Antijuridicidade como requisito da responsabilidade civil extracontratual: amplitude conceitual e mecanismos de aferição

AutorRafael Peteffi da Silva
Ocupação do AutorProfessor Associado da Faculdade de Direito da UFSC. Coordenador da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo
Páginas91-123
ANTIJURIDICIDADE COMO REQUISITO
DA RESPONSABILIDADE CIVIL
EXTRACONTRATUAL:
AMPLITUDE CONCEITUAL
E MECANISMOS DE AFERIÇÃO
Rafael Peteff‌i da Silva
Professor Associado da Faculdade de Direito da UFSC. Coordenador da Rede de
Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.
Sumário: 1. Introdução. 2. Amplitude conceitual e conteúdo da antijuridicidade. 2.1 Panora-
ma geral da terminologia da antijuridicidade. 2.2 Ilicitude Objetiva e Ilicitude Subjetiva. 2.3
Antijuridicidade formal e material: o conteúdo do conceito jurídico de antijuridicidade. 3.
Locus e abrangência operacional da antijuridicidade. 3.1 Locus operacional da antijuridici-
dade: conduta ou resultado (dano)?. 3.2 O fator de avaliação da antijuridicidade: desvalor da
conduta ou desvalor do resultado? 4. Antijuridicidade como pressuposto da responsabilidade
civil. 4.1 Correntes não que aceitam a antijuridicidade como um pressuposto autônomo
da responsabilidade civil. 4.1.1 A irrelevância da antijuridicidade como pressuposto da
responsabilidade civil. 4.1.2 Falta de autonomia da antijuridicidade como pressuposto da
responsabilidade civil. 4.2 A antijuridicidade como pressuposto autônomo para o surgimento
do dever de indenizar. 4.2.1 A antijuridicidade como quebra de um “dever de cuidado” (duty
of care). 4.2.2 – O afastamento da antijuridicidade somente nas hipóteses de observância de
causas de justicação. 5. Conclusão; 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
De uma maneira simplista e até mesmo tautológica, poder-se-ia af‌irmar que a anti-
juridicidade representa o ato contrário ao direito. Essa noção básica de antijuridicidade
permeia o imaginário dos juristas e está plasmada nas lições doutrinárias sobre o tema.
Uma abordagem mais detalhada sobre o assunto, contudo, mostra-se essencial para
guiar o estudioso da responsabilidade civil por entre os intrincados problemas atuais
que o instituto possui.
A responsabilidade civil extracontratual constitui uma modalidade em que, na gran-
de maioria dos casos, o dever obrigacional de indenizar a vítima surge de fatos jurídicos
que afrontam diretamente normas positivadas, sem a intermediação de um negócio jurí-
dico realizado entre autor e vítima. Em ordenamentos jurídicos como o brasileiro, cujo
sistema de responsabilidade civil extracontratual é caracterizado por grandes cláusulas
gerais, a identif‌icação de fatos que representem contrariedade ao ordenamento jurídico
considerado em sua totalidade é, além de tarefa muitas vezes árdua, importante critério
para selecionar condutas aptas a gerar danos indenizáveis.
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Porém, difícil negar que a antijuridicidade, não apenas em terras brasileiras, sofre
certo desprestígio como requisito da responsabilidade civil. Além de ser ignorada por
parte da doutrina nacional, que explora a noção de faute francesa sem dar importância
ao seu elemento objetivo, a ilicitude acabou sendo confundida com a culpabilidade ou
engolida por teorias sobre o dano cada vez mais ampliativas, restando como único res-
quício do seu fator operativo as chamadas causas excludentes, como a legítima defesa e
o exercício regular de direito1.
