem a clareza do binómio trabalho normal/trabalho
suplementar, gizada pela LCT e pela LDT com base num
modelo de tempo de trabalho rígido e invariável.
Por outro lado, alguns contratos de trabalho especiais,
entretanto, introduzidos, permitem também modelar o
tempo de trabalho e os tempos de não trabalho de uma
forma mais flexível – é o caso do contrato de trabalho a
tempo parcial (arts. 150 a 156 do CT) e do contrato de
trabalho intermitente (arts. 157 a 160 do CT).
Assim, em matéria de tempo de trabalho, o regime la-
boral nacional é hoje dotado de uma elevada flexibilida-
de(28).
8. Atualmente, uma das mais evidentes áreas de influên-
cia das tecnologias digitais no mundo do trabalho está rela-
cionada com o tempo de trabalho. Esta divisão tradicional
e estes conceitos diluem-se com a inserção da tecnologia
nas relações de trabalho.
Em verdade, novos problemas levantam-se a esta li-
mitação dos tempos de trabalho e que estão claramente
relacionados com as novas tecnologias e com novas formas
de prestar trabalho.
Historicamente, a temática da organização dos tempos
de trabalho é a “marca de origem” do Direito do Traba-
lho e foi sempre uma das suas matérias mais importan-
tes e também mais complexas para ser tratada. O regime
tradicional nestas matérias, como referido anteriormente,
tinha subjacente a realidade do trabalho industrial, pelo
que assentava numa concessão rígida e muito estável do
tempo de trabalho, baseando-se nos conceitos operativos
já mencionados, e que eram determinados em moldes fi-
xos, numa base diária e semanal, que permitia estabelecer
uma divisão clara entre o trabalho designado como normal
e o trabalho suplementar que incluía toda e qualquer ati-
vidade realizada fora ou para além do horário de trabalho
determinado e que tinha por base claramente um carácter
extraordinário, nos termos do art. 227.
Contudo, este paradigma foi ultrapassado na medida
em que se evoluiu de um regime de matriz rígida tradi-
cional para parâmetros de elevada flexibilidade, estando
(28) RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Economia digital e negociação coletiva. CRL, 2019.
(29) Cf. João Leal Amado. Tempo de trabalho e tempo de vida: sobre o direito à desconexão profissional. Revista do Tribunal Regio-
nal do Trabalho da 15ª Região, Campinas, Brasil, n. 52, p. 256 e ss. Maria do Rosário Palma Ramalho. Economia digital e negociação
coletiva. Lisboa: CRL, 2019. p. 58-59.
(30) RAY, Jean-Emmanuel. Qualité de vie et travail de demain. In: Droit Social, n. 2, p. 148, 2015.
generalizados vários esquemas de adaptabilidade do tem-
po de trabalho, que passam pela fixação do período normal
de trabalho em termos médios e que podem ser instituídos
por convenções coletivas, diretamente no contexto em-
presarial ou nos próprios contratos de trabalho. Por outro
lado, também são comuns regimes de trabalho a tempo
parcial ou com horários flexíveis, bem como contratos de
trabalho sujeitos a um regime de tempo de trabalho mode-
lado ou modelável, como é, paradigmaticamente, o caso do
contrato de trabalho intermitente ou à chamada (work on
call) e, em alguns casos, do contrato de trabalho a tempo
parcial(29).
Atualmente, estamos perante uma verdadeira revo-
lução digital, associada à internet, ao cloud computing e a
novas formas de prestar trabalho. Com esta revolução, sur-
ge, também, o denominado trabalho digital na economia
colaborativa, em plataformas digitais e um novo tipo de
trabalhador, o que origina um novo tipo de subordinação
reforçada por “um espaço sem distâncias e um tempo sem
demoras” (30).
As bases desta revolução assentam em sistemas de
TIC’s, numa robótica cada vez mais desenvolvida, em tec-
nologias de sensores, no cloud computing, numa enorme
recolha e tratamento de dados que, por causa da Big Data,
podem ser utilizados conjuntamente.
Estas novas possibilidades representam a base de uma
nova revolução relacionada com sistemas inteligentes e de
um novo sistema de trabalho, com o surgimento da sharing
economy ou economia colaborativa. E, apesar de trazerem
grandes promessas de desenvolvimento, também provo-
cam muitos desafios que requerem uma atuação proactiva
de empresas, governos, indivíduos e trabalhadores.
A globalização e as novas tecnologias impõem, de certa
forma, novas relações de trabalho ou, pelo menos, o repen-
sar de algumas relações.
Neste novo mundo do trabalho, o tempo de trabalho
torna-se cada vez mais flexível, podendo originar, por um
lado, uma melhor conciliação dos tempos de trabalho, mas,
simultaneamente, novos problemas com a sua limitação, já
que hoje em dia os trabalhadores são muitas vezes avalia-
dos pelos resultados que apresentam e não pelo trabalho
que realizam, o que pode originar a sua intensificação, bem
como dos tempos de trabalho. Em verdade, para muitos,
flexibilidade temporal não significa liberdade, mas, sim,
o seu contrário, tornando-se cada vez mais difícil a con-
ciliação dos tempos de trabalho com os tempos pessoais.
Cremos que a oportunidade do anytime-anyplace não pode
tornar-se no always and everywhere.
68
O MUNDO DO TRABALHO EM DEBATE
Estudos em Homenagem ao Professor Georgenor de Sousa Franco Filho
9. Por outro lado, a questão dos tempos de trabalho e
da sua limitação, marca de origem do Direito do Trabalho,
e constante presença em todas as alterações, adquire novas
roupagens nesta economia digital. Quem pode dizer, atual-
mente, qual é o tempo de trabalho de um trabalhador di-
gital? E qual o seu período de repouso se desde o primeiro
minuto em que acorda até ao último antes de adormecer
está constantemente conectado, muitas vezes pela Internet
das coisas?
Neste Admirável Mundo Novo do Trabalho, coloca-se a
questão da limitação dos tempos de trabalho. Esta questão
é de fundamental importância, na medida em que parece
poder permitir quase um novo tipo de escravatura que,
embora de feição diferente, está a colocar em causa um
dos mais antigos e emblemáticos direitos consagrados dos
trabalhadores – o direito a um descanso efetivo entre jor-
nadas de trabalho.
É cada vez mais visível uma menor separação, como
que um esbatimento, entre as fronteiras da vida pessoal e
da vida profissional do trabalhador, defendendo-se que o
trabalhador tem um direito à desconexão, entendido como
o direito à privacidade do século XXI. E se, à primeira
vista, este direito à desconexão pode parecer uma con-
tradição na medida em que fora dos tempos de trabalho
o trabalhador não tem de responder às solicitações do
empregador. Contudo, no tempo da cloud, dos portáteis,
dos smartphones, esta questão ganha uma grande impor-
tância(31)-(32), o que não deixa de ser paradoxal pois em
2019, 128 anos depois da Lei de 14 de abril de 1891 está a
se discutir novamente a limitação dos tempos de trabalho
para “limites razoáveis”.
Ocorre uma diluição crescente das fronteiras entre o
tempo de trabalho e o tempo de repouso dos trabalhado-
res que se encontra relacionada com o crescente aumento
do número de atividades de natureza intelectual, com o
enorme aumento da facilidade das comunicações e com
os novos recursos técnicos, pois numerosos trabalhadores
podem aceder no seu computador pessoal ao seu ambien-
te de trabalho, bastando para tal serem dotados de uma
(31) RAY, Jean-Emmanuel. Grande accélération et droit à la déconnexion. In: DS, n. 11, p. 912, 2016.
(32) Veja-se o relatório do Bundesanstalt für Arbeitsschutz und Arbeitsmedizin, Arbeitszeitreport Deutschland 2016. Berlin, 2016.
p. 41 e ss. que refere a quantidade de trabalhadores que trabalham aos fins de semana e que devem estar disponíveis para a empresa.
Também em França mais de 1/3 dos trabalhadores utilizam a tecnologia fora dos tempos de trabalho e quase 2/3 pretendem uma
regulamentação sobre a sua utilização. Veja-se .fr/grands-dossiers/LoiTravail/quelles-sont-les-principales-
-mesures-de-la-loi-travail/article/droit-a-la-deconnexion>. Acedido em: maio 2019.
(33) Como entende SUPIOT, Alain. Travail, droit et technique. In: DS, n. 1, p. 21, 2002.
(34) Num vasto estudo realizado a nível internacional, 55% dos trabalhadores portugueses responderam afirmativamente à questão
de saber se os empregadores exigiam que estivessem disponíveis por telefone ou e-mail durante as férias, contra 20% dos dinamar-
queses, 30% dos alemães e suecos, 41% dos britânicos, 43% dos franceses, 78% dos indianos e 81% dos chineses. Veja-se RAY,
Jean-Emmanuel. Grande accélération..., cit., p. 913, nota 14.
(35) Vide entende SUPIOT. Audelà ..., cit., p. XXVII-XXIX.
(36) Secunda-se o defendido por RAY, Jean-Emmanuel; BOUCHET, Jean-Paul. Vie professionnelle, vie personnelle et TIC. In: DS, n. 1,
p. 45, 2010.
ligação de acesso remoto e continuarem a trabalhar no que
seria, teoricamente, o seu tempo de repouso, o que pode
levantar inúmeras questões, nomeadamente em termos de
relevância disciplinar de certos comportamentos.
Assim, os fantasmas da ubiquidade começam a apare-
cer, já que se pretende ter um ser humano disponível para
trabalhar em todo o local e a toda a hora(33).
A tendência atual é exigir uma implicação cada vez
maior dos trabalhadores na vida da empresa; que os tra-
balhadores estejam cada vez mais disponíveis, mesmo fora
do horário de trabalho(34), o que origina uma maior difi-
culdade na altura de delinear a diferença entre a jornada
laboral e a vida privada e familiar do trabalhador(35).
