Responsabilidade civil na área médica

AutorNelson Rosenvald e Felipe Peixoto Braga Netto
Ocupação do AutorPós-Doutor em Direito Civil na Universidade Roma Tre (Itália)/Pós-doutor em Direito Civil pela Università di Bologna, Itália (Alma Mater Studiorum)
Páginas25-67
RESPONSABILIDADE CIVIL NA ÁREA MÉDICA
Nelson Rosenvald
Pós-Doutor em Direito Civil na Universidade Roma Tre (Itália). Pós-Doutor em Direito
Societário na Universidade de Coimbra (Portugal). Professor Visitante na Universidade
de Oxford (United Kingdom). Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Procurador
de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.
Felipe Peixoto Braga Netto
Pós-doutor em Direito Civil pela Università di Bologna, Itália (Alma Mater Studiorum).
Doutor em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Mestre em Direi-
to Civil pela UFPE. Associado fundador e 1º vice-presidente do Instituto Brasileiro
de Responsabilidade Civil (IBERC, 2017-2019). Professor convidado em cursos de
Pós-graduação em Direito Civil e Direito do Consumidor (FESMPMG; Escolas de
Magistratura). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União. Membro
do Ministério Público Federal (Procurador da República).
Sumário: 1. A saúde no Estado dos Direitos Fundamentais; 2. A medicina do século XXI: avanços e
perspectivas; 3. Os danos causados no exercício da medicina: contextualização e peculiaridades;
4. A responsabilidade subjetiva dos médicos: especicidades e modos de caracterização; 5. A
complexa questão probatória na responsabilidade civil médica; 5.1. Perda da chance e atividade
médica; 6. A relação médico e paciente como uma relação de consumo: consequências her-
menêuticas da aplicação do CDC; 6.1. Planos de saúde: experiência brasileira contemporânea;
7. Responsabilidade dos hospitais por atos dos médicos: regime especial; 8. Danos sofridos em
hospitais públicos ou postos de saúde; 8.1. Serviços públicos sociais x serviços de relevância
social; 9. Obrigações de meio e de resultado: um tema recorrente na responsabilidade civil
dos médicos; 9.1. Obrigações de meio; 9.2. Obrigações de resultado; 9.2.1. Outras exceções
construídas doutrinária e jurisprudencialmente; 9.2.2. Procedimentos de natureza mista; 9.3.
A caminho da superação da dicotomia: novos critérios hermenêuticos? 10. Importância do
princípio da função social dos contratos na interpretação da matéria; 11. Uma consideração
diferenciada em relação aos bens jurídicos não patrimoniais; 12. Referências.
“A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém te cura
E morrer é que é ter alta”.
Fernando Pessoa
1. A SAÚDE NO ESTADO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Poucos bens são tão preciosos quanto a saúde. Costuma-se dizer, com muita verda-
de, que só a valorizamos adequadamente quando, por uma razão qualquer, a perdemos,
ainda que temporariamente. A responsabilidade civil sempre se ocupou, através dos
séculos, com os danos relacionados à ação ou omissão de alguém diante da saúde alheia,
com danos mais ou menos graves. Vivemos, hoje, no Estado dos direitos fundamentais,
e a saúde dos cidadãos ganha progressivamente importância, não só na formulação ge-
nérica de políticas públicas, mas também na solução concreta dos casos em que houve
dano. Hoje, diante do princípio da proteção, próprio da responsabilidade civil do Estado
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do século XXI, cabe uma postura mais ativa, menos absenteísta, do Estado em relação à
saúde dos seus cidadãos1. Isso se aplica não apenas quando o Estado, por seus serviços
públicos de saúde, presta atendimento. Mas também diante dos abusos nos poderes pri-
vados, como cada vez mais se vê por parte dos planos de saúde, cuja atuação vem sendo
objeto de progressivas e reiteradas reclamações de seus usuários. O Estado não pode se
omitir diante dessas circunstâncias.
Registre-se, em linha de princípio, que podemos nos valer, como critério interpreta-
tivo para avaliação da conduta médica, do dever de tutela do melhor interesse do paciente2.
Trata-se de vetor hermenêutico em favor da integridade física e psíquica do paciente.
Trata-se, dizemos nós, do princípio da boa-fé objetiva, particularizado na conduta mé-
dica. Não agir apenas à luz das próprias conveniências (deixar para o mês que vem algo
que deveria ser feito agora porque está com viagem marcada), ou interesses econômicos
(resolver, entre dois pacientes, por internar aquele que lhe traz maior proveito f‌inanceiro).
O paciente, ademais, diante do médico, está em posição de vulnerabilidade. Não
conhece, em regra, os meandros do tratamento, não sabe como agir nem o que esperar.
Sem mencionar que a doença e a dor fragilizam, por si só, o ser humano, deixando-o em
posição sensível3. A boa-fé objetiva deve iluminar fortemente essa relação, impondo ao
prof‌issional de saúde um dever de agir com lealdade, zelo e cooperação, abstendo-se de
condutas que possam frustrar as legítimas expectativas do paciente, ainda que subjeti-
vamente desconhecidas no momento do dano (por exemplo, a legítima expectativa que
o direito protege, no caso, é a de receber o melhor tratamento possível à luz da ciência
contemporânea. Se o médico sonega um tratamento, por uma razão qualquer, o dano se
caracteriza, ainda que o paciente desconhecesse aquela possibilidade).
