A esfera jurídica e o patrimônio geral

Páginas43-92
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A ESFERA JURÍDICA
E O PATRIMÔNIO GERAL
3.1. EXAME PRÉVIO: VOCABULÁRIO ESPECÍFICO DA TEORIA
POSICIONAL-RELACIONAL E CATEGORIAS DO PLANO DA
EFICÁCIA DO MUNDO JURÍDICO NO PENSAMENTO DE G.
LUMIA, A. TOMASETTI JÚNIOR, F. C. PONTES DE MIRANDA E M.
BERNARDES DE MELLO
O estudo dos conceitos de esfera jurídica e de patrimônio, como autênticos
complexos ou aglomerados pertencentes ao plano da ecácia do mundo jurídi-
co, exige o exame prévio de outras categorias ecaciais que são absolutamente
imprescindíveis para o entendimento do funcionamento deste plano – nomea-
damente, as categorias da relação jurídica e das situações jurídicas (dentre estas,
com destaque para a espécie concernente às posições jurídicas subjetivas).
Nesse contexto, é essencial reconhecer desde logo que a Teoria Geral do
Direito Privado contemporânea continua apoiada nas grandes construções
conceituais do Pandectismo germânico1, particularmente em três conceptua-
lizações: (i) a teoria geral da relação jurídica; (ii) a teoria do negócio jurídico;
(iii) a teoria da pessoa em sentido jurídico (abrangendo tanto a pessoa natural
como a pessoa jurídica). Nas Faculdades de Direito europeias, estes conceitos
seguem recebendo ainda hoje grande valorização (a despeito de haver também
alguma superação, e relativização de sua utilização como modelo de solução de
1. Os juristas alemães se referem a três momentos brilhantes, ou momentos gloriosos, na história jurídica
universal. São eles: (i) a jurisprudência clássica, à época do Imperador Augusto, na Roma Antiga; (ii) a
Escola dos Glosadores e Comentaristas, em Bolonha, no século XI; (iii) a Escola Pandectista Germânica,
do nal do século XVIII até a Primeira Guerra Mundial. Alguns ainda inserem um quarto momento
nesta relação, o jusracionalismo europeu dos séculos XVII e XVIII (cf. F. Wieacker, História do direito
privado moderno, p. 279-280 e 716-717). São chamados de momentos brilhantes pois foi neles que a
experiência do Direito, e o pensamento dos juristas, mais estiveram conectados com o seu tempo, e
com os anseios da sociedade.
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O PATRIMÔNIO NO DIREITO CIVIL E NO DIREITO EMPRESARIAL • Marcel edvar SiMõeS
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problemas2) – bastando ressaltar que a teoria geral da relação jurídica é ensinada
de forma especialmente separada3.
Os nomes de três pandectistas em especial devem ser sempre reconhecidos,
prontamente, por qualquer estudioso do Direito cujo sistema pertença à família
romano-germânica, tal a inuência que exerceram e exercem sobre a ciência e
sobre a modelagem de ordenamentos positivos a eles posteriores. Trata-se de F. C.
von Savigny (o grande nome da Escola Histórica), R. von Jhering (desenvolvedor
de ideias caras à dogmática do Direito Privado, como a culpa in contrahendo e
sua própria teoria da posse) e B. Windscheid (o grande nome por trás do projeto
do Código Civil alemão).
Os pandectistas tinham suas preocupações voltadas para a construção de
um verdadeiro sistema cientíco em Direito, valendo-se, para tanto, de modelos
generalizantes capazes de propiciar uma maneira de pensar autenticamente jurí-
dica4. E talvez o maior feito desses juristas esteja, conforme ensina A. Tomasetti
Jr.5, na construção da teoria geral da relação jurídica.
Partindo do entendimento de que há relações intersubjetivas que interessam
e que não interessam ao Direito, sendo que a nalidade deste é o regramento dos
casos em que se veriquem – atual ou potencialmente – situações de conito
de interesse, essa teoria descreve que as mais variadas relações humanas que
interessam ao Direito são essencialmente redutíveis a um modelo abstrato (e
geral), que se compõe de quatro elementos – os quatro elementos da teoria geral
da relação jurídica.