10. Diria, até, que é cada vez mais visível uma menor
separação entre as fronteiras da vida pessoal e da profissio-
nal na medida em que os trabalhadores poderão usufruir,
por meio destas tecnologias, de tempo pessoal, inclusive
de carácter muito privado, durante o trabalho. Pode ocor-
rer, desta forma, uma evasão no local e no tempo de tra-
balho. O trabalhador navega na internet, acedendo a redes
sociais, inter alia, para encontrar velhos conhecidos e ami-
gos ou para discutir assuntos em determinados chats ou
newsgroups. Todavia, um outro lado da questão, e que nos
parece que está a aumentar exponencialmente, está rela-
cionado com a enorme invasão da vida privada e familiar
pelo trabalho. Durante o seu tempo de descanso, diário,
semanal, em férias ou feriados, os trabalhadores são cons-
tantemente perturbados com questões profissionais e o
problema que se coloca e que é de fundamental importân-
cia é como contabilizar estes tempos de trabalho e como
remunerá-los e estabelecer limites. Desta forma, a cortesia
mínima do último século do milénio passado de não tele-
fonar depois das 20:00 horas parece ter desaparecido com
o advento destas novas tecnologias e com o declínio dos
telefones fixos(36).
Elas invadem, simultaneamente, o domicílio e a vida
privada do trabalhador e, assim, “as horas de trabalho ofi-
ciais não significam nada quando o trabalho pode levar-
-se para casa e continuar aí a ser realizado, sem qualquer
Algumas Questões sobre o Direito à Desconexão dos Trabalhadores 69
limite temporal”(37). Como esclarece Alain Supiot(38), as
novas tecnologias estão a “criar novas formas de subor-
dinação”, o que provoca o surgimento de novos riscos, de
novas formas de insegurança no emprego e de novas amea-
ças para os direitos dos trabalhadores defendendo-se que
o trabalhador tem um direito à desconexão(39), entendido
como o direito à vida privada do século XXI. O trabalhador
tem direito a não ser incomodado permanentemente na
sua vida privada e no seu tempo privado, criando-se um
direito ao “isolamento”, à desconexão, a um repouso “efe-
tivo”. Trata-se de uma desconexão técnica que, segundo
Jean-Emmanuel Ray(40) é favorável pois os trabalhadores
que não têm um tempo livre não se tornam mais produti-
vos, nem mais fiéis à empresa.
A lei, a jurisprudência e, sobretudo, as convenções co-
letivas devem tentar garantir o direito ao isolamento e o
direito à desconexão do trabalhador. Contudo, não deve-
mos ver este direito como algo que é novo ou como um
novo direito dos trabalhadores porque verdadeiramente do
que se trata é de respeitar um direito que eles já têm. Em
verdade, nas elucidativas palavras de João Leal Amado(41), a
“obrigação de não perturbar, de não incomodar, recai sobre
a empresa. O trabalhador goza, assim, de um “direito à não
conexão” (dir-se-ia: de um right to be let alone) por parte
da empresa, de um do not disturb! Resultante do contrato
de trabalho e da norma laboral aplicável.
11. Trata-se, como preconiza Jean-Emmanuel Ray(42),
de “uma guerra de tempos”. As quarenta horas oficiais(43)
não têm qualquer significado quando o trabalhador não
tem direito ao descanso legalmente previsto por ter de es-
tar constantemente on-line e por não poder desconectar-se
e usufruir do necessário restabelecimento do equilíbrio
físico e psicológico. E se a política do Always on, das 24
horas sobre 24 horas sempre a laborar, é boa para as em-
presas, tem consequências extremamente negativas para
os trabalhadores que se não trabalharem pelo menos 60
horas semanais quase são considerados como trabalhado-
res a tempo parcial(44). E o trabalhador atual tem de ser
completamente polivalente em relação às NTIC na medida
em que é impensável que só realize uma atividade: numa
reunião feita a distância consultam-se, simultaneamente,
(37) Como entende SUPIOT, Alain. Travail, droit...”, cit., p. 21, os “fantasmas da ubiquidade” começam a aparecer, já que se pretende
ter um ser humano disponível em todo o local e a toda a hora para trabalhar.
(38) Les nouveaux visages de la subordination. In: DS, n. 2, p. 132, 2000.
(39) Veja-se neste sentido RAY, Jean-Emmanuel. Avant-propos..., cit., p. 6-7.
(40) Última op. cit., p. 7.
(41) Tempo de trabalho..., cit., p. 263.
(42) La guerre des temps: le NET? Never Enough Time. In: DS, n. 1, 2006, p. 3.
(43) Sujeitas à alguma flexibilidade legalmente prevista.
(44) Veja-se o artigo da Fortune referido por RAY, Jean-Emmanuel. Op. cit., p. 2-3.
(45) Expressão de JAURÉGUIBERRY, Francis apud RAY, Jean-Emmanuel. La guerre des temps..., cit., p. 1.
(46) Utilizam-se as expressões de Jean-Emmanuel Ray; Jean-Paul Bouchet, op. cit., p. 46.
(47) D’un droit des travailleurs aux droits de la personne au travail. In: DS, n. 1, p. 11, 2010.
os e-mails profissionais, responde-se às questões colocadas
na reunião, leem-se e enviam-se sms consideradas urgen-
tes, veem-se os comentários que a própria empresa coloca
no Facebook ou no Twitter, entre várias outras tarefas. E
se o trabalhador não realizar estas várias atividades quase
que poderá entrar numa espécie de “apneia telecomunica-
cional”(45).
No entanto, não podemos deixar de atender que reali-
zar diferentes tarefas simultaneamente pode necessitar de
mais tempo e conduzir a mais erros na medida em que
existem limites ao processamento mental do Homem.
E se até há algum tempo atrás poderia se defender que
estes trabalhadores, Net-Addicts, também usufruíam de um
tempo pessoal no local de trabalho, podendo ocorrer um
certo equilíbrio entre vida pessoal no escritório e vida pro-
fissional em casa, hoje em dia isso já não é defensável nos
mesmos termos. Assiste-se nos nossos dias a uma overdose
de trabalho, uma “obesidade digital”, que invadiu total-
mente a vida privada do trabalhador e que não só o afeta
como a toda a sua família, e a necessária conciliação entre
a vida profissional e a vida familiar não acontece(46).
Nos dias que correm, a vida profissional absorveu
grande parte da vida pessoal e, secundando Jean-Emma-
nuel Ray(47), a subordinação jurídica, um dos elementos
essenciais e tipificantes da existência de um contrato de
trabalho, segundo o art. 11 do CT, tornou-se, em verdade,
um critério permanente da vida do trabalhador. De facto,
qual é o trabalhador que atualmente trabalha só no local de
trabalho? Quantos não trabalham também noutros locais,
nomeadamente em casa, quando estão em férias, limitan-
do-se a reagir apenas em tempo real, já que na atual cultura
da urgência, do just in time, tudo é urgente, embora nem
tudo seja importante? Não estaremos perante um novo ti-
po de escravatura: a escravatura dos tempos modernos?
A grande questão neste tipo de situações é a de que,
na maior parte dos casos, não há uma ordem expressa do
empregador neste sentido. Há, sim, uma interiorização
desta ideia pelos trabalhadores e uma gestão realizada por
objetivos de tal forma que, depois de algum tempo, são os
próprios trabalhadores a não conseguirem separar a vida
70
O MUNDO DO TRABALHO EM DEBATE
Estudos em Homenagem ao Professor Georgenor de Sousa Franco Filho
profissional da vida privada e a levar, voluntariamente(48),
trabalho para casa. Surge, assim, uma espécie de “servidão
voluntária”(49), ou, mesmo, de escravidão voluntária dos
trabalhadores, onde a contabilização dos seus tempos de
trabalho não passa de uma mistificação, já que o empre-
gador só terá de pagar horas suplementares se tiver dado
ordens expressas ou se o trabalho tiver sido prestado com
o seu conhecimento implícito ou tácito e sem a sua oposi-
ção(50). Assim, tal como já foi decidido pelo STJ no acórdão
de 6 de fevereiro de 2008(51), não se verificam os pressu-
postos legais da remuneração do trabalho suplementar se
o trabalhador não alega e nem prova que este foi prestado
por determinação prévia e expressa do empregador ou, pe-
lo menos, com o seu conhecimento e sem a sua oposição.
Todavia, será que esta interpretação é possível em face
das NTIC?
Em verdade, se estas NTIC redesenharam a fórmula
científica de Taylor de “produtividade = disciplina”, não
será também verdade que os atuais trabalhadores do co-
nhecimento, com a sua possibilidade de trabalharem on-
de quiserem e como quiserem graças aos seus laptops, aos
seus telemóveis de última geração, aos seus Ipads, que
defendem que a liberdade é fonte de produtividade, não
estarão mais controlados e menos livres do que alguma
vez estiveram? Será que estas novas tecnologias, em vez de
os conduzir a uma liberdade reforçada, não acarretam an-
tes uma servidão voluntária? Não originam antes um novo
tipo de escravatura, dita moderna, ou, para utilizar uma
terminologia mais adequada às NTIC, uma escravatura de
última geração, ou escravatura do homo connectus?
Em verdade, se a carga de trabalho horária de Taylor
e Ford era facilmente ponderada, a carga informacional e
cognitiva dos neurónios de um trabalhador dito do “co-
nhecimento” é bem mais difícil de calcular. Na altura do
taylorismo e do fordismo, era muito mais fácil assegurar
o repouso efetivo e a separação entre a vida profissional
e a vida privada atualmente do que garantir a desconexão
dos neurónios dos trabalhadores. Na realidade, o colabo-
rador/trabalhador do século XXI, com os seus tablets e os
(48) Vontade quase imposta, ainda que indiretamente, na medida em que há objetivos a atingir.
(49) RAY, Jean-Emmanuel; BOUCHET, Jean-Paul. Op. cit., p. 46.
(50) Veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional Português n. 635/1999, de 23 de novembro de 1999. Disponível em:
tribunal-constitucional.pt>.
(51) Disponível em: .
(52) Neste sentido, CORNIOU, Jean-Pierre apud RAY, Jean-Emmanuel. Actualités des..., cit., p. 950, nota n. 80.
(53) Vide, para maiores desenvolvimentos, MOREIRA, Teresa Coelho. Novas tecnologias: um admirável mundo novo do trabalho.