Ademais, ainda que a antijuridicidade seja uma noção fundante da esmagadora
maioria dos sistemas europeus2, as modernas tentativas de harmonização da responsa-
bilidade civil europeia acabam por trabalhar o espírito da antijuridicidade sob a roupa-
gem dos interesses juridicamente protegidos ou dos legally relevant damage3. Por f‌im,
a importação por vezes acrítica da f‌igura italiana do danno ingiusto acaba por dar ares
novidadeiros a soluções já solidif‌icadas em nossa tradição jurídica, que se utiliza dos
múltiplos desdobramentos da antijuridicidade.
Como resposta a um cenário que poderia ser de crise, além dos trabalhos monográ-
f‌icos que abordam o instituto como seu tema principal, a antijuridicidade continua a ser
prestigiada nos mais modernos códigos civis, como os diplomas português, holandês e
o recentíssimo Código Civil argentino, que tem na antijuridicidade um dos pilares do
seu sistema de responsabilidade civil. No cenário brasileiro, o Código Civil de 2002 so-
lidif‌icou a tradição nacional de contar com a antijuridicidade ou ilicitude objetiva como
elemento da cláusula geral de responsabilidade civil positivada no antigo artigo 159, por
intermédio dos atuais artigos 186 e 187.
Por ser a antijuridicidade geralmente tratada como sinônimo de ilicitude, um termo
que permite variadas interpretações, o caminho inicial para o enfrentamento do tema
deve centrar os esforços na construção de acordos semânticos a respeito da ilicitude e
da antijuridicidade, identif‌icando o contexto em que esses termos são utilizados, de
acordo com a estrutura sistemática dos diversos ordenamentos jurídicos estudados.
Após o tratamento terminológico da antijuridicidade, a análise das diferenças entre a
antijuridicidade formal e material impõe-se, para descortinar a integralidade do conteúdo
do instituto no contexto atual. Esses temas constituem o objeto do primeiro capítulo.
Após a verif‌icação do conteúdo da antijuridicidade em alguns ordenamentos ju-
rídicos que se relacionam de maneira mais intensa com a realidade jurídica brasileira,
o segundo capítulo do presente estudo dedicar-se-á a identif‌icar o locus operacional da
antijuridicidade, majoritariamente relacionado com a conduta do agente ou com o fato
causador do dano. Outrossim, a investigação das maneiras pelas quais a contrariedade
ao ordenamento jurídico ocorre assume importância prática inegável, atentando-se
para as divergências entre as teorias do desvalor da conduta e do desvalor do resultado.
1. PENA LÓPEZ, José Maria, prólogo à obra de BUSTO LAGO, José Manuel. La antijuridicidad del daño resarcible en
la responsabilidad civil extracontratual. Madri: Tecnos, 1998, p. 14 e ss.
2. EUROPEAN GROUP ON TORT LAW. Principles of European Tort Law. Viena: Springer, 2005, p. 25, comentários
por KOZIOL, Helmut.
3. VON BAR, Christian; CLIVE, Eric; SCHULTE-NÖLKE, Hans. (Orgs.) Principles, def‌initions and model rules of
European private law: Draft Common Frame of Reference (DCFR). Outline Edition. Munique: Sellier, 2009. Para
uma análise mais detida destes diplomas de harmonização veja-se o item 3.1 do presente trabalho.
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ANTIJURIDICIDADE COMO REQUISITO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Os aludidos movimentos de perda e retomada de prestígio da antijuridicidade
coincidem com a sua (des)consideração como necessário requisito da responsabilidade
civil. Portanto, após assentadas as bases dogmáticas do instituto da antijuridicidade na
responsabilidade civil, o capítulo derradeiro ocupar-se-á do tratamento do papel siste-
mático da antijuridicidade no cenário contemporâneo das demandas indenizatórias.
2. AMPLITUDE CONCEITUAL E CONTEÚDO DA ANTIJURIDICIDADE
2.1 Panorama geral da terminologia da antijuridicidade
O termo antijuridicidade é fruto do desenvolvimento observado na dogmática penal
alemã4. Quando os autores passaram a abandonar o latim e escrever em alemão, vários
foram os termos utilizados para expressar o ato contrário ao direito, tais como Unrecht,
Rechtswidrigkeit ou Widerrechtlichkeit5.
