Aplicação dos pressupostos teóricos

AutorRenata de Lima Rodrigues
Páginas109-141
CAPÍTULO 4
APLICAÇÃO DOS
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Por tudo que foi exposto, o tema acerca do direito ao livre planejamento familiar
caracteriza-se, sobremaneira, espinhoso. As premissas necessárias para conseguirmos
traduzir o perf‌il da relação entre público e privado nas decisões que competem aos
indivíduos na realização do projeto parental foram delineadas de forma sistemática
nos capítulos anteriores, abordando desde sua contextualização no mundo da vida,
conceituação, natureza jurídica até a correta operacionalização no contexto sistêmi-
co do Direito brasileiro. Desse modo, temos subsídios para responder às perguntas
iniciais levantadas na introdução de nosso trabalho.
Sabemos, em teoria, como certas escolhas podem se inserir no âmbito de auto-
determinação dos indivíduos que devem ser livres na autoria de seu projeto parental
dentro de um espaço demarcado por característicos permanentes da ideia de liberdade
inerente ao nosso contexto civilizatório e vigente em nosso Estado Democrático de
Direito. Tais característicos permanentes se enfeixam em torno da conjugação de
fatores como autonomia, alteridade, benef‌icência e prudência, os quais são corolários
derivados precisamente dos princípios constitucionais da dignidade humana e da
paternidade responsável, caracterizadores da liberdade de planejamento familiar.
Além disso, como se viu, mais do que simplesmente conformar coerentemente o
espaço de liberdade de atuação dos indivíduos, cabe ao Estado uma postura eminente
prospectiva ou promocional, auxiliando os cidadãos e os casais com informações e
recursos técnicos e f‌inanceiros, para a plena (não) realização do projeto parental, de
modo que a vontade formada e exprimida por eles possa ser efetivamente autônoma
e responsável.
Certo é que em torno da temática do aborto existem profundas divergências e,
normalmente, as pessoas se perf‌ilham radicalmente em lados opostos, seja a favor
das doutrinas pro life, contra o aborto, ou a favor das doutrinas pro choice, na defesa
do aborto. Pretendemos mostrar neste capítulo que há fortes argumentos políticos
e jurídicos em nosso contexto e em nosso sistema para adotarmos uma orientação
em prol das doutrinas pro choice.
Diante disso, a tese pretende conf‌irmar a teoria de que é possível tratar o aborto
eletivo no primeiro trimestre de gestação como ato de liberdade de planejamento
familiar, em razão da articulação das seguintes premissas: i. o sistema jurídico
brasileiro não trata como direito à vida humana, conforme podemos depreender
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PLANEJAMENTO FAMILIAR: LIMITES E LIBERDADE PARENTAIS • RENATA DE LIMA RODRIGUES
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da análise da própria legislação, que permite a realização do aborto em algumas
situações, e também da análise de precedentes de nossa corte constitucional, que
autorizam a pesquisa com células tronco embrionárias e a antecipação terapêutica
do feto anencéfalo. ii. Tal conclusão é aferível independentemente de analisarmos
a condição jurídica do embrião e do nascituro como pessoa, como ente desperso-
nalizado ou como ser humano sem personalidade jurídica; iii. o aborto realizado no
primeiro trimestre de gestação não viola a dignidade humana e nem a alteridade, que
nos impõe um dever de reconhecimento de sua humanidade. Tendo em vista que,
no primeiro trimestre de gestação, o feto não tem ainda desenvolvido seu sistema
nervoso central, não haveria sequer violação do direito fundamental de não sentir
dor, revelando-se, por tudo isso, imperiosa a decisão de permitir o aborto como ato
de liberdade de planejamento familiar, privilegiando os direitos de liberdade e de
autonomia, em prol da vida digna daqueles que não pretendem constituir prole ou
levar a cabo a autoria daquele projeto parental.