In: Estudos de Direito do Trabalho. reimp. da 1. ed. Coimbra: Almedina, 2016. p. 191 e ss.
(54) Cf. Comunicação da Comissão, de 24 de março de 2010, cit., p. 5-6.
(55) E defendidas em várias decisões do TJCE. Vejam-se, a título de exemplo, os acórdãos, Jaeger, de 9 de setembro de 2003, e Dellas,
de 1º de dezembro de 2005.
(56) Veja-se a Comunicação da Comissão Europeia, de 24 de março de 2010, em que se estabeleceu que “a protecção da saúde e da
segurança dos trabalhadores deve manter-se o principal objectivo de toda a regulamentação sobre tempos de trabalho”. Cf. sobre o tema,
MINÉ, Michel. Le droit du temps de travail à la lumière des droits fondamentaux de la personne. In: DO, n. 750, janeiro de 2011, p. 41.
smartphones, está sempre presente, sempre conectado, per-
manentemente disponível e sempre reativo, não quantifi-
cando o seu tempo de trabalho, dilatado muito para além
dos limites físicos do local e do tempo de trabalho(52).
Como controlar a duração do repouso e do trabalho
quando certos trabalhadores trabalham 40 horas no local
de trabalho e outras tantas ou mais em casa ou noutro local
graças aos seus meios portáteis que levam para todo o lado,
não importando qual o local e quais horas, por meios cada
vez mais sofisticados, com o consequente empobrecimen-
to das relações humanas?
Se as NTIC permitem uma formidável liberdade de mo-
vimento, quer intelectual, quer físico, e possibilitam uma
maior autonomia dos trabalhadores, simultaneamente ori-
ginam uma teledisponibilidade permanente que faz desapa-
recer a distinção entre a vida profissional e a vida pessoal,
não apenas para os teletrabalhadores, mas para todos os
trabalhadores que utilizam estas novas tecnologias(53).
12. Por outro lado, cada vez mais, a gestão do tem-
po de trabalho é um elemento importante das estratégias
competitivas das empresas. Tanto a redução dos custos
médios na indústria como o alargamento dos horários de
funcionamento nos serviços implicam que o tempo total
de produção tem de ser mais longo. A adaptação às flu-
tuações na procura dos consumidores e a ciclos sazonais
exige uma distribuição mais variada do tempo de produ-
ção. Como consequência, têm surgido novos modelos de
flexibilidade do tempo de trabalho que continuarão a ser
implementados. Mas há também que reconhecer que algu-
mas formas de flexibilidade do tempo de trabalho podem
induzir à sua intensificação, com impacto na saúde e na
segurança, na satisfação dos trabalhadores, na produtivi-
dade organizacional e nas oportunidades de formação(54).
13. Atendendo a todas estas considerações, defen-
demos que não se podem esquecer todas as regras legais
impostas, quer da União Europeia(55), quer nacionais, rela-
tivamente ao respeito ao descanso dos trabalhadores, re-
gras que visam uma melhor proteção da segurança e saúde
do trabalhador(56).
Algumas Questões sobre o Direito à Desconexão dos Trabalhadores 71
Hoje é património pacífico, tal como já defendemos
anteriormente, a ideia de que a limitação dos tempos de
trabalho visa objetivos fundamentais de segurança e saúde
no trabalho.
A este nível, parece-nos que uma pura bipartição en-
tre tempo de trabalho e tempo de descanso, sem que exis-
ta um terceiro tipo, ou terceira categoria, uma espécie de
tempo de disponibilidade, apesar de ter a vantagem da
simplicidade, suscita vários problemas e defendemos que
o caminho a seguir não pode se basear nesta clássica divi-
são. Atualmente fala-se muito de uma porosidade do tempo
de trabalho que interfere muitas vezes no tempo pessoal e
familiar dos trabalhadores(57).
Não pode se aceitar que o tempo de descanso, o tempo
de repouso dos trabalhadores, seja integralmente compos-
to por tempo em que o trabalhador se obriga a estar dis-
ponível no seu domicílio ou noutro local à espera de uma
eventual ordem do empregador.
Assim, defende-se, tal como já foi decidido em 2 de ou-
tubro de 2001 pela Cour de Cassation, que o “trabalhador
não tem de aceitar trabalhar no domicílio, nem pode ser
obrigado a levar os seus dossiers e instrumentos de traba-
lho para lá”.
Esta parece-nos ser a posição a seguir na medida em
que, embora as NTIC permitam “trabalhar em qualquer
local e a qualquer hora” não relevando estes fatores, para
o Direito do Trabalho, a situação é totalmente diferente e
releva onde e quando se trabalha. Em verdade, se podemos
trabalhar em qualquer local, o domicílio não é um local
como os outros, mas o “santuário da intimidade da nos-
sa vida privada”(58) e qualquer modificação tão essencial à
vida privada, mas também familiar dos trabalhadores, tem
de ter não só o acordo expresso da pessoa em causa como
também do seu agregado familiar(59).
Assim, o interesse geral leva-nos a defender um direito
ao isolamento, à desconexão, como uma forma de garantir
um verdadeiro direito ao repouso contínuo e efetivo.
Entretanto, como aplicar a figura da desconexão aos
trabalhadores mais jovens, à geração Milénio ou Geração Y,
que vivem constantemente conectados, cujo smartphone é
uma espécie de terceira mão, considerando que obrigá-los
(57) Veja-se GENIN, E. Proposal for a Theorethical Framework for the Analysis of Time Porosity. International Journal of Comparative
Labour Law and Industrial Relations, v. 32 n. 3, p. 280-300.
(58) RAY, Jean-Emmanuel. Avant-propos..”, cit., p. 6.
(59) Socorrendo-nos do exemplo de Jean-Emmanuel Ray, última op. cit., p. 6, o quarto do bebé, ou da criança acrescentaríamos,
transformado em escritório.
(60) RAY, Jean-Emmanuel. Grande accélération..., cit., p. 913.
(61) RAY, Jean-Emmanuel; BOUCHET, Jean-Paul. Op. cit., p. 55.
(62) Sobre o tema vide CORDEIRO, António Menezes. Isenção de horário, subsídios para a Dogmática Actual do Direito da Duração
do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2000; MOREIRA, António. Comentário à Sentença do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto.
In: MINERVARevista de Estudos Laborais, Ano I, n. 1, p. 172-175, 2002.
(63) Veja-se o slogan referido por RAY, Jean-Emmanuel. La guerre des temps..., cit., p. 2, nota n. 15 e a tradução para inglês de
convidar os trabalhadores a Get a Life.
a desconectar-se é de um enorme paternalismo? Como
dizer a uma geração que não se conecta mais e que vive
conectada numa constante mistura de vida profissional/
vida privada(60)?
Contudo, não nos parece possível nesta matéria um
retrocesso, e qualquer acordo que derrogue o mínimo es-
tabelecido nas regras nacionais e da União Europeia que
visam a defesa destes princípios essenciais e tão caros ao
Direito do Trabalho será ilegal(61).
E se, sem dúvida, os tempos de trabalho atuais e as
necessidades das empresas não se compadecem com a
forma de organização temporal tradicional, também não
é menos certo que esta flexibilidade temporal tão desejada
tem limites que se encontram relacionados com os direitos
fundamentais dos trabalhadores.
Não se pode esquecer, em verdade, de que, mesmo
para os trabalhadores que têm isenção de horário de tra-
balho(62) previsto nos arts. 218 e ss. do CT português, is-
to é, que não estão sujeitos a um horário de trabalho, os
descansos diários e semanais têm de ser respeitados. Aliás,
esta figura, que, em geral, dá origem a um complemento
retributivo previsto no art. 265, n. 1, e que varia consoan-
te o tipo de isenção que o trabalhador tiver, conforme o
art. 219, tem limites temporais e estes são os limites má-
ximos estabelecidos legalmente para o trabalho suplemen-
tar – art. 228. E se esta figura foi pensada durante bastante
tempo como uma figura jurídica que poderia reconduzir
o trabalhador para uma situação de prestação laborativa
praticamente sem limites temporais, o entendimento mais
recente é diferente.
14. Hoje são os alfa mais na linguagem de Aldous Hux-
ley, os ditos “trabalhadores do conhecimento” para a UE,
aqueles que mais trabalham e que mais teledisponibilidade
têm de manifestar.
Os trabalhadores não podem perder a vida quando estão
justamente a ganhá-la(63). Os trabalhadores precisam ter di-
reito a um descanso efetivo, a não serem constantemente
incomodados quando estão de férias, quando estão doen-
tes, quando estão nos seus tempos de descanso. Não pode
ser esquecido que, para se usufruir de um descanso total,
é tão necessário um descanso material como um descanso
72
O MUNDO DO TRABALHO EM DEBATE
Estudos em Homenagem ao Professor Georgenor de Sousa Franco Filho
psicológico. As ligações humanas mais importantes, entre
pais e filhos, entre família, necessitam de um tempo, mas
de um tempo exclusivo, sem interrupções(64).
Preconizamos, assim, que tem de existir a defesa do
necessário equilíbrio entre tempos de trabalho e tempos
livres.
Por isso, colocamos a seguinte questão: não se tornará
não só urgente, como importante, estudar as consequên-
cias desta conexão permanente e de proclamar a neces-
sidade de os trabalhadores poderem se desconectar, de
poderem não estar sempre disponíveis, sempre on-line?
O trabalhador que tem de estar constantemente à dis-
posição do empregador, mesmo no seu domicílio, pode
considerar que o tempo, mesmo sem trabalho, não é tempo
livre. O exercício dos direitos fundamentais dos trabalha-
dores, nomeadamente o de ter direito a uma vida pessoal
ou de conciliar a vida profissional com a vida familiar e
pessoal, implica o direito a poder se organizar, e o tempo
sem trabalho não é, nesta sociedade do always on, always
connected, ipso facto, tempo livre para exercer os seus direi-
tos. E esta limitação cada vez maior nos tempos de repouso
afigura-se desastrosa não só para a saúde dos trabalhado-
res, como também para a própria promoção da igualdade e
da não discriminação.