As primeiras traduções do instituto feitas para algumas línguas latinas, como o
espanhol, ocorreram somente no século XX. Desde essa época, as complexidades foram
notadas, principalmente em relação ao instável relacionamento semântico entre os ter-
mos ilicitude e antijuridicidade6, muitas vezes tidos por sinônimos e outras tantas vezes
utilizados para marcar diferenças conceituais. Passar-se-á a enfrentar as possibilidades
terminológicas que envolvem o instituto aqui estudado, principalmente nos países de
língua latina, tentando entender a sua relação com a amplitude conceitual observada
nos ordenamentos jurídicos respectivos.
A literatura portuguesa, de grande inf‌luência em nosso país, tem na palavra ilicitude
a manifestação comum do instituto analisado. A ilicitude possui lugar de destaque em
grande parte das obras sobre responsabilidade civil, pois é considerada um dos requisi-
tos fundamentais para o nascimento do dever de indenizar. Muitos autores utilizam-na
4. CALVO COSTA, Carlos. Daño Resarcible. Buenos Aires: Hammurabi, 2005, p. 119; e GARCIA-RIPOLL MONTI-
JANO, Martín. La antijuridicidad como requisito de la responsabilidad civil. Anuario de Derecho Civil. Tomo LXVI.
Fascículo IV. Madrid: Boletín Of‌icial del Estado, 2013, p. 1504.
5. GARCIA-RIPOLL MONTIJANO, Martín. Op. cit., p. 1513. Texto original: “Cuando los autores del área germánica
empezaron a escribir en su lengua materna, tradujeron el término iniuria bien como Unrecht (literalmente, «no
Derecho» o «antiderecho»), bien como Rechtswidrigkeit o Widerrechtlichkeit («antijuridicidad»), aunque pro-
bablemente el término más usado hoy día sea Rechtswidrigkeit. Al f‌inal de este proceso, el último autor del Usus
Modernus Pandectarum, Christian F. Glück (1755-1831) escribió que «El daño puede ser causado por una persona
cabal mediante la lesión antijurídica (widerrechtlich) en la cosa de un tercero. Tal daño antijurídico (rechtswidrig)
es llamado damnum iniuria datum”.
6. CALVO COSTA, Carlos. Op. cit., p. 119. Complementando, GARCIA-RIPOLL MONTIJANO, Martín. Op. cit., p.
1514: “Una aclaración sobre la terminología en castellano. El término que, desde el punto de vista etimológico,
mejor traduciría «Rechtswidrigkeit» sería «injuria», hasta tal punto que la palabra alemana surgió para traducir
el «iniuria» latino. Sin embargo, injuria ha adquirido un signif‌icado muy particular en castellano que desaconseja
su uso. Las palabras clásicas castellanas para designar estas situaciones han sido siempre «ilícito» e «ilicitud»,
mientras que «antijuridicidad» es un neologismo doctrinal reciente. En nuestro idioma, tradicionalmente, lo
jurídico ha sido lo referido al Derecho, no lo conforme al Derecho (ej., problema jurídico, estudios jurídicos,
etc.). Además, está compuesta de muchas sílabas, lo que es bastante corriente en alemán, pero no en castellano;
por ello, se la ha calif‌icado de «feo trabalenguas» [Jiménez de Asúa, Tratado de Derecho penal, IV, 2. ed., Losada,
Buenos Aires (1961)], que propuso luego el término «antijuricidad», que es el que utilizan algunos autores, como
Muñoz Conde, Derecho penal. Parte general, 8ª ed., Tirant lo Blanch, Valencia (2010), p. 300 y ss.; o Pantaleón,
Comentario del Código Civil, Ministerio de Justicia, t. II, Madrid (1993), artículo 1902, p. 1993”.
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