Portanto, cabe, a partir de agora, promover o teste destes pressupostos teóricos
construídos, indagando a pertinência da inserção do ato de aborto voluntário dentro
do espaço de (não) autoria do projeto parental, para validar a correção normativa
dos característicos permanentes da liberdade de planejamento familiar, assim ques-
tionando se a interrupção voluntária da gravidez pode consistir em ato de natureza
de planejamento familiar.
É importante ressaltar que aborto e planejamento familiar se referem a ques-
tões que inexoravelmente integram áreas temáticas que guardam af‌inidade entre
si, tais como políticas de população e de regulação da fecundidade, bem como
tutela e regulamentação do direito à saúde e dos direitos reprodutivos. Mas, apesar
disto, são tópicos que não são necessariamente tratados ou abordados de forma
conjunta. No Brasil, muito antes pelo contrário, em razão da tipif‌icação do aborto
como crime, regra geral, há enorme resistência em pensá-lo como ato de liberdade
de planejamento familiar. De fato, as discussões sobre planejamento familiar e
aborto são, muitas vezes, inspiradas em orientações distintas do ponto de vista
ético, político e jurídico.
O surgimento do tema envolto no planejamento familiar é historicamente recente e tem se tornado
objeto de preocupação dos governos na maior parte dos países ocidentais com diferentes enfo-
ques diante da peculiaridade de cada nação, mas sem dúvida se encontra relacionado à noção
de direitos reprodutivos, assim considerados os direitos básicos vinculados ao livre exercício da
sexualidade e da reprodução humana com os limites que lhe são inerentes. (GAMA, 2009, p. 232).
Portanto, não estamos ignoramos o fato de que, no estado da arte do Direito
brasileiro, o aborto é tipif‌icado como ilícito penal e constitui crime contra a vida,
deixando de ser punível apenas nas modalidades de aborto terapêutico, praticado
para salvar a vida da gestante, e aborto humanitário ou sentimental, em razão de
gravidez fruto de estupro, conforme previsão do Código Penal brasileiro:
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CAPíTUlO 4 • APlICAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena: detenção, de um a três anos.
Art. 125. Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena: reclusão, de três a dez anos.
Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena: reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos,
ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça
ou violência
Art. 127. As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em
consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão cor-
poral de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.
Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou,
quando incapaz, de seu representante legal.
Nesse sentido, as perspectivas legislativas não são animadoras. Segundo dados
do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea)1, desde a Constituinte de
1988, a atuação do Congresso Nacional é, nos dias de hoje, a que mais impacta ne-
gativamente movimentos sociais de defesa dos direitos das mulheres e dos direitos
reprodutivos. Segundo a avaliação, de todos os 34 projetos de lei que tramitam hoje
versando sobre os direitos reprodutivos, apenas três têm o objetivo de ampliá-los
em alguma medida. Dentre os outros 31 projetos de lei, o Cfemea destaca propostas
que se destinam a criminalizar o aborto em casos de estupro e de risco de vida para
a mãe, hoje legalmente autorizados, como na hipótese do chamado “Estatuto do
nascituro”, projeto de Lei 478/2007.
Em 2005, tramitavam na Câmara 33 proposições envolvendo direitos reprodu-
tivos. Desse total, 14 favoreciam a agenda feminista e 19 seguiam no sentido con-
trário. Ela observa que o quadro mudou, sobretudo, após a campanha presidencial
de 2010, quando a questão do aborto se transformou num dos principais pontos de
debate eleitoral.
Houve um recuo até no meio de parlamentares que tradicionalmente apoiavam
as feministas. De 2011 a 2021, 69 projetos de lei foram apresentados para apreciação
no Congresso nacional, dos quais 80% criminalizam o procedimento de alguma
forma.
Em 2019, foram 18 projetos que enfatizavam normas desfavoráveis às mulheres.
Tal tendência se manteve em 2020 e, até meados do ano, mais outras 11 propostas
1. Disponível em: http:www.cfemea.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3801:assine-
-edivulgue-peticao-contra-o-estatuto-do-nascituro&catid=219:noticias-e-eventos&Itemid=154. Acesso
em: 25 set. 2014.
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