A dignidade da pessoa humana, conceito polissémico,
permite no Direito do Trabalho, proteger os trabalhadores
contra atividades ou condições de trabalho particularmen-
te excessivas(65). E não será o que acontece com estes novos
tempos de trabalho? Não será a política de ter de estar
constantemente on-line, de não poder usufruir do necessá-
rio descanso e repouso, um atentado à dignidade humana
dos trabalhadores?
Entende-se, assim, que, sendo o trabalhador uma pes-
soa, com todo o significado que lhe está associado, a sua li-
berdade e a sua dignidade pessoal não poderão ser afetadas
por um regime de tempo de trabalho que desconsidere esta
essencialidade, tornando-se fundamental encarar o tempo
de trabalho como tempo de vida do trabalhador e a em-
presa tem de assegurar que o trabalhador recupere as suas
energias e que usufrua de um necessário repouso efetivo.
Em verdade, o problema da ultraconexão, antes de ser
uma questão de segurança e saúde no trabalho, é uma
questão de qualidade de vida no trabalho e de qualidade
do próprio trabalho.
15. Outra das circunstâncias que contribuem para esta
situação e do denominado tecnoestresse é o da falta de con-
ciliação entre a vida profissional e a vida pessoal e familiar,
ou seja, o denominado blurring.
(64) Segue-se a ideia de RAY, Jean-Emmanuel, última. Op. cit., p. 8.
(65) Vide sobre este problema HÉAS, Franck. Observations sur le concept de dignité apliqué aux relations de travail. In: DO, n. 746,
p. 461-462, setembro 2010. Ver, ainda, ZERGA, Luz Pacheco. La dignidad humana en el derecho del trabajo. Navarra: Thomson Civi-
tas, 2007.
(66) Neste sentido, El trabajo en la..., cit., p. 102.
A conciliação entre a vida profissional e a vida pessoal
e familiar é uma questão fundamental para qualquer tra-
balhador e encontra-se relacionada com várias outras co-
mo o aumento da participação laboral principalmente das
mulheres no mercado de trabalho, tornar o emprego mais
sustentável, assegurar igualdade de oportunidades entre
homens e mulheres e enfrentar os desafios demográficos
que se avizinham.
E este tecnoestresse tanto pode advir de uma sobrecarga
de trabalho como da ausência do mesmo, em que o tra-
balhador tem de estar permanentemente à disposição da
plataforma e aguardar pela tarefa a realizar o que pode ge-
rar um clima de tensão constante. Como o tempo que tem
de estar disponível não é retribuído, o trabalhador vê-se
“incitado” a aumentar a sua disponibilidade renunciando
muitas vezes ao seu tempo de descanso e passando a estar
disponível 24 horas por dia.
E, claramente como estas características fazem parte
deste tipo de trabalho, os trabalhadores destas plataformas
digitais estão mais sujeitos a riscos de saúde, sobretudo
mentais, como o síndrome de burn out, depressões, doenças
cardiovasculares ou musculoesqueléticas, por exemplo(66).
Também há uma diferença em nível dos riscos psicosso-
ciais porque há uma mudança bastante importante no tipo
de trabalho, no tempo de trabalho, no local de trabalho e
na forma como o mesmo é gerido. Há um desaparecimen-
to cada vez maior entre as fronteiras da vida profissional
e da vida pessoal com um controlo cada vez maior asso-
ciado à ubiquidade destas tecnologias e ao trabalho nas
plataformas digitais. Existe, sem dúvida, um novo tipo de
controlo, o controlo eletrônico do trabalhador, controlo
este desverticalizado, objetivo, incorporado na máquina e
sistema com o qual interage, tornando-se um controlo a
distância, em tempo real, com uma enorme capacidade de
armazenamento, capaz de memorizar, cruzar e reelaborar
detalhadamente muitos dos comportamentos dos traba-
lhadores.
Considera-se, assim, que as características das novas tec-
nologias aplicadas à relação laboral estão a permitir a subs-
tituição de um controlo periférico, descontínuo e parcial,
realizado pela hierarquia humana, por um controlo centrali-
zado e objetivo, incorporado na máquina, que se verifica em
tempo real, originando o aparecimento de um novo e sofisti-
cado tipo de controlo que consiste na reconstrução do perfil
do trabalhador, mediante o armazenamento e reelaboração
de uma série de dados aparentemente inócuos.
No controlo realizado por estes meios, diferente-
mente dos meios tradicionais, pode não existir uma
Algumas Questões sobre o Direito à Desconexão dos Trabalhadores 73
simultaneidade entre a atividade de controlo e o resultado
que se obtém, querendo com isto dizer-se que, embora o
controlo seja direto sobre a atividade ou comportamen-
to do trabalhador, não se pode defender que permita um
conhecimento direto e imediato do mesmo. O controlo
realiza-se pela recolha sistemática e exaustiva de dados
do comportamento dos trabalhadores que, devidamente
recolhidos, armazenados, tratados e reelaborados, per-
mitem uma projeção deste comportamento e a criação
de perfis de trabalhadores. Esta nova forma de controlo
origina uma alteração da estrutura do poder de controlo,
incidindo esta, fundamentalmente, na possibilidade de
recolher dados, que podem ser tratados e reelaborados
para fins distintos. Assim, o controlo não se baseia so-
mente na eventual possibilidade de recolher informação
sobre o trabalhador, mas também na virtualidade de tal
informação ser devidamente tratada até obter resultados
adequados ao fim do controlo.
As novas formas de controlo tornaram-se também au-
tomáticas, não estando os supervisores limitados pelo que
podem ver, mas pela quantidade de dados e de aspetos que
conseguem recolher pelo controlo exercido pelos algorit-
mos. O controlo torna toda a realidade transparente, provo-
cando a visibilidade do que até aí era ignorado ou invisível.
O olho eletrónico(67) torna-se omnipresente e mecânico, con-
duzindo a sensações de controlo total que podem alterar
os sentimentos dos trabalhadores e provocar o seu medo
pelo facto de não estar confinado espacialmente ao local de
trabalho, podendo se estender para outros locais, inclusive
sítios muito íntimos, e por não ter barreiras temporais(68).
Por outro lado, o facto de a remuneração não ser con-
tínua, mas à peça, atendendo a cada microtarefa que reali-
zam, aumenta a pressão de tempo.
Acresce ainda a falta de uma formação adequada que
aumenta ainda mais o risco de acidentes, até porque mui-
tas das atividades tipicamente exercidas por trabalhadores
das plataformas digitais pertencem a tarefas que são con-
sideradas particularmente perigosas, como a construção e
o transporte.
Existem ainda riscos físicos, para além dos psicoló-
gicos, associados a uma exposição permanente a campos
eletromagnéticos, fadiga visual e problemas musculosque-
léticos.
16. A questão e também o problema, por vezes, é que
com as NTIC, e neste Admirável Mundo Novo do Trabalho,
surge um novo tipo de trabalhador, o infotrabalhador, que
se pode caracterizar, tal como as próprias tecnologias com
que trabalha, como ambíguo, na medida em que realiza
(67) Alusão à obra de LYON, David. The electronic eye – the rise of surveillance society. Reino Unido: Polity Press, 1994.
(68) Para maiores desenvolvimentos vide MOREIRA, Teresa Coelho. As novas tecnologias de informação e comunicação e o poder
de controlo electrónico do empregador. In: Estudos de Direito do Trabalho. reimp. da 1. ed. Coimbra: Almedina, 2016.
(69) RAY, Jean-Emmanuel. Actualités des TIC Tous connectés, partout, tout le temps. In: DS, n. 5, p. 520, 2015.
(70) Tempo de trabalho e..., cit., p. 262.
atividades complexas, com tecnologia de ponta, mas que
herdou as condições de trabalho do século passado, estan-
do, contudo, sujeito a um controlo quase total, que provo-
ca inúmeros problemas sociais, físicos e psíquicos.
Todavia, como é visto como um colaborador, mais do
que um mero trabalhador, não se revolta contra esta si-
tuação. Contudo, se pensarmos nos tempos que vivemos
atualmente, não são estes colaboradores os primeiros a se-
rem penalizados em tempos de crise?
17. Parece-nos que nesta matéria de regulamentação
das NTIC e do poder de controlo do empregador e dos
tempos de trabalho devemos nos lembrar dos princípios
essenciais para um exercício correto do poder de controlo
do empregador e na imposição de limites concretos que
efetivamente consagrem o direito ao repouso dos traba-
lhadores perante a característica da ubiquidade que estas
novas tecnologias representam. Desta forma, o trabalhador
tem direito a se desligar, a se desconectar totalmente quan-
do se encontra nos seus tempos de repouso.
18. Contudo, por vezes, são os próprios trabalhado-
res os culpados da infobesidade tecnológica porque en-
viam e-mails com conhecimento para todos, muitas vezes
qualificando-os de urgentes (para parecer importante),
reencaminhando-os (para dar a informação) e utilizam
sistematicamente o “responder a todos” para mostrar ati-
vismo e participação(69).
Em verdade, parece-nos que, por vezes, a questão mais
do que legal é de ordem cultural. Por mais leis ou conven-
ções coletivas que se aprovem sobre a matéria, não será
fácil inverter uma mentalidade que leva a que se julgue
negativamente um trabalhador que não se mantém con-
tactável nos seus períodos de descanso. Como escreve
João Leal Amado(70), “ousar desconectar-se pode implicar,
a curto ou a médio prazo, ser desligado da empresa... E o
receio da perda do emprego, a luta infrene para escapar às
agruras do desemprego, ou, mesmo que em moldes me-
nos drásticos, a simples preocupação em assegurar que os
canais permanecem abertos para uma eventual progressão
na carreira (promoções, p. ex.), tudo isto redunda em que
o trabalhador, mesmo se fatigado, desgastado, perturbado,
contrariado, devassado, no limiar do esgotamento, sem
tempo para si e para os seus, não ousará desconectar-se”.
