O prazo prescricional na responsabilidade contratual: reflexões em torno de uma celeuma judicial

AutorKarina Nunes Fritz
Ocupação do AutorDoutora (summa cum laude) pela Humboldt Universität, Berlim (Alemanha)
Páginas69-89
O PRAZO PRESCRICIONAL NA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL:
REFLEXÕES EM TORNO
DE UMA CELEUMA JUDICIAL
Karina Nunes Fritz
Doutora (summa cum laude) pela Humboldt Universität, Berlim (Alemanha). LL.M na
Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha). Mestre em Direito
Civil (PUCSP). Secretária-Geral da Deutsch-lusitanische Juristenvereinigung (Asso-
ciação Luso-alemã de Juristas). Diretora da Revista IBERC. Pesquisadora-visitante no
Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Alemão). Bolsista do Max-Planck
Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Professora,
advogada e parecerista. E-mail: karinanfritz@gmail.com
Sumário: 1. Introdução; 2. Breve histórico da controvérsia jurídica; 3. Argumentos favoráveis
ao prazo prescricional único; 4. Críticas à ideia da unicação dos prazos prescricionais. 4.1.
“Reparação civil” como indicativo de responsabilidade aquiliana; 4.2. Quebra da lógica
interna do sistema jurídico obrigacional; 4.3. Diversidade de prazos prescricionais como
ofensa ao princípio constitucional da isonomia?; 4.4. A situação na Europa: declínio da
teoria monista; 4.5. Precedentes indicativos de um terceiro gênero de responsabilidade; 5.
Conclusão; 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Por f‌im, a regulamentação do direito de prescrição precisa servir ainda à segurança
jurídica. Ela precisa, por isso, ser a mais simples e clara possível, e precisa colocar à disposi-
ção, não apenas do credor e do devedor, mas também de seus advogados e dos tribunais, regras
praticáveis com as quais se permitam diferenciar créditos prescritos e não prescritos.1 Com
essas palavras, Claus-Wilhelm Canaris, membro-redator da Comissão de Juristas que
elaborou o Projeto de Modernização do Direito das Obrigações na Alemanha, salienta, na
Exposição de Motivos, a importância das regras de prescrição para a segurança jurídica
e pacif‌icação social.
Quando se lê esse o lúcido e preciso ensinamento do mestre alemão, causa pro-
fundo espanto a catastróf‌ica posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça em
relação à aplicação das regras sobre prazos prescricionais às pretensões contratuais e
extracontratuais. Embora as responsabilidades contratual e aquiliana, desde o Código
Beviláqua, tenham sido submetidas a prazos prescricionais distintos e a atual codif‌i-
1. “Schließlich muss die Regelung des Verjährungsrechts auch der Rechtssicherheit dienen. Sie muss deshalb möglichst
einfach und klar sein und muss nicht nur dem Gläubiger und dem Schuldner, sondern auch ihren Rechtsanwälten
und den Gerichten praktikable Regeln an die Hand geben, mit denen sich verjährte von unverjährten Forderungen
unterscheiden lassen“. (DRUCKSACHE 14/6040, p. 96).
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cação tenha acentuado a distinção de regimes ao submeter expressamente a respon-
sabilidade aquiliana ao prazo prescricional trienal do art. 206 § 3o V, estabeleceu-se
uma corrente na Corte que defende aplicar extensivamente o referido prazo aos casos
de responsabilidade contratual.
O último ato desse drama ocorreu recentemente, em março de 2019, quando o
Min. Benedito Gonçalves, Relator dos autos dos Embargos de Divergência no Recurso
Especial 1.281.594/SP, af‌irmou ser lícito concluir que o legislador lançou mão de regra
única para disciplinar a prescrição do dano contratual e extracontratual, uma vez que a
expressão “responsabilidade civil” é termo amplo, que abarca tanto a responsabilidade
extracontratual, quanto a responsabilidade contratual2.
Não é difícil perceber que a esse entendimento subjaz a ideia velada de uma unidade
da responsabilidade civil, a legitimar a aplicação de um prazo prescricional único aos
casos de responsabilidades contatual e aquiliana. Isso, por si só, já causa espanto diante
do sistema binário do Código e da clara dicção do art. 206, § 3o ,V CC2002, que, como
adiante explanado, refere-se exclusivamente aos casos de danos decorrentes de ato ilícito,
que é uma (obviamente, não a única) das fontes da obrigação de indenizar.
Não obstante, a perplexidade aumenta quando se observa que a decisão contradiz
a própria jurisprudência da Corte sobre o tema, pacif‌icada há bem pouco tempo3, em
junho de 2018, pela 2a. Seção do STJ, responsável pela uniformização da jurisprudência
das turmas de Direito Privado, no julgamento do Recurso Especial 1.280.825/RJ. Na
ocasião, o Tribunal consolidou exatamente o entendimento contrário, qual seja, o de
que o prazo prescricional para discutir danos oriundos de violações contratuais é de dez
anos, conforme o art. 205 do CC2002.
Isso não é tudo. A recente posição do ilustre Relator dos Embargos de Divergência
no Recurso Especial 1.281.594/SP também cai em grave contradição principiológica
com recentes precedentes da Corte, que sinalizam o reconhecimento de um terceiro
gênero autônomo de responsabilidade civil, a chamada responsabilidade pela conf‌iança,
pois, ou bem se caminha em direção à unidade ou bem se trilha o caminho oposto da
especif‌icidade da responsabilidade civil, reconhecendo – ao lado dos dois tradicionais
ramos – um terceiro autônomo.
Objetivo deste ensaio é analisar os argumentos utilizados para fundamentar a apli-
cação de prazo prescricional único, confrontando-os com os fundamentos contrários
expostos na decisão uniformiza da 2a. Seção, que acentuou as distinções principiológicas
e estruturais entre responsabilidade aquiliana e responsabilidade contratual, bem como
com a teoria da terceira via, que tem cada vez ganhado adeptos na Europa e que põe um
2. Migalhas, 22.03.2019. O voto do Relator do EREsp. 1.281.594/SP ainda não estava disponível no momento da
entrega do presente artigo para publicação.
3. Parece não haver dúvidas de que a jurisprudência consolidada no STJ aplicava o prazo decenal do art. 205 CC2002
aos casos de responsabilidade contratual. No voto aos Embargos de Divergência no REsp. 1.280.825/RJ, a Min.
Nancy Andrighi enumera inúmeros casos onde o Tribunal aplicou ambos os prazos, sendo possível objetivamente
atestar uma clara tendência no sentido de reservar prazos prescricionais distintos às responsabilidades contratual
e extracontratual. O próprio Min. Marco Aurélio Bellizze, autor da divergência jurisprudencial, reconhece o
entendimento pacíf‌ico da Corte em aplicar o prazo de dez anos (art. 205 CC2002) aos casos de responsabilidade
contratual. AgRg no REsp. 1.485.344/SP, Voto Min. Marco Aurelio Bellizze, p.5 s.
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