2. Sobre críticas ao modelo da relação jurídica e propostas para sua reformulação, cf. J. Oliveira Ascensão,
Direito civil – Teoria Geral – Volume III – Relações e situações jurídicas. Coimbra: Coimbra, 2002.
3. Tratando-se de conceito dotado de elevada abstração, mostra-se conveniente o estudo dessa teoria
após o estudo das diversas espécies de relações jurídicas concretamente consideradas, em especial das
relações familiares e das relações reais calcadas no seu protótipo que é a relação jurídica de propriedade
plena ou domínio (que são as modalidades mais próximas e reconhecíveis por parte do estudante de
graduação). Não é assim, porém, a tradição nas Faculdades de Direito no Brasil.
4. As inuências recebidas pelos pensadores pandectistas nesta tarefa vão desde o exame fundamental
das pandectas (nome grego correspondente ao Digesto – sabidamente a parte mais rica do Corpus Iuris
Civilis – e através do qual essa linhagem de juristas passou a ser conhecida), passando pela losoa
kantiana (com os conceitos kantianos de liberdade), pela descoberta das tradições jurídicas regionais
e (criticamente) do pensamento do Direito Natural, até os termos da ideologia capitalista em consoli-
dação. Nesse sentido, corroborando a tese de múltiplas bases do pensamento pandectista, F. Wieacker
esclarece, especicamente acerca da losoa kantiana, que “as denições de direito subjectivo, de
autonomia privada, de negócio jurídico e de vontade negocial dadas por Savigny correspondem à
exigência posta por Kant daquela liberdade que pudesse coexistir com a liberdade de todos os outros
(História do direito privado moderno cit., p. 428).
5. Compilação de aulas da disciplina Tipos Contratuais Gerais, ministradas no Curso de Pós-Graduação
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo no ano de 2004.
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3 • A ESFErA JurÍDICA E o PATrImÔNIo GErAL
Esses elementos são: (i) os sujeitos da relação (que guram nos respectivos
polos ou lados da relação); (ii) o objeto da relação (que gura no centro da relação,
entre os dois sujeitos, e guarda ligação com a ideia de bens em sentido amplo);
(iii) o fato jurídico constitutivo da relação6; (iv) a garantia da relação (que consiste,
na realidade, no conjunto de todos os mecanismos que o ordenamento jurídico
coloca à disposição dos sujeitos da relação – em especial, do sujeito ativo – para
a proteção do conteúdo dessa relação)7.
O quadro a seguir traz a imagem da teoria, com a ordenação de seus ele-
mentos:
QUADRO ESQUEMÁTICO N.º 02
(TEORIA GERAL DA RELAÇÀO JURÍDICA):
Funcionalmente, a relação jurídica foi pensada (o que nem sempre foi
percebido pelos estudiosos posteriores) como um mecanismo material de
composição de lides, conforme colocado em relevo por C. A. Mota Pinto. Isso
porque quando o ordenamento jurídico elege um sujeito para ser o titular do
interesse predominante na relação (= sujeito ativo), e elege outro sujeito para ter
o seu interesse subordinado ao do primeiro (= sujeito passivo), o ordenamento
já está ao menos iniciando o processo de resposta sobre a forma de compor um
conito de interesses entre esses referidos sujeitos. Naturalmente, as normas de
6. Os fatos jurídicos podem ser constitutivos, modicativos ou extintivos da relação jurídica. Somente
os primeiros, contudo, compõem todas as espécies como elemento constante, sempre presente. Com
efeito, o fato jurídico entra no mundo jurídico pelo plano da existência, passa pela chancela do plano
da validade (se se tratar de fato jurídico em cujo suporte fático esteja presente elemento volitivo, isto
é, se se tratar de ato jurídico stricto sensu ou de negócio jurídico) e, nalmente, produz seus efeitos no
plano da ecácia (o que, numa enorme quantidade de casos, equivale a gerar, constituir, uma relação
jurídica). A relação jurídica e todo o seu conteúdo são, assim, efeitos do fato jurídico.
7. Cf. M. A. Domingues de Andrade, Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1998, v. 1, p.
19 e ss.
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