Na realidade, atualmente, cultiva-se uma espécie de
obsessão da performance. Há, ainda, uma internacionaliza-
ção e globalização das empresas, que leva à necessidade de
adaptação a outros fusos horários e por parte dos trabalha-
dores um certo pânico do esquecimento pois receiam que a
obrigação de desconexão leve a que se tornem dispensáveis,
74
O MUNDO DO TRABALHO EM DEBATE
Estudos em Homenagem ao Professor Georgenor de Sousa Franco Filho
a que se associa um certo receio de má reputação junto dos
colegas já que há, infelizmente, trabalhadores que têm a
convicção de que o “melhor” trabalhador é o que está não
em “desconexão”, mas em “hiperconexão”, é aquele que
está sempre disponível e comprometido para a empresa,
que sacrifica a sua vida pessoal em favor da profissional,
sendo por vezes as próprias empresas a cultivarem esta
competição entre os trabalhadores.
19. Como escreve Jean-Emmanel Ray(71), “com a ele-
tricidade a insónia do mundo começou. E com as TIC?”
Em França, depois da consagração em várias conven-
ções coletivas, a nova reforma laboral consagrou este di-
reito à desconexão na lei, já que o artigo L-2242-8 do Code
du Travail, estabelece que as empresas com mais de 50 tra-
balhadores (e apenas estas), têm de negociar este direito
no seio das negociações anuais obrigatórias. Já desde 1º de
janeiro de 2017, no seio das negociações sobre “igualdade
profissional e qualidade de vida”, têm de ser discutidas
questões como o direito à desconexão e o controlo dos
meios informáticos para assegurar o respeito pelo direito
ao repouso e à vida familiar e pessoal(72).
A questão que se colocou imediatamente foi por que
estas e não as com menos de 50 trabalhadores.
Por outro lado, trata-se de uma norma mais progra-
mática do que imperativa na sua execução prática. Se se
analisar este preceito legislativo, vemos que, apesar de de-
monstrar uma preocupação pela questão, não preceitua ne-
nhuma norma imperativa e não estabelece qualquer sanção
ou consequência pela infração, remetendo para a negocia-
ção coletiva a possibilidade de estabelecer as regras sobre
estas matérias de desconexão digital para assegurar o res-
peito pelo tempo de descanso e de férias dos trabalhadores
e a conciliação com a sua vida pessoal e familiar.
(71) Op. cit., p. 519.
(72) Estas disposições relativas ao direito à desconexão aplicam-se somente aos trabalhadores do setor privado. Contudo, na Ad-
ministração Pública, alguns municípios colocaram em prática sistemas de desconexão. Exemplo disto é Paris que estabeleceu um
modelo de desconexão que define qual o momento em que o envio de e-mails é de evitar ou onde os trabalhadores não são obrigados
a responder.
(73) “Les entreprises d’au moins cinquante salariés sont soumises à une pénalité à la charge de l’employeur en l’absence d’accord
relatif à l’égalité professionnelle entre les femmes et les hommes à l’issue de la négociation mentionnée au 2º de l’article L. 2242-1
ou, à défaut d’accord, par un plan d’action mentionné à l’article L. 2242-3. Les modalités de suivi de la réalisation des objectifs et des
mesures de l’accord et du plan d’action sont fixées par décret. Dans les entreprises d’au moins 300 salariés, ce défaut d’accord est
attesté par un procès-verbal de désaccord.”
(74) “Dans les entreprises où sont constituées une ou plusieurs sections syndicales d’organisations représentatives, l’employeur
engage au moins une fois tous les quatre ans:
1º Une négociation sur la rémunération, notamment les salaires effectifs, le temps de travail et le partage de la valeur ajoutée dans
l’entreprise;
2º Une négociation sur l’égalité professionnelle entre les femmes et les hommes, portant notamment sur les mesures visant à supprimer
les écarts de rémunération, et la qualité de vie au travail.”
(75) “7º Les modalités du plein exercice par le salarié de son droit à la déconnexion et la mise en place par l’entreprise de dispositifs
de régulation de l’utilisation des outils numériques, en vue d’assurer le respect des temps de repos et de congé ainsi que de la vie
personnelle et familiale. A défaut d’accord, l’employeur élabore une charte, après avis du comité social et économique. Cette charte
définit ces modalités de l’exercice du droit à la déconnexion et prévoit en outre la mise en oeuvre, à destination des salariés et du
personnel d’encadrement et de direction, d’actions de formation et de sensibilisation à un usage raisonnable des outils numériques.”
Relativamente a esta questão, há inclusive uma decisão
da Cour de Cassation de 12 de julho de 2018 que condenou
a empresa britânica Rentokil Initial ao pagamento de uma
coima no valor de 60 mil euros, por violação do direito à
desconexão, que o tribunal referiu expressamente.
A 5 de setembro de 2018, porém, esta parte foi revoga-
da e consequentemente eliminada qualquer referência ao
droit à la déconnexion neste artigo pela Loi n. 2018-771, du
5 septembre 2018, pour la liberté de choisir son avenir pro-
fessionnel que alterou o artigo L2242-8 do Code du Travail,
introduzindo, em todo o caso, um regime de penalidades
aplicável às empresas que não tenham promovido a ne-
gociação coletiva ou a elaboração de um “plano de ação”
sobre a igualdade profissional entre homens e mulheres
e sobre a qualidade de vida no trabalho(73), matéria que
integra o âmbito de discussão obrigatória em sede de ne-
gociação coletiva por força do artigo L2242-1 do Code du
Travail(74).
Este direito passou a fazer parte agora das possibilida-
de de negociação, mas não de negociação obrigatória.
Contudo, o art. L. 2242-17, relativo à igualdade profis-
sional entre homens e mulheres no trabalho e à qualidade
de vida no trabalho, estabeleceu no n. 7 este direito à des-
conexão, mas se não existir qualquer acordo com os sindi-
catos (que deixa de ser obrigatório) será o empregador que
estabelecerá as regras, o que não nos parece ser a melhor
opção, assim como não prevê qualquer sanção para o não
respeito desta obrigação(75).
Em Itália, a Lei n. 81/2017, de 22 de maio de 2017, mi-
sure per la tutela del lavoro autonomo non imprenditoriale e
misure volte a favorire l’articolazione flessibile nei tempi e nei
luoghi del lavoro subordinato, no art. 19, determinou que o
Algumas Questões sobre o Direito à Desconexão dos Trabalhadores 75
trabalhador deve acordar com o empregador a fixação do
tempo de repouso e, em especial, das “medidas técnicas
e organizativas necessárias para garantir a desconexão do
trabalhador dos seus instrumentos tecnológicos de traba-
lho”. O legislador estipulou, contudo, um âmbito de apli-
cação setorial, limitando-se ao domínio do lavoro agile, o
qual é definido como “a forma de organização do trabalho
por fases, ciclos e objetivos, sem fixação de horário e lo-
cal de trabalho e assente na possibilidade de utilização de
instrumentos tecnológicos na prestação da atividade labo-
ral”(76).
No entanto, contrariamente ao preceito francês, o le-
gislador italiano não qualifica expressamente a desconexão
digital como um direito, embora na tramitação parlamen-
tar esta questão tenha sido abordada(77). O lavoro agile as-
semelha-se a um tertium genus entre trabalho presencial e
trabalho a distância, e é nesta segunda vertente que acon-
tece quando a atividade é realizada em casa, que se deverão
aplicar estas regras da desconexão digital.
Em Espanha, recentemente, foi aprovada a Lei Or-
gânica n. 3/2018, de 5 de dezembro, de Proteção de Dados
Pessoais e garantia dos direitos digitais que consagrou no
art. 88 o direito à desconexão nos seguintes termos:
Art. 88. Derecho a la desconexión digital en el ámbito laboral.
1. Los trabajadores y los empleados públicos tendrán de-
recho a la desconexión digital a fin de garantizar, fuera del
tiempo de trabajo legal o convencionalmente establecido, el
respeto de su tiempo de descanso, permisos y vacaciones, así
como de su intimidad personal y familiar.
2. Las modalidades de ejercicio de este derecho atenderán
a la naturaleza y objeto de la relación laboral, potenciarán
el derecho a la conciliación de la actividad laboral y la vida
personal y familiar y se sujetarán a lo establecido en la ne-
gociación colectiva o, en su defecto, a lo acordado entre la
empresa y los representantes de los trabajadores.
3. El empleador, previa audiencia de los representantes de
los trabajadores, elaborará una política interna dirigida a tra-
bajadores, incluidos los que ocupen puestos directivos, en
la que definirán las modalidades de ejercicio del derecho a
la desconexión y las acciones de formación y de sensibiliza-
ción del personal sobre un uso razonable de las herramien-
tas tecnológicas que evite el riesgo de fatiga informática. En
particular, se preservará el derecho a la desconexión digital
en los supuestos de realización total o parcial del trabajo a
(76) “1. L’accordo relativo alla modalità di lavoro agile è stipulato per iscritto ai fini della regolarità amministrativa e della prova, e
disciplina l’esecuzione della prestazione lavorativa svolta all’esterno dei locali aziendali, anche con riguardo alle forme di esercizio
del potere direttivo del datore di lavoro ed agli strumenti utilizzati dal lavoratore. L’accordo individua altresì i tempi di riposo del
lavoratore nonché le misure tecniche e organizzative necessarie per assicurare la disconnessione del lavoratore dalle strumentazioni
tecnologiche di lavoro.”
(77) Ver, para maiores desenvolvimentos, DI MEO, Rosa. Il diritto alla disconnessione nella prospettiva italiana e comparata. In:
Labour & Law Issues, n. 2, p. 28, 2017.
(78) La desconexión digital en las relaciones laborales: un deber empresarial todavía por construir en España. In: Revista Direito das
Relações Sociais e Trabalhistas, v. 4, n. 1, p. 49-50.
distancia así como en el domicilio del empleado vinculado al
uso con fines laborales de herramientas tecnológicas.”
Claro que deixar a cargo do empregador esta possibili-
dade não nos parece a melhor opção.
Por outro lado, tal como referimos anteriormente, es-
tabelece como um direito e não como um dever e não con-
sagra qualquer sanção para o seu incumprimento, o que
não nos parece a melhor solução.
