Análise do patrimônio nos três planos do mundo jurídico. Análise estrutural, funcional e dinâmico-processual do patrimônio

Páginas101-132
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ANÁLISE DO PATRIMÔNIO NOS TRÊS
PLANOS DO MUNDO JURÍDICO.
ANÁLISE ESTRUTURAL, FUNCIONAL
E DINÂMICO-PROCESSUAL DO
PATRIMÔNIO
6.1. ANÁLISE DO PATRIMÔNIO À LUZ DOS PLANOS DA EXISTÊNCIA,
VALIDADE E EFICÁCIA DO MUNDO JURÍDICO
F. C. Pontes de Miranda põe em evidência que o patrimônio é, em si, fe-
nômeno jurídico que pertence ao plano da ecácia1. Contudo, esse fenômeno
ecacial resulta da concretização de suportes fáticos ligados a fatos jurídicos que,
estes sim, passam pelo plano da existência e, por vezes, pelo plano da validade.
Fato jurídico que precisa existir (= entrar no plano da existência do mundo
jurídico) para que seja produzida a ecácia patrimônio geral da pessoa natural é
aquele previsto pela regra jurídica do art. 2.º, primeira parte CC:
“Art. 2o A personalidade civil2 da pessoa3 começa do nascimento com vida; mas a lei põe a
salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Com efeito, deste artigo devem ser extraídas duas normas jurídicas comple-
tas distintas (cada qual com a sua própria estrutura normativa binária4, formada
por hipótese e consequência), a saber:
1. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, v. 5, p. 367.
2. Melhor seria se o Código tivesse empregado, aqui, a expressão personalidade jurídica (trata-se de
qualidade da pessoa natural cujas repercussões não estão restritas ao Direito Civil, mas se expandem
por todos os campos do Direito).
3. Melhor seria se o Código tivesse empregado, aqui, a expressão ser humano, para evitar a tautologia
com o termo personalidade, empregado logo anteriormente, e para ser mais preciso, com relação à
espécie de pessoa abrangida pela norma.
4. Adota-se aqui a corrente não sancionista acerca da estrutura lógico-formal da regra jurídica perlhada,
dentre outros autores, por A. von Tuhr, K. Larenz e F. C. Pontes de Miranda. De acordo com essa cor-
rente, a regra jurídica é uma proposição completa quando apresenta a descrição de um suporte fático
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O PATRIMÔNIO NO DIREITO CIVIL E NO DIREITO EMPRESARIAL • Marcel edvar SiMõeS
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1a Norma Jurídica:
(i) Hipótese (suporte fático): ser humano + nascido5 + com vida6;
(ii) Consequência: atribuição de personalidade jurídica (em sentido técnico-jurídico, cf.
concretização do seu conteúdo no art. 1.o CC).
2a Norma Jurídica:
(i) Hipótese (suporte fático): ser humano + ainda não nascido (nascituro)
(ii) Conseqüência: atribuição de posições jurídicas subjetivas ativas (“direitos”), desde a
concepção, que são resguardadas pela lei.
Com efeito, do fato jurídico stricto sensu do nascimento do ser humano
com vida (suporte fático) se irradia como efeito não apenas o início da perso-
nalidade jurídica da pessoa natural, mas igualmente o efeito do surgimento
ou início do patrimônio daquela pessoa natural. Há autores que propõe uma
diferenciação entre o patrimônio em si e a aptidão para adquirir patrimônio
– capacidade para adquirir patrimônio, que não seria nada mais nada menos
do que uma faceta da própria capacidade jurídica da pessoa, ou então de sua
personalidade7. Essa diferenciação, embora possa e deva ser feita, precisa ter
seus termos bem compreendidos: no campo deontológico do Direito, não há
regra lógica que impeça que a aptidão para adquirir nasça simultaneamente
com a aquisição de algo (anal, trata-se aqui de efeitos jurídicos) – é o que se
dá em matéria de patrimônio.
Com efeito, mesmo que se adotasse a concepção de que uma pessoa só tem
patrimônio quando é titular de ao menos uma posição jurídica patrimonial
(concepção esta que não se adota no presente trabalho), ainda assim seria forço-
sa a conclusão de que a pessoa natural, ao nascer, já titulariza, necessariamente,
um patrimônio. Pode-se comprovar tal asserção pelo seguinte dado: a perso-
nalidade jurídica e a capacidade jurídica (que é conteúdo daquela) da pessoa
natural têm início com o nascimento com vida do ser humano; também desde o
nascimento com vida do ser humano este já se torna, imediatamente, titular de
direito subjetivo de crédito (direito, portanto, de caráter patrimonial) orientado
ao recebimento de prestações que propiciam o seu sustento material, nos termos
(hipótese) e a prescrição do preceito a ele correspondente (consequência), que pode ou não ser uma
sanção (conra-se a exposição de M. Bernardes de Mello. Teoria do fato jurídico – Plano da existência.
22. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, pp. 74-84).
5. Nascimento, aqui, signica separação da criança das entranhas maternas (predomina que indepen-
dentemente do rompimento do cordão umbilical).
6. Vida, nesta hipótese normativa, signica respiração (presença de ar nos pulmões). Determinados
procedimentos da medicina, como o teste de Galeno, por exemplo, são empregados para demonstrar
a presença ou não de ar nos pulmões.
7. Nesse sentido, P. Cunha. Do património – Estudo de direito privado I. Lisboa: Minerva, 1934, pp. 350-355;
M. Oliva. Patrimônio separado – Herança, massa falida, securitização de créditos imobiliários, incorporação
imobiliária, fundos de investimento imobiliário, trust. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 203.
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6 • ANáLISE Do PATrImÔNIo NoS TrÊS PLANoS Do muNDo JurÍDICo
do art. 229, caput CF e dos arts. 1.566, IV, 1.630 e 1.694, caput CC. Aqui, pouco
importa se esse direito de crédito será adimplido espontaneamente pelos pais do
recém-nascido (que são os devedores, in casu), ou se será necessário o manejo da
respectiva “ação” de alimentos: os objetos das prestações em questão (alimenta-
ção, vestuário, cuidados médicos) têm inegável caráter econômico-patrimonial.
Portanto, sendo esse direito um direito de crédito, e sendo o patrimônio o locus
que alberga todos os direitos de crédito de um sujeito, impõe-se a conclusão de
que todo ser humano, ao nascer, já se apresenta como titular de ao menos uma
posição patrimonial – ainda que integrada ao chamado patrimônio mínimo ou
patrimônio em sentido ético-jurídico8 (razão pela qual R. Nery arma que “os
chamados ‘alimentos’ são expressão interessante da patrimonialidade de um
direito designado como de personalidade”9).
Há que se fazer uma diferenciação entre o direito a alimentos, ou o direito
de fundo (ao qual a lei, por exemplo, atribui uma imposição legal de indispo-
nibilidade com o escopo de proteção do alimentando), e os direitos de crédito
derivados que exsurgem a partir deste direito-base. Estes últimos são aqueles
por vezes identicados, na praxe judiciária, como as repercussões nanceiras
do direito-base, os créditos atinentes a parcelas nanceiras de adimplemento
periódico, e cujo cumprimento materializa a realização do direito de fundo ou
direito-base10.
6.2. A ESTRUTURA DO PATRIMÔNIO E SUA COMPOSIÇÃO
6.2.1. O repertório: posições jurídicas subjetivas patrimoniais
Os elementos do repertório patrimonial são, exclusivamente, posições
jurídicas subjetivas.
Conforme expõe, com propriedade, M. Bernardes de Mello, patrimônio,
do ponto de vista jurídico, é a soma de todos os direitos patrimoniais – e apenas
desses – que toquem a um sujeito de direito. No conceito jurídico de patrimônio
8. O direito ao sustento material ou direito a alimentos dos lhos menores em face dos pais, entendido
como o direito-base ou direito de fundo, pertence ao setor nuclear da esfera jurídica individual, inte-
grando o patrimônio em sentido ético-jurídico da criança ou do adolescente.
9. Cf. Alimentos. São Paulo: RT, 2018, p. 31.
10. O caráter de incessibilidade quanto a estes créditos derivados é apenas relativo, o que se verica já a
partir da possibilidade de construção de uma dualidade entre parcelas vencidas e parcelas vincendas:
com relação às parcelas vencidas ou pretéritas, entende-se possível a sua cessão ou disposição, até
mesmo porque o alimentando já sobreviveu sem recebê-las, de modo que não se justica marcá-las
para o futuro com um atributo de essencialidade em prol de uma proteção do credor. Cf. M. Simões.
Transmissão em direito das obrigações – Cessão de crédito, assunção de dívida e sub-rogação pessoal.
Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da USP. São Paulo, 2011, pp. 31-32.
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