As soluções regulamentares trazidas pelo Código de Ética Médica (Resolução n.
1.931/2009, DOU 24/09/2009) não vinculam, por certo, o magistrado, mas poderão
trazer valiosos subsídios informativos acerca de um campo em relação ao qual o juiz não
dispõe de formação técnica. O Código de Ética Médica, por exemplo, veda ao médico
1. A Constituição Federal cuida particularmente da saúde nos artigos 196 e seguintes. Estatui, por exemplo, que a
“saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação” (CF, art. 196). Cabe consignar que a jurisprudência brasileira, na linha de vários pre-
cedentes, reconhece que o funcionamento do Sistema Único de Saúde é de responsabilidade solidária da União,
dos Estados e dos Municípios, de modo que qualquer um desses entes tem legitimidade ad causam para f‌igurar
no polo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso a medicamentos para tratamento de problema de
saúde (STJ, AgRg no REsp 1.297.893, Rel. Min. Castro Meira, 2ª T., DJ 05/08/2013).
2. TEPEDINO, G. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. In: Temas de Direito Civil.
Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 94. Registre-se, com o perdão da obviedade, que a interpretação jurídica
do século XXI não pode desprezar o direito posto, mas também não se prende ao literalismo legal. O direito é lido
sob uma perspectiva ética, que dialoga com a sociedade, e não se satisfaz com conceitos apriorísticos e formais.
Isso não signif‌ica, em absoluto, que o juiz possa se libertar dos limites e das possibilidades que a ordem jurídica
traz. Não se trata de voluntarismo, mas de hermenêutica que reconhece a força normativa dos princípios e dialoga
com a teoria dos direitos fundamentais.
3. O Código de Ética Médica (Resolução n. 1.931/2009, DOU 24/09/2009) prevê, por exemplo, no Capítulo I, item XXII,
que “nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e
terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”.
Conforme frisamos no texto, as soluções regulamentares trazidas pelo Código de Ética Médica, conquanto não
vinculem o magistrado, podem eventualmente trazer valiosos subsídios para a solução das demandas relativas à
matéria.
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“deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos
do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo,
nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal” (art. 34). Proíbe que o mé-
dico abrevie a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.
Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados
paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou
obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua
impossibilidade, a de seu representante legal (art. 41 e parágrafo único).
Outro ponto da maior relevância, conectado à boa-fé objetiva, é que os deveres de
cuidado não dependem de um contrato para existir. Podem nascer antes do contrato e
podem se estender para depois dele (post contractum f‌initum). Sem falar que o contrato
pode nem existir, como ocorre nos atendimentos – sejam de urgência ou não – na rede
pública. Depois da cirurgia, a ausência do acompanhamento médico (ou o acompanha-
mento def‌iciente) pode ser extremamente danosa ao paciente. Sobretudo se não tiver
havido, de forma clara e minudente, a informação sobre como o paciente deverá agir. A
prova de que a informação foi dada, e compreensivelmente dada, incumbe ao médico.
Também incumbe ao médico a prova do consentimento informado do paciente, naquelas
hipóteses em que o consentimento é possível. Voltaremos ao assunto.
Ninguém desconhece ser limitado o potencial das normas jurídicas. Elas não podem
obrigar os médicos – ninguém, na verdade – a agir com atenção, simpatia, gentileza. Mas
há um núcleo normativo de deveres que se impõem, ainda que f‌lexíveis e variáveis à luz
das circunstâncias dos casos concretos. Lembrando que no campo da responsabilidade
civil prevalece, com progressiva força, o princípio da proteção prioritária à vítima do
dano, conjugado com o princípio da reparação integral.
Espera-se que médico esteja adequadamente informado sobre seu campo de atuação
prof‌issional e que aja, a todo tempo, de forma leal, correta, transparente, responsável.
Que aja, enf‌im, banhado pela boa-fé objetiva. A desatualização do prof‌issional pode,
eventualmente, ensejar responsabilidade civil, se causar dano (prescrição de medica-
mento, por exemplo, cujos artigos científ‌icos recentes evidenciam perigo para a saúde
humana). Pode haver, também, conforme adiante veremos, a aplicação da teoria da perda
da chance na responsabilidade civil médica (pensemos na conduta do médico que deixa
de prescrever um novo medicamento cuja ef‌icácia e segurança já foram comprovadas,
e a doença do paciente se agrava. Não é certo que o paciente f‌icaria curado ou mesmo
melhoraria com ele, mas não se pode negar que haveria uma chance. As circunstâncias
é que dirão se a chance era, no caso, séria e razoável).
Por outro lado, é preciso sempre lembrar que nem tudo está sob o controle do mé-
dico, por mais diligente que seja. É possível, por exemplo, que em procedimento cirúr-
gico ocorra parada cardíaca que não esteja, em absoluto, relacionada à ação negligente
dos médicos. Não se controlam todas as reações e comportamentos do corpo humano.
É possível, por exemplo, que a paciente, mesmo após a laqueadura de trompas, volte
a engravidar (em decorrência, digamos, de permeabilidade tubária que recanaliza as
trompas). O que se impõe, em casos assim, é investigar se houve o devido e concreto
cumprimento dos deveres de informação, esse é o ponto relevante.
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