Mesmo antes da consagração deste direito, algumas
empresas em convenções coletivas já tinham-no regula-
mentado, como foi o caso da empresa AXA que em 2017
estabeleceu que, “excetuando causa de força maior ou cir-
cunstâncias excecionais, a AXA reconhece o direito dos
trabalhadores de não responderem aos correios eletrôni-
cos ou às mensagens profissionais fora do seu horário de
trabalho”, em vigor até 2020. Este acordo visava incluir a
necessidade de impulsionar o direito à desconexão digital
uma vez finalizada a jornada de trabalho.
Contudo, como bem realça Eduardo Taléns Viscon-
ti(78), a primeira parte do parágrafo desta convenção não é
mais do que uma mera declaração de intenções sem qual-
quer repercussão real e a parte final, apesar de se debruçar
sobre a questão, fá-lo de forma ainda incipiente.
Por outro lado, trata-o novamente como um direito
dos trabalhadores quando seria preferível tratá-lo como
um dever dos empregadores, pois ao ser um direito e não
um dever parece que não se acautela suficientemente o di-
reito dos trabalhadores.
Por outro lado, não existem quaisquer repercussões pa-
ra a falta de respeito por parte do empregador. O art. 14 da
Convenção apenas reconhece o direito dos trabalhadores
não responderem aos e-mails profissionais fora do horário
de trabalho, mas não lhes confere qualquer canal especial
para reclamar no caso de a previsão não ser cumprida e
nem se referem aos representantes dos trabalhadores.
20. No nosso ordenamento jurídico, já se discutiu,
também, a eventual regulamentação deste direito, com vá-
rias propostas de diferentes partidos, mas que, por agora,
ainda nenhuma foi aprovada.
Havia um projeto de Lei BE n. 552/XIII/2ª (09.06.2017)
que visava consagrar expressamente um dever de não co-
nexão no período de descanso do trabalhador associado à
possibilidade de, por instrumento de regulamentação cole-
tiva, serem garantidas formas de desconexão profissional;
76
O MUNDO DO TRABALHO EM DEBATE
Estudos em Homenagem ao Professor Georgenor de Sousa Franco Filho
estabelecia também que a conexão profissional com o tra-
balhador no seu período de descanso possa constituir uma
forma de assédio, verificados os pressupostos previstos na
lei; e reintroduzir o dever de envio do mapa de horário de
trabalho para a ACT por parte da entidade empregadora.
Para isso, o projeto visava a alteração de vários artigos,
incluindo o art. 199 que passaria a ter a seguinte redação:
“2. O período de descanso deve corresponder a um tempo de
desconexão profissional.
3. As formas de garantir o tempo de desconexão profissional,
designadamente através da não utilização das tecnologias de
informação e comunicação durante o período de descanso
do trabalhador, podem ser estabelecidas mediante instru-
mento de regulamentação coletiva de trabalho.
4. A violação do disposto no n. 2 pode constituir assédio,
nos termos e para os efeitos do disposto no art. 29 deste
Código.”(79)
Outro dos projetos apresentados foi o do PS, o Pro-
jeto de Lei n. 644/XIII, que visava reforçar o direito ao
descanso do trabalhador. Este projeto retirava várias ideias
da Lei francesa e pretendia “assegurar que a utilização de
ferramenta digital no âmbito da relação laboral não possa
impedir o direito ao descanso do trabalhador, admitindo,
no entanto, casos excecionais assentes, em exigências im-
periosas do funcionamento da empresa. Adicionalmente,
habilita-se a possibilidade de, pelo instrumento de regula-
mentação coletiva de trabalho, poder ser regulada a utili-
zação de ferramenta digital durante o período de descanso,
férias e dias feriados, prevendo-se ainda um quadro nor-
mativo para as empresas com 50 ou mais trabalhadores,
admitindo que, na falta de instrumento de regulamentação
coletiva de trabalho sobre a matéria, o empregador pro-
mova junto da comissão de trabalhadores, da comissão
intersindical ou das comissões sindicais da empresa repre-
sentativas dos trabalhadores, a celebração de um acordo
que regule a matéria ou, na falta de acordo, adote regula-
mento sobre utilização de ferramentas digitais no âmbito da
relação laboral(80). Ora, esta solução parece-nos que, em
vez de defender o direito ao descanso e à desconexão, fra-
giliza-o, legitimando de certa forma a conexão às empresas
e permite que por regulamento interno o empregador esta-
beleça essas regras e, por outro lado, não estabelece qual-
quer contraordenação para o seu não respeito que, quanto
a nós, deveria ser ou grave ou muito grave até.
É verdade que a OIT(81) defendeu que deveria “ampliar-
-se a soberania sobre o tempo”, considerando que “os traba-
lhadores e as trabalhadoras precisam de maior autonomia
(79) Neste mesmo sentido AMADO, João Leal. Tempo de trabalho..., cit., p. 266-267.
(80) Sublinhado nosso.
(81) Trabalhar para um Futuro Melhor, Genebra, 2019, p. 13.
(82) Op. cit., p. 42.
(83) Projeto que ainda vai ser discutido.
sobre o seu tempo de trabalho, sem deixar de atender às
necessidades da empresa. Utilizar a tecnologia para expan-
dir o leque de oportunidades e melhor conciliar o trabalho
com a vida pessoal pode ajudá-los a alcançar esse objetivo
e lidar com as pressões decorrentes da diluição das fron-
teiras entre horário de trabalho e tempo pessoal”. Contu-
do, entende-se que a utilização do termo soberania talvez
não seja a melhor opção e deve ser vista como sempre em
benefício do trabalhador e nunca em seu prejuízo. Aliás,
como também reforça a OIT(82), “demasiados trabalhadores
e trabalhadoras continuam a trabalhar um número exces-
sivo de horas, o que os deixa numa situação de pobreza de
tempo (time poor)”.
Outro projeto é o Projeto de Lei n. 640/XIII/3ª, do PAN
que concretiza expressamente o direito à desconexão pro-
fissional, estabelecendo um novo artigo:
“Art. 214-A. Períodos de descanso e desconexão profissional
e que estabelece que: “Sem prejuízo da existência de razões
de força maior, as quais podem ser estabelecidas mediante
instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, é atri-
buído ao trabalhador, durante os períodos de descanso, o
direito à desconexão profissional.
2. Entende-se por direito de desconexão profissional o direito
do trabalhador obstar, não atender ou fazer cessar, o fluxo
comunicacional de carácter profissional que com este seja
estabelecido pela entidade empregadora, pelos seus trabalha-
dores ou por terceiros, durante os períodos de descanso, de-
signadamente através de meios informáticos ou eletrônicos.
3. Não carece de comunicação prévia o exercício do direito
de desconexão profissional por parte do trabalhador.
4. O exercício do direito de desconexão profissional não obsta
ao cumprimento pelo trabalhador dos deveres que, pela sua
natureza, não dependem da efetiva prestação de trabalho.
5. É expressamente vedado à entidade empregadora obstar,
dificultar ou sancionar, de modo direto ou indireto, o exer-
cício pelo trabalhador do direito de desconexão profissional.
6. Constituiu contraordenação grave a violação, pelo empre-
gador, do direito à desconexão profissional.”
Existe também o Projeto de Lei n. 643/XIII/3ª dos
Verdes que qualifica como contraordenação muito grave
a violação do período de descanso, inclusive mediante a
utilização de tecnologias de informação, pelo empregador.
Recentemente, o Projeto de Lei n. 1217/XIII, que apro-
va a Carta dos Direitos Fundamentais na Era Digital(83),
apresentado no dia 15 de maio deste ano, consagrou no
art. 16, com a epígrafe, Direito de desligar dispositivos di-
gitais, o seguinte: “1. Todos têm o direito de desligar dis-
positivos digitais fora do horário de trabalho, por forma a
Algumas Questões sobre o Direito à Desconexão dos Trabalhadores 77
garantir o direito ao descanso e ao lazer, a conciliação da
atividade profissional com a vida familiar, e a intimidade
da vida privada, sem prejuízo dos contactos a realizar pe-
lo empregador em casos de urgência de força maior ou no
quadro de relações profissionais de confiança pessoal(84).
2. A política de utilização de dispositivos digitais aplicá-
vel às várias categorias de pessoal, incluindo quem preste
serviço à distância deve ser definida nos termos do n. 2 do
artigo anterior.”
A questão que se coloca é a de mais uma vez não con-
sagrar como um verdadeiro dever do empregador e como
serão concretizadas as exceções que estabelece.
21. A grande questão é como conseguir esta verdadeira
desconexão que nos parece, muitas vezes, mais do que um
direito à desconexão um verdadeiro dever de desconec-
tar na medida em que, não raramente, a utilização des-
tas NTIC parece ser um fator de ineficiência e de danos à
produtividade. Em verdade, talvez o melhor caminho seja
a consagração como um dever do empregador a não inco-
modar o trabalhador e consagrá-lo nos deveres dos empre-
gadores e, depois, na parte relacionada com os tempos de
trabalho. É que, efetivamente, conseguir-se a desconexão
durante as férias é fundamental, mas muitas vezes o que
gera sintomas de fadiga, stress e síndrome de burn out ou
mesmo assédio é a inobservância diária, constante, contí-
nua deste direito dos trabalhadores ao descanso. Porque
no fundo é disso que se trata.
E, nesta temática, parece-nos também que os parceiros
sociais, por meio do diálogo social, têm um papel funda-
mental. Considera-se essencial que se consiga um novo
tipo de compromisso sobre flexibilidade temporal relacio-
nada com uma life-phase approach, tendo em consideração
os interesses de todos os sujeitos envolvidos.
Contudo, já não nos parece que seja a melhor opção,
nem sequer viável, a proibição absoluta de aceder aos ser-
vidores da empresa se isto significar que quando os tra-
balhadores chegam ao trabalho depois destas pausas são
completamente inundados com e-mails para responder. Pa-
ra evitar esta situação, parece-nos interessante a figura que
foi criada no Acordo de Empresa Daimler, na Alemanha,
em 2014, que introduziu a figura técnica de modo férias
que automaticamente apaga todos os e-mails recebidos
quando o trabalhador está ausente e aciona este mecanis-
mo, recebendo o remetente da mensagem uma mensagem
a informar do seu apagamento e de que deve contactar
outro trabalhador enquanto o colega estiver ausente(85).
