Causalidade mínima

AutorMafalda Miranda Barbosa
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Páginas3-23
CAUSALIDADE MÍNIMA
Mafalda Miranda Barbosa
Mestre e Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Investigadora do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Sumário: 1. Introdução; 2. Causalidade mínima: casos tipo. Causalidade mínima; causalidade
aditiva e causalidade cumulativa necessária; 3. A imprestabilidade das teorias causais tradi-
cionais; 3.1. A teoria da conditio sine qua non; 3.2. A causalidade adequada; 4. Superação
da visão tradicional; 4.1. Da causalidade à imputação objetiva; a) a diferenciação entre a
causalidade fundamentadora da responsabilidade e a causalidade preenchedora da respon-
sabilidade; b) a compreensão da causalidade como nexo de imputação; 4.2. Consequências
dogmáticas do entendimento proposto; 5. O regresso à causalidade mínima: causalidade
aditiva e causalidade cumulativa necessária; 6. Conclusões. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Aprendemos todos, em tempos mais ou menos recuados, a integrar entre os pres-
supostos da responsabilidade civil a causalidade. A razão para tal é clara: a responsabi-
lidade civil tem um pendor eminentemente ressarcitório, pelo que a presença do dano
e a sua ligação ao comportamento (em regra) culposo e ilícito é fundamental. Mais do
que isso: esta ligação, desde que estejamos a falar do dano evento ou dano lesão (lesão
do direito ou do interesse), é essencial para se estabelecer a própria ilicitude, categoria
imprescindível num sistema de responsabilidade como o português, que se baseia, como
regra, na cisão proposta por Ihering entre culpa e ilicitude. Daí que recentemente se dis-
tinga a causalidade fundamentadora da responsabilidade da causalidade preenchedora
da responsabilidade, distinção que nos parece a todos os níveis fulcral. A primeira liga
o comportamento do agente à violação do direito ou interesse legalmente protegido; a
segunda liga a violação do direito ou interesse ao dano subsequentemente sofrido.
A verdade, porém (e como se percebe pela bipartição a que aludimos), é que os termos
com que nos habituámos a pensar a causalidade não nos permitem resolver muitas das
questões que são colocadas pela realidade concreta, o que quer dizer que, se o requisito
se continua a exigir no quadro da dogmática da responsabilidade civil, não nos resta
outra hipótese senão captá-lo segundo uma intencionalidade diversa.
Nas páginas que se seguem, procuraremos mostrar a nova intencionalidade que
contamina o requisito causal, restringindo-nos, por uma questão de delimitação expo-
sitiva, à responsabilidade extracontratual. Porém, não o faremos em termos globais,
mas a propósito de um problema muito concreto, que vem conhecido por causalidade
mínima. Esta emerge, com os seus contornos problemáticos, naquelas situações em
que o ato individual não tem, por si só, potencialidade para produzir uma lesão, mas,
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MAFALDA MIRANDA BARBOSA
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agregado a uma multiplicidade de outras causas, todas elas mínimas, pode provocar um
dano mensurável.1 Perspetivada a causa no seu isolamento, fala-se de causalidade míni-
ma; analisada na sua agregação a outras causas, pode falar-se de causalidade aditiva. As
hipóteses em apreço, próximas das (mas não absolutamente idênticas às) situações de
causalidade cumulativa necessária, nas quais também se patenteia uma causa mínima
(ou pelo menos não suf‌iciente), evidenciam a falência dos tradicionais critérios causais
e instam-nos a procurar uma alternativa que, cumprindo os objetivos que o pressuposto
prossegue, garanta uma solução normativamente adequada e materialmente justa. É,
portanto, a partir de uma ref‌lexão sobre esta causalidade mínima que expenderemos
outras considerações acerca da causalidade em geral.
2. CAUSALIDADE MÍNIMA: CASOS TIPO. CAUSALIDADE MÍNIMA;
CAUSALIDADE ADITIVA E CAUSALIDADE CUMULATIVA NECESSÁRIA.
São diversos os exemplos de escola que a doutrina nos tem oferecido a propósito da
causalidade mínima: milhares de trabalhadores aderiram a uma greve ilegal, que causou
dano considerável a uma determinada empresa; centenas de manifestantes boicotaram
e bloquearam a entrega de um jornal; muitas pessoas acumularam lixo em frente à en-
trada de um edifício2. A estes caso-tipo juntam-se outros, discutidos na jurisprudência
de diversos ordenamentos jurídicos3.
Assim, na Bélgica, a Cour de Cassation, a 3 de Março de 1999, pronunciou-se sobre
uma situação com uma intencionalidade problemática muito próxima da dos exemplos
de escola apontados4. O caso conta-se em poucas palavras: a Assembleia Municipal X
decidiu deixar instalar umas lombas para forçar os automobilistas a reduzir a velocidade.
Contudo, foram instaladas em locais perigosos, que não estavam indicados, nem eram
visíveis durante a noite. Ocorreram dois acidentes, dos quais resultaram graves lesões e
inclusive a morte de um dos passageiros. Os membros da Assembleia Municipal foram
demandados. Apesar de a decisão ter sido tomada pelo órgão, o tribunal de primeira
1. Cf. WINIGER, B.; KOZIOL, H.; KOCH, B.A.; ZIMMERMANN, R. (eds.). Digest of European Tort Law, vol. 1,
Essential Cases on Natural Causation, Springer, Wien, New York, 2007, 1 s.
2. Cf. LANGE, Hermann; Schiemann, Gottffried. Handbuch des Schuldrechts. Schadenersatz, 3 Auf‌l., Mohr, Tübingen,
2003, 159.
3. Em França, a Cour de Cassation pronunciou-se, em 1 de Março de 1977, sobre um caso que a doutrina reconduziu
à categoria da causalidade mínima – cf. WINIGER, B.; KOZIOL, H.; KOCH, B.A.; ZIMMERMANN, R. (eds.),
Digest of European Tort Law, vol. 1, Essential Cases on Natural Causation, Springer, Wien, New York, 2007, 531 s.
(comentário de O. Moréteau/ C. Pellerin-Rugliano). Em causa estava a deterioração muito rápida de um telhado
de zinco, que comprovadamente se f‌icou a dever ao sistema de aquecimento central do edifício vizinho. Contudo,
considerou-se, também, que a poluição atmosférica no local teria o mesmo efeito corrosivo. Não cremos, porém,
que este sirva como um bom exemplo. Na verdade, ao contrário do que sucede nos tradicionais casos de causalidade
mínima, aqui o que parece existir é uma ponderação acerca de uma eventual causa alternativa. Por esse motivo,
não abordaremos esta hipótese em texto. Não obstante, importa dar conta de que esclarecem os autores citados
que os tribunais procuram a cause génératrice: “na ausência do sistema de aquecimento, o efeito da poluição seria
tão difuso que não causaria a deterioração do telhado; mas o nível de indemnização foi reduzido, o que indica
que a responsabilidade foi dividida, surgindo o dano com mais do que uma causa”. Em apreço estaria, segundo
ali podemos aprender, a diferença entre causa do dano, relacionada com o nexo causal, e a causa do agravamento
dele, relacionada com a extensão do dano gerado.
4. WINIGER, B.; KOZIOL, H.; KOCH, B.A.; ZIMMERMANN, R. (eds.), Digest of European Tort Law, vol. 1, Essential Cases
on Natural Causation, Springer, Wien, New York, 2007, 533 s. Acompanhamos de muito perto os factos aí relatados.
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