Por outro lado, é importante ter em atenção que es-
te direito à desconexão não pode ser apenas vertical, mas
também horizontal, isto é, o trabalhador não tem de estar
(84) Negrito nosso.
(85) Veja-se, ainda, o acordo de empresa Flexibel arbeiten, bewusst abschalten do Grupo BMW, na Alemanha, de 2014.
(86) Veja-se o acórdão da Cour de Cassation de 8 de setembro de 2016, e RAY, Jean-Emmanuel. Grande accélération..., cit., p. 916.
disponível para o empregador fora dos tempos de trabalho,
como também não tem de o estar para os colegas de traba-
lho(86).
22. Parece-nos que nestas novas formas de prestar tra-
balho tem de se assegurar condições de trabalho decentes,
efetuando-se uma conexão entre bons produtos e serviços
e a noção de trabalho decente, independentemente do ti-
po de emprego que seja prestado, respeitando a ideia da
universalização dos direitos sociais, assim como a garantia
dos direitos individuais e coletivos, bem como os limites
máximos dos tempos de trabalho.
Creio, de fato, que o trabalho na era digital só pode ser
verdadeiramente um sucesso se estiver em sintonia com as
necessidades dos trabalhadores e com a ideia de um traba-
lho decente.
Se começar a se antecipar, dentro do possível, o futuro,
o trabalho na era digital pode oferecer uma possibilidade
de crescimento económico e um progresso para a socie-
dade em geral, com a eventual criação de um modelo de
trabalho que cumpra as regras de segurança e saúde e asse-
gure uma retribuição justa. Na sociedade do futuro, a ino-
vação ocupa um papel crucial e, num mundo globalizado,
tornar-se-á cada vez mais importante o desenvolvimento
de novas ideias e de novos negócios. Mas, para conseguir
tudo isso, é necessário segurança e apoio, parecendo-nos
fundamental que, no futuro mundo digitalizado do traba-
lho, o princípio tuitivo, a função protecionista do Direito
do Trabalho, se mantenha eficaz, com uma limitação ra-
zoável dos tempos de trabalho.
Não se pode esquecer de que, neste mundo, o trabalho
não significa apenas a principal fonte de rendimento para
a maior parte das pessoas, mas também uma forma de afir-
mação social e de contribuir para a dignidade e até identi-
dade da pessoa que trabalha, sendo para muitos a principal
forma de participação na sociedade. O emprego tem de
ser visto como uma atividade que visa a produção mate-
rial de bens e serviços úteis à sociedade e não como uma
atividade que apenas permite acumulação de riqueza. O
trabalho não deve ser tratado apenas como uma forma de
remuneração econômica, mas também como uma forma
de estar em sociedade. E a carência de emprego ou a sua
existência precária minam as possibilidades de integração,
podendo romper-se a coesão social e criarem-se situações
de exclusão, fazendo perigar a estabilidade da sociedade,
como bem se dizia na Carta Constitutiva da OIT, Cap. XIII
do Pacto de Versalhes, de 1919, bem como na Declaração
de Filadélfia, de 1944. Isto no tratado de armistício da I
Guerra Mundial e em plena II Guerra Mundial.
E se os efeitos destes novos desenvolvimentos na or-
ganização laboral e na própria sociedade são incertos, eles
78
O MUNDO DO TRABALHO EM DEBATE
Estudos em Homenagem ao Professor Georgenor de Sousa Franco Filho
podem e devem ser moldados pela sociedade. Está-se no
início de uma nova negociação entre os indivíduos, os par-
ceiros sociais e o Estado, e o papel dos parceiros sociais pa-
rece essencial na determinação do trabalho decente a nível
mundial. Parece-nos que o diálogo social e a participação
dos parceiros sociais, tanto em nível da concertação social
como em nível da negociação coletiva, podem potenciar
a concretização de respostas inovadoras nestas matérias,
nomeadamente quanto aos tempos de trabalho. Podem se
conseguir aos grandes desafios de hoje, respostas apropria-
das, porque portadoras de novas flexibilidades e de segu-
rança renovada, como o desenvolvimento da formação ao
longo da vida, o reforço da mobilidade, o envelhecimento
ativo ou ainda a promoção da igualdade de oportunidades
e da diversidade perante um mundo de trabalho que está a
sofrer uma verdadeira revolução.
23. Trata-se, assim, de promover uma alteração do mo-
delo de trabalhar, de incentivar uma cultura e uma organi-
zação do trabalho que vise favorecer um equilíbrio entre a
atividade profissional e a vida pessoal e familiar e uma cer-
ta autonomia e flexibilidade temporal em sentido positivo.
Trata-se de possibilitar uma desconexão técnica e in-
telectual, pois a primeira não basta já que não é pelo facto
de o trabalhador não ter acesso ao servidor da empresa que
deixará de trabalhar visto que as ideias e o trabalho intelec-
tual não estão confinadas ao tempo de trabalho.
A desconexão é, em primeiro lugar, uma questão de
formação sobre uma utilização razoável das NTIC, de or-
ganização individual, mas também coletiva, isto é, de saber
viver e sobreviver neste mundo digital, defendendo a ne-
cessária conciliação e equilíbrio entre a vida profissional e
a vida pessoal e familiar.
Por isso, considera-se que deve ser em nível do diálogo
social e das empresas, por meio de regulamento interno,
que devem ser obtidas as regras sobre organização das co-
municações na empresa já que as questões são diferentes
consoante o seu tipo, a sua dimensão à luz do art. 100 do
CT, a atividade a que se dedicam, assim como o próprio
tipo de trabalhadores que para elas trabalha e os instru-
mentos de trabalho que utilizam.
Uma das possibilidades que está prevista em França
em algumas convenções coletivas é a adoção de regras téc-
nicas simples, sejam iniciativas de tipo pop up lembrando
que, a partir das 20h00, o envio de e-mails pode esperar pe-
lo dia seguinte, ou regras obrigatórias, estabelecendo man-
chas horárias durante as quais podem se enviar e-mails;
seja direcionando os mesmos para um outro trabalhador
quando se está ausente; ou solicitando ao departamento
informático um balanço dos números de e-mails trocados
fora dos tempos de trabalho e durante o fim de semana,
embora, neste último caso, respeitando sempre todos os
direitos de personalidade, sobretudo o art. 22 do CT.
(87) Vide LOÏC, Lerouge. Le droit à la déconnexion à la française. Disponível em:
-a-la-deconnexion-a-la-française/>. Acedido em: fev. 2017.
Este direito à desconexão significa em algumas con-
venções coletivas que o empregador para contactar o tra-
balhador nos seus tempos de descanso tem de demonstrar
uma urgência para a utilização da mensagem eletrônica ou
do telefone profissional.
Este direito à desconexão significa também que se os
empregadores solicitarem com carácter regular trabalho
aos trabalhadores nos seus tempos de descanso podem ser
condenados por assédio moral.
Atendendo a esta possibilidade, várias empresas, em
França, já recorrem à tecnologia mediante a instalação de
sistema de alertas que visam avisar os trabalhadores que se
conectam muitas vezes fora dos tempos de trabalho ou que
não respeitam as 11 horas de intervalo entre as jornadas de
trabalho(87).
24. Em verdade, não pode deixar de se atender a que
a tecnologia é em si mesma neutra, o mesmo não se po-
dendo dizer do homem que a utiliza, cujo leitmotiv é o
controlo das pessoas. Aliás, conforme a história tem vindo
a demonstrar ao longo do tempo, tão curto e tão longo, as
inovações tecnológicas só dependem da utilização que lhes
é dada pelo homem.
Torna-se assim necessária uma atuação proactiva de
identificação dos riscos para a segurança e saúde dos tra-
balhadores nesta constante mutação tempos de trabalho.
É essencial tentar antecipar as mudanças tecnológicas
que estão a incidir sobre o trabalho, as formas de organiza-
ção do mesmo e um novo tipo de controlo. E esta anteci-
pação tem de ser feita pela formação contínua.
A crescente irrelevância de onde e quando o traba-
lho é realizado e a maior especialização significam que o
processo produtivo não para nas portas da fábrica, agora
fábrica virtual, o que origina novas necessidades de for-
mação para empregadores e trabalhadores. A criatividade
e as social skills, as digital skills, as soft skills, juntamente
com a capacidade de trabalhar em grupo, tornam-se ferra-
mentas essenciais para o sucesso, quer das empresas, quer
dos próprios trabalhadores e, por isso, a necessidade de
formação contínua.
Efetivamente, neste mercado de trabalho, os tradicio-
nais hard skills – competências técnicas – são insuficientes,
cabendo um papel acrescido aos denominados soft skills,
isto é, às competências comportamentais e sociais, crian-
do-se até as hibrid skills, que misturam competências téc-
nicas com cognitivas, tentando transformar os perdedores
em ganhadores. Citando Fernando Pessoa, “não é o tra-
balho, mas o saber trabalhar, que é o segredo do êxito no
trabalho”.
Torna-se fundamental investir nesta formação porque
muitos aspetos da personalidade humana, desde logo a in-
tuição por agora é dificilmente automatizada. É o chamado
Algumas Questões sobre o Direito à Desconexão dos Trabalhadores 79
paradoxo de Polany em homenagem ao filósofo húngaro
Michael Polany que defendia que we know more than we
can tell.
Atualmente, crê-se que mais do que nunca, certas ca-
pacidades humanas, certas skills, como a perceção, a cons-
ciência, a resolução de problemas complexos e a tomada de
decisões são essenciais. E, por isso, deve se apostar, e muito
na formação.
Essencial é começar desde já esta formação sob pena
de, não o fazendo, dar-se razão aos pensamentos apocalíp-
ticos sobre o fim do emprego. Não é possível esperar pela
próxima geração de trabalhadores. Se se quiser evitar que
a mudança tecnológica seja acompanhada da destruição de
emprego e de um aumento exponencial do desemprego e
da desigualdade, é preciso atuar já, e esta atuação tem de
ser feita por todos.
O aumento da formação a nível nacional, e mesmo in-
ternacional, ajuda a que se possam enfrentar as incertezas
e a melhor definir de forma coletiva os modos de produção
e a distribuição de riqueza, permitindo-se que cada um
possa se exprimir melhor pela formação contínua.
Torna-se assim imperioso procurar formar trabalhado-
res qualificados para diminuir a precariedade dos mesmos.
À medida que a população vai envelhecendo, é necessário
adaptar as condições de trabalho e, sobretudo, melhorar a
formação e a aprendizagem ao longo da vida profissional,
assim como a promoção da segurança e da saúde no tra-
balho.
Diria mesmo que esta procura de trabalhadores qualifi-
cados não pode ser feita apenas por meio da contratação de
trabalhadores mais jovens, mas sim, também, mediante a
contratação de trabalhadores considerados mais vulneráveis,
como pessoas mais velhas, mulheres, pessoas portadoras de
deficiência ou pessoas com passado migratório, trabalhado-
res estes que, por vezes, são bastante qualificados(88).
Acrescenta-se, ainda, que o futuro do Direito do Tra-
balho exige trabalhadores com mais conhecimentos, mais
formação e mais educação. É fundamental que os trabalha-
dores estejam altamente qualificados e com uma formação
(88) Ver, para maiores desenvolvimentos, MOREIRA, Teresa Coelho, “O diálogo social e trabalhadores vulneráveis num mercado de
trabalho flexível e precário. RAMALHO, Maria do Rosário Palma; MOREIRA Teresa Coelho (Coord.). Coleção Estudos APODIT, Con-
tratação coletiva: velhos e novos desafios em Portugal e Espanha. Lisboa: AAFDL, 2017, e Igualdade e Não Discriminação – Estudos
de Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2013.
(89) Veja-se, OIT. Trabalho digno em Portugal 2008-18: da crise à recuperação. Genebra, 2018 e RAMALHO, Maria do Rosário
Palma. A Economia Digital e a Negociação Coletiva. CRL, 2019.
(90) WEF. The future of jobs, 2016, p. 3, e ILO, Work for a brighter future – Global Commission on the Future of Work, Genebra,
2019, assim como Foresignt on new..., cit., p. 23.
(91) Para maiores desenvolvimentos, veja-se MOREIRA, Teresa Coelho. Algumas questões sobre trabalho 4.0. In: Prontuário de di-
reito do trabalho, 2016, II; e Novas formas de prestar trabalho na economia colaborativa: o trabalho 4.0. In: II Jornadas Regionais de
Direito do Trabalho – Memórias. Direção Regional do Emprego e Qualificação Profissional. Ponta Delgada, 2018.
(92) Aliás, de acordo com os dados apresentados pelo Joint Research Centre Science for Policý Report, Platform workers in Europe,
Publicações da União Europeia, 2018. p. 35-36, em média, mais de metade dos trabalhadores nas plataformas digitais realizam mais
de um tipo de tarefas por meio das mesmas: cerca de 40% realizam entre duas a três tarefas de diferentes tipos e 20% pelo menos três.
contínua pois só assim poderão enfrentar os desafios das
novas formas de prestar trabalho e da nova economia co-
laborativa, e terão verdadeiros ganhos de produtividade(89).
Em muitas indústrias e países, as atividades com mais
procura atualmente não existiam há 10 anos ou mesmo
5 anos atrás e se pensarmos que, segundo dados recen-
tes, 65% das crianças que entram agora no primeiro ciclo
irão trabalhar em atividades completamente novas que não
existem atualmente, vê-se a necessidade de antecipação das
necessidades futuras e de as formar para as mesmas(90)-(91).
Hoje em dia, nestas novas formas de prestar trabalho,
a divisão do trabalho em microtarefas, assim como o de-
saparecimento do posto de trabalho tradicional gera bas-
tante insegurança para quem efetua este tipo de atividades
convertendo-se em mais um risco para a segurança e saúde
dos mesmos. Por esta fragmentação da atividade os traba-
lhadores são quase obrigados a estar permanentemente à
procura de novas atividades e a tentar compatibilizar to-
das para conseguirem um rendimento condigno(92). E esta
constante procura de novas tarefas, com exigências diver-
sificadas, exige formação específica e preparação adequada
o que levanta mais riscos para a segurança e saúde dos
trabalhadores.
Ao se analisar estas condições, sem dúvida que muitas
indicam que a flexibilidade temporal não significa liber-
dade, mas sim o seu contrário, tornando-se cada vez mais
difícil a conciliação dos tempos de trabalho com os tempos
pessoais.
CONCLUSÕES
1. A ideia defendida atualmente do Always on, das 24
horas sobre 24 horas, de estar sempre disponível, revela-se
ruinosa para o que deve ser essencial na vida das pessoas,
pois se o trabalho não pode se reduzir a uma mera pres-
tação de atividade, sendo um local de desenvolvimento
profissional e pessoal, o que é certo é que a sociedade do
conhecimento modificou radicalmente a relação entre a
vida profissional e a vida privada e familiar.
80
O MUNDO DO TRABALHO EM DEBATE
Estudos em Homenagem ao Professor Georgenor de Sousa Franco Filho
E se, sem qualquer dúvida, as NTIC atribuem a uma
infinidade de pessoas novos objetivos e desafios que se tor-
nam fundamentais na sociedade atual e que muitos podem
ser apaixonados pelo trabalho sem se tornarem workaholic,
e que todos podem ter um bom stress que até ajuda a me-
lhorar as suas capacidades, deve se refletir no reverso da
medalha, e a defesa destes valores não poderá significar a
possibilidade de um retrocesso quanto a certos direitos fun-
damentais, principalmente o direito ao descanso, ao repou-
so e à integridade física e mental dos trabalhadores.
2. Não defendemos, contudo, um retrocesso em maté-
ria de evolução das empresas, pois elas têm de ser compe-
titivas e essa competitividade passa necessariamente pela
sua informatização e pela aquisição crescente de NTIC, que
têm inúmeros aspetos positivos. Mas, se é inquestionável
que as empresas devem ser eficientes, dinâmicas e atuali-
zadas, não é menos certo que esses objetivos não podem
ser conseguidos à custa da dignidade dos trabalhadores, à
custa de direitos fundamentais que tão duramente foram
conquistados. Não vale tudo. As empresas devem pensar o
trabalho e a sua organização em função da pessoa humana
e não o inverso, nomeadamente em matéria de limitação
dos tempos de trabalho, sob pena de caminharmos para
um novo tipo de escravatura, muito mais difícil de erra-
dicar e provar porque, aparentemente, é quase, diríamos,
ainda que antagonicamente, voluntária.
3. Deve se defender o direito à saúde mental dos traba-
lhadores sob pena de as próprias empresas poderem vir a
ser responsabilizadas por não terem acautelado de todas as
situações e não terem assegurado a saúde dos trabalhado-
res, anteriormente física e, hoje, sobretudo mental.
4. Perante esta revolução digital, é necessário, diria até
urgente, antecipar o futuro e começar já hoje a alteração do
Direito do Trabalho, por um compromisso social que be-
neficie trabalhadores e empregadores por meio, por exem-
plo, de acordos com os parceiros sociais para identificar
formas de conciliar melhor a vida profissional com a vida
pessoal e familiar, de conseguir uma melhor flexibilização
dos tempos de trabalho que satisfaça também as necessi-
dades dos empregadores, ou pela intensificação e melhoria
da formação ao longo da vida que é, sem dúvida, a melhor
resposta para um mundo do trabalho que está constante-
mente em mutação.
5. E se, atualmente, vivemos uma época admirável,
num Admirável Mundo Novo do Trabalho, não podemos nos
(93) RAY, Jean-Emmanuel. La guerre des temps..., cit., p. 9.
(94) Neste sentido, RAY, Jean-Emmanuel. Qualité de vie..., cit., p. 154.
esquecer de que as ligações e os valores fundamentais para
uma sã convivência nesta sociedade globalizada, da infor-
mação e do conhecimento, não se compadecem com uma
cultura da urgência. E se estas ligações não têm “horror do
vazio” têm, contudo, um horror pela velocidade(93), pelo que,
por vezes, este nosso Admirável Mundo Novo do Trabalho,
mais parece um “Abominável Mundo Novo do Trabalho.
6. Parece ser essencial, e mesmo imperioso, refletir so-
bre a sociedade que queremos construir e onde desejamos
viver, sabendo que todas as opções que fizermos irão in-
fluenciar, positiva ou negativamente, as nossas famílias e
os nossos descendentes, ou seja, a sociedade.
7. Pouco mais de um século depois do surgimento do
Direito do Trabalho como ramo de Direito autónomo, as-
siste-se atualmente a uma oportunidade histórica de re-
pensar e até de recriar um novo Direito do Trabalho – o
Direito do Trabalho imaterial, associado ao crescimento
destas TIC e à sua influência no Direito do Trabalho. Ago-
ra, e desde sempre, as máquinas são criadas pelo Homem
e para o Homem e, por isso, a economia digital tem de se
basear e se desenvolver na ideia de trabalho decente e que
respeite a dignidade humana(94). Parece-nos que o direito
à desconexão não é apenas necessário; ele é indispensável
para garantir ao trabalhador dos nossos dias, mas também
ao trabalhador do futuro, uma tutela útil e, por isso, não
deve ser considerado como uma espécie de travão à ati-
vidade das empresas, mas como uma verdadeira oportu-
nidade de repensar os processos de trabalho, o diálogo e
a formação profissional e daí, a visão como um dever do
próprio empregador a não perturbar o trabalhador.
8. Há que defender, parece-nos, que estas novas formas
de desumanização do trabalho não são uma fatalidade nem
uma parte inevitável do progresso tecnológico. Bem pelo
contrário. As TIC podem constituir um instrumento exce-
cional de libertação do Homem porque permitem que este
se concentre na parte mais criativa do seu trabalho. Mas,
para conseguir tudo isto, tem de se abandonar o modelo do
trabalhador ligado ao computador e passar a se desenvol-
ver o modelo do computador como um modo de trabalhar,
adaptando-o ao Homem, procurando sempre um regime
de trabalho realmente humano, tal como está previsto na
Constituição da OIT que, necessariamente, nos dias que
correm, tem de ser revisitada, pois apesar de serem valores
pré-digitais, não são valores obsoletos.
Portugal, maio de 2019.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT